Sebald é o escritor contemporâneo que mais profundamente investigou o tempo, não naquilo que ele possa ser, mas naquilo que nos faz. Em Os Anéis de Saturno, num desses momentos de auto-reflexão característicos de um ritmo interior forte, que se impõe, procurando perpetuar-se, ao encarar uma paisagem onde existiu em tempos uma propriedade próspera e onde, agora, só encontra ervas daninhas e capim, deixa-nos esta anotação: “Costumo pensar que basta um segundo terrível e toda uma época desaparece.” Há nesta escrita uma lição do próprio tempo, uma persistência inexorável, essa agonia difusa que atende aos efeitos de uma lepra lenta que vai invadindo tudo, e que exprime essa noção que o filósofo francês Vladimir Jankélévitch tentou explicar dizendo que “o ter sido pertence, de alguma maneira, a um ‘terceiro género, radicalmente heterogéneo em relação ao ser, tal como ao não-ser”. Por seu lado, o crítico literário James Wood, diz-nos que nestes momentos parece que damos pelo “texto a beliscar-se a si próprio para confirmar que existe”.
Sebald é um escritor que sente a passagem da consciência a um mecanismo, na forma mimética como os seus processos se organizam, como se, ao observar o mundo, colocando em cena personagens com as “suas vidas roídas pela tristeza”, pudéssemos ver actuar a ferrugem ao nível da alma, como “uma espécie de doença interior desgastante”. É esta a medida do tempo em nós, uma espécie de estertor que se alonga, agarrando-se como pode ao que tem ao redor, enquanto a matéria se degrada, e o que resta da metafísica é uma apreensão estética, um fio sensível no meio do caos, entre reflexos, ecos, angústias. Assim, “atraído para aquilo que está a desaparecer e a morrer”, Sebald dá-nos a sensação, como já alguém sugeriu, de ouvir “a toada do anjo que revisita a seguir, depois da calamidade”.
Num ensaio publicado nas páginas do Times Literary Supplement, no ano 2000, Susan Sontag questionava se o horizonte da grandeza literária estava ainda ao nosso alcance, e viria a concluir que “uma das poucas respostas que eram dadas aos leitores de língua inglesa era a obra de W.G. Sebald”. A 14 de dezembro de 2001, Sebald morreu numa colisão frontal com um camião, perto de Norwich, na Inglaterra. A autópsia mostrou que sofrera um ataque cardíaco e que já não estaria vivo quando o carro em que seguia com a filha (que sobreviveu sem grandes mazelas) ficou desfeito. Tinha 57 anos, e, tendo nascido na Baviera, em 1944, abandonara a Alemanha com vinte e poucos para ocupar uma posição como professor universitário na Inglaterra. Só nos cinco anos que antecederam a sua morte é que a sua obra literária o projectou amplamente, com a crítica a render-se numa unanimidade esfusiante, e James Wood afirmou que se tratava do “primeiro escritor contemporâneo desde Beckett a encontrar uma forma de contestar o primado do romance tradicional e a obrigar o realismo a reflectir sobre si mesmo”. Não gostando do termo “romance” para aquilo que fazia, Sebald preferia referir-se a esse género a que se dedicou e que misturava elementos aparentemente irreconciliáveis como “ficção documental”. Trata-se de cerzir limiares, criar um percurso através de ausências, em que o narrador colhe vestígios num mundo rasurado, com alusões mais ou menos directas à devastação provocada pela Segunda Guerra. A consciência entende como o erro, o desejo de perder-se, é a única orientação, lançando-se, como notou Maria Conceição Caleiro, em peregrinações fantasmáticas, a partir de um ponto preciso de onde se derrama uma história, mnemonicamente, sempre sujeita a uma onda encantatória de rememorações alegóricas. E se esta obra se tornou tão influente, uma referência que se impôs hoje como uma estação central nas decisões e revisões que ainda trazem algum alento ao romance, isso deve-se não apenas à “densidade perturbada” desta escrita, à beleza suave, sugestividade onírica e ao sofrimento que se respira nas páginas de Sebald, mas à forma como, com a sua insana paciência, este autor colocou como paciente na sua mesa o passado, às vezes adormecido a éter, outras espicaçado nos seus sonhos, para medir as suas respostas. Assim, o passado confunde-se com a própria visão da literatura, um lugar de confronto entre acontecimentos dispersos na linha temporal, libertando-o do regime cronológico para dissecar a forma como as ausências produzem sombra, e vão erodindo o presente, a nossa identidade, numa assombração incessante. Como vinca Caleiro, nesta obra “a memória é episódica e cada episódio inclui o peso de uma memória inapagável, como um espectro. Tudo é filtrado por ela e pela morte. Nenhum ponto de vista se lhes subtrai e daí resulta uma inefável melancolia, o laço de Saturno. Esse véu que turva a inocência e a visão nasce do que resiste a apagar-se da Segunda Guerra Mundial, permanecendo como herança mesmo para os que ainda não nasceram ou para os que estão já mortos — as vítimas das guerras, dos extermínios nacionalistas, racistas, colonialistas, das opressões do capitalismo, de todas as formas de totalitarismo.”
Sebald foi-se transferindo para essa sala de aula onde os mestres e as lições se sucedem num fascínio que muitas vezes conduz ao sufoco, e quis-se companheiro de carteira de escritores que tanto admirava, como Stendhal, Proust, Kafka ou Nabokov, entre tantos outros, e, certa vez, num trabalho de grupo com Borges, ambicionou também ele um romance “que desmentisse factos notórios e se embrenhasse em diversas contradições de tal modo que poucos leitores – pouquíssimos leitores – fossem capazes de apreender a realidade, por um lado atroz, por outro totalmente banal.” Numa passagem de Os Anéis de Saturno, o narrador ouve de outra personagem esta frase: “Por vezes penso que nunca nos acostumamos a este mundo e que a vida não passa de um gigantesco engano, contínuo e indecifrável.” Assim, como indica Wood, é porque “para Sebald, os factos são indecifráveis, logo, trágicos” que ele “investe as narrativas de uma escrupulosa incerteza”. E é como resposta à agonia de quem parece sentir a sua vida ligar-se de forma inextricável ao desaparecimento do mundo, que esta obra entende como os próprios factos se tornam meras lembranças ou até miragens, estando sujeitas a uma distorção. “Ainda que estes livros profundamente elegíacos sejam feitos das cinzas do mundo real”, diz-nos o crítico da New Yorker, “Sebald transforma os factos em ficção entrelaçando-os tão profundamente nas suas formas narrativas que nos dá a impressão de nunca terem pertencido à vida real e de apenas na prosa de Sebald terem encontrado a sua verdadeira existência.”
Há sempre um risco do fio que o narrador puxa e segue, mais do que dar-lhe um destino, poder provocar o tal efeito de erosão à medida que esta nova realidade que a ficção ergue começa a rivalizar com o mundo real, com o narrador a descoser alguma outra costura deste mundo. E ao relatar, em Os Anéis de Saturno, a forma como o bicho-da-seda foi trazido da China para a Europa, Sebald não apenas abre caminho para uma discussão sobre a importância do cultivo da seda sob o Terceiro Reich, mostrando como o horror está em toda parte, ainda que submerso, mas, como nos diz Wood, oferece-nos um magnífico paralelo, comparando o artista ao bicho-da-seda, que vai morrendo à medida que produz o seu delicado fio de seda. “O livro termina com uma passagem comovente em que Sebald compara o escritor ou o erudito a um tecelão. Ambos, diz, estão algemados ao seu trabalho. Um tear antigo, diz, parece uma jaula e lembra-nos que ‘só nos conseguimos manter neste mundo subjugando-nos às máquinas que inventámos’. Escritores e eruditos, tal como os tecelões, são propensos ‘à melancolia e a todos os males a ela associados’. O que é compreensível, diz Sebald, ‘devido à natureza do seu trabalho, que os obriga a permanecer dobrados, dia após dia, esforçando-se por estar atentos aos motivos complexos que criaram. É difícil imaginar o grau de desespero que pode atingir aqueles que, no fim de um dia de trabalho, continuam absorvidos nos seus padrões intrincados e que são perseguidos em sonhos pela sensação de ter puxado o fio errado’.”
Agora que se aproxima a efeméride que irá assinalar os vinte anos desde a morte de Sebald, acaba de ser publicada a primeira biografia de grande fôlego sobre o autor. “Speak, Silence”, de Carole Angier, tem sido saudada pela generalidade da crítica como uma contribuição fundamental para se dirimir a fronteira entre facto e ficção na obra de Sebald e até as questões éticas que isso levanta, sendo elogiada não apenas pela forma penetrante como discute os livros, como também pela obstinada pesquisa dos factos biográficos de um autor que sempre se mostrou bastante esquivo no que toca a revelar aspectos da sua vida íntima. Mas se esta biografia é exemplo de uma enorme devoção à obra de um autor, está longe de assumir um tom reverencial, e Angier revela até como Sebald, que leccionou nas universidades de Manchester e Norwich, muitas vezes se mostrou inapto para as funções académicas, e isto não só por ter sempre resistido aos seus protocolos tantas vezes redundantes e burocráticos, mas mais por ter urdido uma espécie de vingança subtil, sendo cada vez mais propenso a inventar notas de rodapé e fontes. Esta biografia não-autorizada mergulha assim no deceptivo labirinto com que este espírito atormentado se foi mantendo interessado no seu trabalho, pousando os longos e aborrecidos processos que lhe eram entregues na fronteira entre este mundo e o da ficção, isto para que ganhassem o bicho desta última. A biografia relata os episódios depressivos, o receio que Sebald tinha de estar a enlouquecer, e até os seus pensamentos suicidas, tendo isso, de resto, sido uma factor decisivo para a descoberta do género literário que fez dele um dos autores fundamentais da viragem do milénio, e ao qual chegou como uma resposta e uma defesa do seu génio contra esse mecanismo tautológico da chamada “realidade”. Se não pode sempre insurgir-se contra aquilo que o submete, vai tentando escrever o que lhe vai na cabeça, pensamentos soltos, observações do real em que “o meramente literário perde o fôlego e em que, segundo o que Jean Paul exigia de uma prosa inspirada, vem à tona o sentimento imenso que é o ‘do espírito mudo no enorme moinho do Universo, aturdido e só’.” Citando o mesmo autor, num ensaio a propósito de Joseph Roth, Sebald vinca que “existem pessoas que se debatem com órgãos da fala fracturados e confusos e acabam por dizer uma coisa diferente do que queriam”. Ora, isto leva-nos de volta à leitura que James Wood fez da obra deste autor, dizendo-nos que Sebald e as suas personagens são perseguidas pelo incompreensível, pelo indecifrável, pela escolha errada. “E nesta categoria Sebald inclui o seu próprio fio, o seu próprio caminho. Estes livros de padrões tão intensos podem, afinal, estar à procura do padrão errado. Eles próprios podem ser erros de seda. Mas como é que o podemos saber?”
A mãe de Sebald, Rosa, terá dito certa vez que o seu filho tinha nascido sem pele, e que por essa razão não tinha como proteger-se de ser assoberbado pelo sofrimento dos outros, de tal modo que mesmo aquilo que para a maioria de nós são experiências vulgares, tinham nele um impacto traumático. Daí a dificuldade de Sebald a acostumar-se a este mundo, daí também a sua sensação de que a vida é um engano, em parte porque, como nota Wood, também parece um sonho. Mas se parece um sonho é “porque nos está a sonhar, e não ao contrário”. E se a academia era um mundo protegido, instigou nele essa tensão permanente, que infunde um humor desesperado naquela prosa “fortemente artificial, estonteante”. Ele aprende a disciplina precisamente para ir mais fundo na sua investigação da desordem, pois, como nos diz uma vez mais aquele crítico, “pese embora toda a aparente quietude da prosa de Sebald, o seu princípio é o excesso”.
Angier não tem dúvida de que é a extrema sensibilidade de Sebald, e estas contradições que marcaram o seu percurso, o que fazem dele “o mais sumptuoso dos escritores”, gerindo aquele estilo insanamente paciente, que se torna o mecanismo ideal para exprimir a opressão da vida moderna, a forma como as experiências mais ordinárias que compõem o quotidiano de qualquer um de nós trabalham como uma doença interior desgastante. Assim, para resistir à mudez, apesar do seu aparente pessimismo, o que Sebald faz é dominar a lenta lepra do tempo, viciá-la exagerando o registo elegíaco, opondo-se à fatalidade, ao esquecimento e à solidão, assumindo esse compromisso ético e, não aderindo à religião dos factos, traduzir o mundo real para a forma da ficção para lhe dar contornos mais fortes, mais ásperos, de modo a que a lembrança das grandes injustiças opere como uma forma de “restituição”.
Contudo, aquilo com que a biógrafa se deparou ao investigar aquele labirinto, foi que os livros de Sebald não formam apenas um padrão intrincado que mistura história, ficção, memórias, ensaio, mas que o escritor não se cansou de coleccionar e apropriar-se de informações biográficas de familiares, amigos e conhecidos, deixando um rasto de desilusão à sua passagem. Como diz Peter Jonas, antigo director da Ópera Nacional Ingelsa, e um amigo íntimo do escritor: “Ele não era apenas um bom ouvinte, era uma máquina de gravação.” E foi, por isso, crucial na pesquisa de Angier retraçar o percurso de Sebald, e os acasos que foram marcando a sua vida privada. Mas a recusa tanto da mulher como da filha em serem entrevistadas, e estando impedido de citar longamente passagens quer da sua correspondência, quer da sua obra, a biógrafa não teve escolha senão virar-se para os amigos e colegas, tendo realizado centenas de entrevistas, e aplicando-se num trabalho de detective, escrutinando de forma minuciosa tudo o que deixou escrito para apurar que características e de quem é que se apropriou na criação das personagens compósitas que povoam os seus livros. Ao longo de anos, visitou todos os locais onde Sebald residiu e mesmo aqueles onde esteve apenas de passagem, e nos vários contactos que foi mantendo disse ter esbarrado em tantos silêncios que descreve a parte essencial do seu trabalho como um esforço para “unir buracos como uma rede”.
Um dos aspectos cruciais nesta investigação prende-se com o suposto “trauma secreto” que terá marcado a vida e a obra de Sebald, tendo este vindo a tomar conhecimento já na adolescência de que o pai fora um soldado nazi. O escritor tinha três anos quando o pai regressou da guerra, e a relação entre os dois foi sempre difícil. Sebald acabou por ver nele tudo o que havia de pior na geração que tinha sido cúmplice com os horrores cometidos pelos nazis, e foi o avô quem teve um papel decisivo na formação do seu carácter, ensinando-o a ler, e transmitindo-lhe, não apenas o respeito pela natureza, como essa possibilidade de sabotagem que reside na forma como contamos histórias. Mas até aos 40, Sebald não foi muito mais que um obscuro erudito, um funcionário meio apagado, primeiro como professor de liceu, e mais tarde dando aulas de literatura alemã na Universidade de East Anglia. Foi ali que fundou um prestigiado centro de tradução, por se sentir revoltado com as poucas obras oriundas de outras línguas que eram editadas no mercado inglês. Alguns dos seus alunos recordam os seus seminários mais como conversas do que como aulas, com margem para digressões subversivas e boas doses de humor. E Sebald incentivava-os a roubarem tudo o que os cativasse no mundo que tinham à sua volta. Angier diz também que os seus artigos sobre escritores alemães causavam irritação entre a comunidade académica pela forma como neles assumia posições bastante provocatórias e também pelo seu desdém pela ortodoxia no que toca a observar os rigorismos daquela crítica, que praticamente garantem que tudo o que sai da academia é tão bafiento e aborrecido que ninguém se disporá a ler e contestá-la.
Foi então, no início da década de 1990, que surgiu Os Emigrantes, o primeiro dos seus livros traduzido para inglês, e que foi recebido por Susan Sontag no TLS como “uma surpreendente obra-prima”. Este conta as histórias de quatro homens, todos eles vítimas da história do século XX, num ensaio seminal que chamou os leitores para essa forma de indagação em que as memórias de várias pessoas surgem adaptadas num filtro dramático, sendo que, embora três das personagens tenham existido mesmo, e a outra seja baseada parcialmente na vida do pintor Frank Auerbach, o que importa é o registo que condensa uma série de informações, bebe nas conversas, devora os factos e as leituras que lhe são úteis e reelabora-as, explorando essa proximidade com a vida real sem lhe ficar subjugada, criando assim essas lembranças que chegam a ser mais fortes do que a própria vida. É um terreno movediço, alimentado por suspeitas, segredos, especulações que se deixam organizar de acordo com uma certa lógica onírica. E depois Sebald introduz ainda esse dispositivo solene de ilustrar os textos com fogtografias a preto-e-branco, as quais produzem um efeito de consternação ainda mais profundo, sem, no entanto, funcionarem senão por um efeito de distanciamento, um convite ao leitor para se perder na contemplação, para se deixarem levar nesses momentos em que ficamos esquecidos de tudo de tanto olharmos. Num dos seus ensaios, Sebald anota que “o momento e o olhar metafísicos resultam de um profundo fascínio em que a nossa relação com o mundo se inverte temporariamente. Olhar é sentir como as coisas nos veem, compreendem que não estamos aqui para penetrar o Universo, mas para sermos penetrados por ele”. A ficção voltava-se de novo para a realidade depois de se ter cansado das armas que até ali usara. E foi esta forma de enredar tudo o que fez de Sebald um escritor tão anacrónico quanto visionário, dispondo de uma linguagem que se apresenta como “um edifício extraordinário, quase uma antiguidade, repleto dos mais refinados lustres” (Wood). E se, no processo, nem toda a gente se mostrava muito contente por ver as suas vidas íntimas e segredos usados ou decantados nestas suas óperas de um sofrimento tão contido quanto persuasivo, Angier defende Sebald, e lembra que “qualquer dos grandes escritores que alguma vez viveram foram sempre implacáveis”.
E o que as suas investigações comprovam é que, se a obra de Sebald não cessa de ir beber ao manancial do acaso, e de nutrir um fascínio imenso pelas coincidências, na forma como depois estruturava a narrativa, como revia a trama dos seus livros, este autor não podia ter sido mais obsessivo, mais escrupuloso, revendo e reescrevendo, agonizando por causa de pequenos detalhes, passando por várias versões antes de chegar à final. Angier diz-nos que os esboços de “Os Anéis de Saturno” ultrapassam as duas mil páginas, que foram posteriormente destiladas até ter chegado às 400 que hoje conhecemos. E esta mesma aplicação extenuante era transposta depois para o processo de tradução dos seus livros, que também geraram inúmeros rascunhos, com Sebald a rever e reescrever várias passagens. Ao todo, o escritor passou mais de 350 horas a trabalhar com o poeta inglês Michael Hulse na tradução de Os Anéis de Saturno. Naturalmente, este desejo maníaco de controlar todos os mais ínfimos aspectos da difusão do seu trabalho levou a que as relações com outros tradutores não tenham sido muitas vezes as melhores.
De tanto se dedicar à produção do seu delicado fio de seda, não é de estranhar que antes da sua morte, Sebald vivesse já sentindo-se achacado por uma série de problemas de saúde, desde as persistentes enxaquecas até dores nas costas que o impediam já de trabalhar longas horas. Os amigos haviam já notado que muitas vezes parecia faltar-lhe o fôlego, e suspeitavam de que o coração já não estivesse nas melhores condições, mas ele sempre recusou ser visto por um médico. De resto, a sua natureza contemplativa fazia com que facilmente abandonasse aquilo que o ocupava, e nos últimoo anos tinha já estado envolvido numa série de acidentes pouco aparatosos. A morte começava a visitá-lo, a tirar-lhe as medidas, e também ele talvez se tenha permitido um certo fascínio, pois, como anotou certa vez, “só a morte por momentos simula uma completa precisão, até uma harmonia, mas a seguir começa logo essa vida completamente oposta, ou seja, a vida a seguir ao ponto zero, onde entra em acção um mecanismo diferente e aquela é totalmente destruída”. Lembrava-se amiúde de um dos aforismos de Kafka: “A nossa salvação é a morte, mas não esta.” E explicava a frase, notando que a vida não desliza suavemente para o silêncio da morte, é a morte que, com uma violência selvagem, irrompe no meio da vida.” Talvez por isso, este autor que levou o lamento ao limite das suas forças, ao ser arrancado à vida já não tivesse nada a lamentar.