A democracia portuguesa conta, neste momento, com dois protagonistas que farão o que tiver de ser feito para que «o país não se desgrace», nas palavras de João Miguel Tavares, em entrevista a este jornal. Um e outro têm níveis de popularidade que lhes dão enorme tranquilidade, mas não bonomia, porque a atualidade política está cheia de ‘casos e casinhos’ com origem no Governo. E a sensação de desconforto acentua-se.
Seja como for, Marcelo Rebelo de Sousa está com uma taxa de aprovação que anda pelos 70% – mesmo num país em que, e tradicionalmente, a taxa de aprovação dos presidentes da República é elevada, é significativo. António Costa navega à vista apoiado em 40% das intenções de votos do eleitorado português. Assim fica mais fácil. Fica mais fácil, mas não está fácil.
Em declarações ao Expresso, o Presidente da República diz que «precisamos de uma narrativa diferente». Para Marcelo o padrão de risco já devia ter sido alterado, porque os 240 casos por 100 mil habitantes não significam hoje o mesmo que significaram há uns meses, e há especialistas que concordam com o Presidente. Mas Marcelo está a dizer mais: que a mudança de «narrativa» implica outras mudanças, e não por acaso lê-se no mesmo artigo que Marcelo está preocupado em «acautelar a autoridade do Estado». Aqui temos várias leituras, uma que lhe diz respeito, e outra que diz respeito ao Governo, que tem uma espécie de trouble maker chamado Eduardo Cabrita.
A propósito deste assunto, em 16 de maio, o Presidente disse em entrevista à RTP que «não estamos num sistema presidencialista em que o Presidente da República é primeiro-ministro ao mesmo tempo». A propósito deste, mas, sobretudo, de outros assuntos, um mês depois, em 15 de junho, o Presidente clarificou: «Não é o primeiro-ministro que nomeia o Presidente, é o Presidente que nomeia o primeiro-ministro», e mais não disse na Hungria, onde se deslocou para ver o primeiro jogo da seleção portuguesa no Campeonato Europeu de Futebol, no que foi tido e lido como uma resposta ao que o primeiro-ministro disse em Bruxelas, onde sublinhou que cabia ao Governo tomar «em cada momento, as medidas que se justifiquem perante o estado da pandemia».
O óbvio entrou na câmara de eco, porque uns dias antes, o Presidente da República, em visita à Feira Agrícola de Santarém, afirmou que o país «já não volta para trás» no desconfinamento. E continua a dizer isso mesmo, que não contem com ele para novos estados de emergência.
‘O primeiro-ministro vai pagar por isto’
O primeiro-ministro deu em Bruxelas um passo arriscado, e não foi inadvertido – Costa não é nem distraído nem descuidado – mas pôs em causa a autoridade do Presidente da República, o que não é coisa que se faça a Marcelo, porque não sendo ele o «brincalhão» dos tempos do Expresso, como também diz João Miguel Tavares na entrevista ao Nascer do SOL, «Marcelo é Marcelo», a frase feita dos jornalistas e comentadores políticos que Miguel Poiares Maduro, também em conversa com este jornal, colocou de uma forma evidente: «Não sei como, nem sei quando, mas Marcelo vai fazer com que Costa pague por o ter desautorizado».
Desta vez alguma coisa tem de mudar. Seja a narrativa, seja o que for para impedir uma 4.ª vaga da pandemia, mas, e também disse o Presidente, se os ingleses e os franceses se preparam ou estão a desconfinar, os portugueses não merecem menos, ou então não têm o Governo que merecem.
«O PR tem razão», diz-nos Poiares Maduro. Para o político e académico, não há qualquer dúvida que as palavras do primeiro-ministro desautorizaram o Presidente da República. E sobre o assunto acrescentou que das duas, uma: ou o Presidente da República está mal informado sobre a pandemia, tarefa que também cabe ao Governo, ou, neste momento, Presidente da República e primeiro-ministro, i.e., Governo, têm leituras diferentes da situação pandémica. Entre uma coisa e outra, há algo que não podia ter acontecido «a desautorização do Presidente da República». Marcelo foi ‘enfático’ na resposta institucional que já deu ao primeiro-ministro, e ainda só agora começou.
«A autoridade política do Presidente do Presidente da República foi posta em causa», considera Poiares Maduro, que lembra que quando foi dos incêndios de Pedrógão, em 2017, Marcelo alertou, então como agora, para a necessidade de primeiro-ministro tirar consequências políticas da tragédia. Naquele tempo, Costa sacrificou um membro do seu Governo, era inevitável.
Constança Urbano de Sousa foi demitida e substituída, hélas!, por um ministro que se transformou na personificação da catástrofe política – Eduardo Cabrita. Alguns exemplos, de amplitudes diferentes, mas que no seu conjunto confirmaram a tragédia: caso do SEF (Serviço de Estrangeiros e Fronteiras), em março de 2020, com a morte, no aeroporto de Lisboa, do cidadão ucraniano Ihor Homneyuk, caso que se arrastou para 2021, com inúmeras trapalhadas entre o ministro e uns serviços que teimam em resistir às tentativas de reformulação, reestruturação ou extinção.
O Presidente da República terá agido ou reagido mais tarde do que emocionalmente nos habitou, mas reagiu e assumiu o habitual papel de dar a cara por uma ideia mais benevolente do país e das instituições portuguesas.
Um ministro preso por arames
A desdita de ministro Cabrita prolongou-se em 2021, a somar à sua incapacidade de comunicar, por vezes a roçar a arrogância e sobranceria, para não dizer a mais profunda inabilidade, tivemos o caso de Odemira. Pior era impossível. E aí Marcelo também teve de intervir. A seguir ou entretanto, os festejos do título do Campeonato Nacional de Futebol do Sporting, uma confusão sem nome mas com demasiados riscos, uma onda verde que se transformou em negra para o ministro da Administração Interna, que, e mais uma vez, viu as polícia em choque com ele.
E, esta semana, o caso da recuperação de ala sul do estabelecimento prisional de Caxias para acolher imigrantes a quem é barrada a entrada em Portugal e que aguardam aí que a deportação se concretize – muitos pensaram, menos mal, porque se permanecerem no aeroporto pode não ser bom.
É claro que é mau, em todas as perspetivas, e a mais lamentável é que o ministro Eduardo Cabrita disse, no Parlamento, no início deste mês, que o caso estava a ser analisado, quando nas suas costas, ou não, o SEF e a Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP) assinavam, a 1 de fevereiro deste ano, um protocolo de cedência das instalações e do terreno para a instalação de um Centro de Instalação Temporária de Imigrantes. Cabrita foi chamado de «mentiroso» e foi mais um arame da sua frágil posição no Governo que se soltou.
Miguel Poiares Maduro partilha com o Nascer do Sol que entre as várias formas que o Presidente da República encontrará para pressionar Costa e o Governo, uma delas não será em insistir em sinalizar que há ministros que no Governo fazem mais mal do que bem – e o Presidente já assinalou claramente dois, Eduardo Cabrita, o ministro da Administração Interna, e Francisca Van Dunem, a ministra da Justiça – por que o tem feito e tem sido ignorado, evidencia a sua fragilidade e aquilo que tanto o próprio já assumiu, que não pode intervir em matéria da composição do Governo, a não ser sob proposta do primeiro-ministro, como o primeiro-ministro já afirmou, que é ele quem nomeia os ministros.
Mas poderá tornar-se muito mais crítico em relação às políticas do Governo, a começar na gestão que o Executivo de Costa em feito da pandemia, ou muito mais atuante ou ‘assertivo’ no que tem a ver com a gestão dos fundos europeus, da ‘bazuca’. O recado foi transmitido de forma inequívoca no discurso do 10 de Junho, e é o género de recados que o eleitorado à direita PS gosta e agradece. E pode fazer mais, considera ainda Poiares Maduro: transformar o seu segundo mandato, e à semelhança do que fez Mário Soares, numa sucessão de presidências abertas, num Portugal Próximo ou a desconfinar mais permanente.
Poiares Maduro lembra a perplexidade e o choque com que as autoridades portuguesas receberem a retirada de Portugal da lista verde dos países para onde os cidadãos do Reino Unido poderiam viajar sem restrições. Duas semanas depois, Portugal admite que Boris Johnson que tinha razão. E situações como esta são um incentivo ao interventivo Presidente da República, mas talvez não tanto ao lado do Governo.
Não estando em causa a estabilidade governativa, o que foi dito pelo Presidente e pelo primeiro-ministro não está isento de consequências. Poiares Maduro antevê que o discurso do Presidente vá endurecer.
No último programa da Circulatura do Quadrado, na TVI24 e TSF, Ana Catarina Mendes, com a «jurisprudência das cautelas», tentou amenizar o discurso e o eventual confronto entre o PR e o PM. Interpretou o «não há volta atrás» como «um apelo» em que o Presidente expressou o «desejo» de todos os portugueses. Já Pacheco Pereira atirou achas para a fogueira, declarando que o Presidente da República «fez uma declaração irresponsável». António Lobo Xavier foi perentório: «Parece que há uma divergência visível entre o que pensa o Presidente da República e o primeiro-ministro».
Como resposta a tudo isto, ou até a confirmação de uma certa «esquizofrenia» do Governo no que tem a ver com as medidas de combate à pandemia, temos, este fim de semana, a cerca da Área Metropolitana de Lisboa. Poiares Maduro escreveu no Twitter: «É um cerco a Lisboa ou um cerco ao Presidente da República». Longe do cerco, em Nova Iorque, na cerimónia que conduz o amigo António Guterres ao um segundo mandato como secretário-geral da Nações Unidas, o Presidente vai dizendo que cabe ao governo tomar medidas, mas que ele não vê necessidade de voltar atrás, ao estado de emergência.