Ter impunidade é só para alguns?

Ora este vírus, instalado no regime político português desde 2015, tem vindo a acentuar-se progressivamente.

Às vezes, de onde menos se espera colhem-se as ideias mais interessantes. Um jornal diário de grande tiragem descrevia recentemente, na sua secção de ‘humor bananal’, este delicioso diálogo improvável: Marcelo Rebelo de Sousa: Não é possível dizer que (os adeptos) vêm em bolha e depois não vêm em bolha. Réplica: MRS ainda não percebeu que vive num país governado por ilusionistas.

Com toda a franqueza não parece que o PR desconheça a verdadeira personalidade dos governantes que nos calharam em rifa (perdão eleições), mas temos de concordar que a sua margem de manobra não é grande e o poder que, verdadeiramente, lhe resta (o da magistratura da influência) nem sempre têm sido utilizado com presteza e eficiência.

Obcecado com a ideia de não alimentar ou fomentar uma ‘crise política’, mesmo que isso não evite o crescimento de um verdadeiro pântano social, o Professor Marcelo, esquece demasiadas vezes que, quando fala, tem de ter sempre a última palavra e não pode ser ignorado pelos destinatários das suas mensagens, sejam quais forem as consequências que daí possam advir.

A formação da chamada ‘geringonça’ que tem permitido governar (ou gerir?) o país com uma aparente tranquilidade, foi, como alguns notaram desde o início, uma opção que, mais cedo ou mais tarde, acabaria por enfraquecer, de forma às vezes insensível, a democracia parlamentar que a Constituição da República Portuguesa consagra. Este processo que começou em 2015, está agora a tornar-se mais evidente aos olhos dos portugueses e já não passa também despercebido junto de alguns observadores internacionais. 

Recentemente, um apreciado Instituto de Estudos Políticos sueco (o V-dem Institute da Universidade de Gotemburgo) opta por qualificar o regime português como uma simples democracia eleitoral, ou seja um pouco abaixo, em matéria de mérito, da democracia liberal onde pensávamos viver.

Infelizmente este extenso e completo relatório que analisa a qualidade de várias dezenas de democracias, considerando e cruzando vários fatores de avaliação foi, com pequenas exceções, ignorado pela generalidade dos comentadores políticos e dos órgãos de comunicação social portugueses.

Embora se trata de um relatório bastante extenso, 52 páginas, (o que é sempre um embaraço para os viciados das leituras rápidas) talvez merecesse uma melhor atenção até porque, como é óbvio, não se esgota na apreciação da situação portuguesa (Autocratization Turns Viral-a autocracia torna-se viral)) e alerta infelizmente, de forma negativa, para o enfraquecimento da democracia dita liberal.

Ora este vírus, instalado no regime político português desde 2015, tem vindo a acentuar-se progressivamente. Em muitas das crónicas publicadas neste espaço, foram várias as vezes em que, sem sucesso imediato evidente, se falou em ‘orbanização’ do regime, querendo, com isso, fazer a denúncia de uma evolução crescente para uma democracia iliberal (ou de eleições), como parece notar o estudo já referido.

Ao longo dos últimos anos abundam os exemplos concretos de abusos inexplicáveis e intoleráveis que, reconheça-se, o PR foi sinalizando, mas que, quer pela sua complexidade, quer por erros próprios, foi incapaz de corrigir ou mesmo de mitigar.

Desde Pedrógão até Odemira, são muitos os factos que deveriam fazer refletir o cidadão comum sobre a verdadeira qualidade da democracia, mesmo se tal é difícil com a crescente tutela da comunicação social que se mantêm dependente dos poderes públicos (mesmo quando é privada) e por uma ocupação partidária silenciosa, mas dificilmente reversível no médio prazo, do aparelho do estado.

A mentira, a simulação, a contradição, a manipulação e a perseguição (ou seja o ilusionismo) têm sido o karma salvador do poder político instalado. A receita é sempre a mesma: abertura de inquéritos para apurar responsabilidades, que nunca chegam à luz do dia e a afirmação enfática de que é preciso retirar ensinamentos para o futuro, que também nunca se retiram.

E nem sempre o PR tem optado pela posição mais correta, quase sempre porque não pode (onde está uma oposição democrática e reconhecida como alternativa?), mas por vezes porque se deixou ‘enrolar’ pela Grande Ilusão, construída pelo regime de democracia eleitoral que vem sendo progressivamente instalado no país.

A surpreendente aprovação, por uma maioria confortável (onde mais uma vez se coloca o incontornável PSD de Rio) de um Carta Portuguesa dos Direitos Humanos da Era Digital, que, no presente estado da arte, mais não é do que a reprodução de uma forma de censura, que muitos tragicamente conheceram e alguns querem retomar, é a ‘prova do algodão’ a que o PR não pode furtar-se, sem correr o risco de desrespeitar o seu juramento constitucional.

Quanto ao tema da atualidade – a gestão que o Governo fez da final da Champions – já tudo foi praticamente dito e pode ser sintetizado na declaração (desta vez acertada) do presidente do Futebol Clube do Porto: obviamente demitam-se (pelo menos alguns!). Recorde-se que o ministro Jorge Coelho, tão incensado recentemente, demitiu-se com menos culpas.

O grave comportamento do Governo neste caso, revelou um estranho complexo de provincianismo e pequenez devido à sua completa subordinação a interesses estrangeiros e traduziu-se numa intolerável venda, por um prato de lentilhas, de regras, indispensáveis à paz social, que os portugueses têm cumprido com rigor. Tudo isto exige, por isso, um escrutínio muito duro por parte do PR. 

Não há crise pandémica que justifique a pusilanimidade, nem suposta estabilidade que adie a condenação. E não pode haver complacência com a impunidade e o ilusionismo.