Quaisquer memórias ou autobiografias que surjam a Ocidente confrontam-se, inevitavelmente, com o rememorar desse ato inaugural que As Confissões de Agostinho constituem. Com o derradeiro eu sob escrutínio, no espelho de um intimior intimo meo que apenas se tacteia, aceitando expor feridas e fracassos, dúvidas e pecadilhos, assim se deixa ler um coração em busca da verdade.
Nascido, a 4 de Agosto de 1961, no Havai, com avós de ascendência escocesa, uma mãe muito opinativa, opositora à guerra do Vietname e preocupada com as questões da pobreza (trabalhando no âmbito do microcrédito), que casará duas vezes e terá vários problemas financeiros (ao longo da vida), e um pai, vinculado, em termos profissionais, ao governo queniano, que mal conhece (encontram-se apenas uma vez), Barack Obama experimentará drogas, será um «estudante indolente», jogador «ardente» de basquetebol (mas) de talento limitado, frequentador de festas «incessante e dedicado», com discussões adolescentes centradas em desporto, miúdas, música e dinheiro.
Frequentará os melhores colégios do Havai, e terá notas medianas quando apenas à guarda dos avós, mas, herdando o materno hábito de leitura (e com gostos literários à medida dos interesses de eros, a cada momento), no secundário essa circunstância altera-se. Barry, que aos seis anos fora para a Indonésia, e aos 15 terá o seu primeiro emprego, a servir gelados, na Baskin-Robbins, sem nunca ter prestado serviço militar, ingressará na universidade de Columbia, onde viverá como um monge (ler e escrever, eis a sua regra exclusiva).
Mais tarde, ingressará na Faculdade de Direito de Harvard, sendo o primeiro diretor negro da Law Review. Pois bem, este mobilizador comunitário em Chicago, estabilizador de comunidades afectadas pelo encerramento de fundições de aço, com um avô que combatera na II Guerra Mundial, reconhece o banho de humildade que esta primeira experiência significativa de cidadania lhe trouxe – «tive de ouvir o que era importante para as pessoas e não apenas teorizar sobre isso».
Mas, sobretudo, ganha embalo para um salto político, depois de ser já senador estadual. Na desmesura e precipitação de uma candidatura demasiado precoce, e pouco sólida, ao Congresso, reconhece-se quase falido financeiramente, com um casamento – que fora, da sua parte, corolário de um amor à primeira vista com Michelle, já estabelecida como advogada e de feitio nem sempre fácil, mas uma âncora para toda a existência de Obama – sob tensão: «Reconheci que, ao candidatar-me ao Congresso, me deixara impelir não por algum sonho altruísta de mudar o mundo, mas antes pela necessidade de justificar as escolhas que já fizera, ou para satisfazer o meu ego, ou para mitigar a minha inveja daqueles que haviam alcançado o que eu não alcançara», confessa.
Mais tarde, quando uma candidatura presidencial se torna suficientemente verosímil para que os seus próximos o questionem nesse sentido, e conquanto Obama se mostre desinteressado, ou alheio, a tais equações, interroga-se o Presidente (à época) em gestação: «Estaria a ludibriá-los? Estaria a enganar-me a mim mesmo? É difícil dizer».
O certo é que Barack Obama avançará mesmo para a Casa Branca e, longe de grandiloquências laudatórias ou auto-elogios em permanência, prosseguirá a inquisição interior: a sua candidatura à presidência «seria somente vaidade, ou talvez algo mais sombrio: uma fome primária, uma ambição cega, dissimuladas pelas palavras vazias do serviço público? Ou estaria eu ainda a tentar provar o meu valor a um pai que me abandonara?».
Uma coisa tinha por certa: o país estava desesperado por uma nova voz (e o poder encantatório da sua terá um efeito poderoso). Um amigo instiga-o, em definitivo: o carteiro não toca duas vezes, o comboio de um múnus que transformaria, potencialmente, a vida de milhões de pessoas (desejavelmente, para melhor, claro) talvez não tenha outra meia-noite, o homem é ele e as suas circunstâncias e, mesmo sem as fantasias de um messianismo político, há um destino a cumprir: «O poder de inspirar é raro. Momentos como este são raros. Pode pensar que talvez não esteja pronto (…). Só que não é você que escolhe o momento. O momento escolhe-o a si».
O fardo das possibilidades
A campanha presidencial é um tempo de insuflar expectativas, criar sonhos, semear ilusões. Há uma enorme sede do eleitorado, a pregação é forte, o tom arrebatador. Os comícios estão à pinha, chegam a juntar 100 mil («cada comício parece um concerto de rock»), uma estrela emerge no grande palco da política mundial.
E, sem embargo, no meio dos flashes, dos confetis e serpentinas, do fogo-fátuo do vibrante «Yes, we can!», Barack Obama reconhece o caldo de cultura fabricado… para a desilusão posterior: «Já não era a mim que as pessoas viam, com todas as minhas peculiaridades e falhas. Em vez disso, tinham-se apropriado da minha aparência e feito dela veículo para um milhão de sonhos diferentes. Eu soube que chegaria uma altura em que as desapontaria, não estando à altura da imagem que a minha campanha e eu ajudáramos a construir».
Se, em não raras ocasiões, a colocação de desígnios impossíveis de alcançar é uma ratoeira colocada por adversários políticos, neste seu primeiro volume de memórias políticas, Obama reconhece o quanto a sua campanha ajudou a erigir o impossível (que se voltaria contra o próprio). Este flirt com o eleitorado em exaltados discursos com dicção e pronúncia perfeitas, ressoando, em tais predicações, alguns exemplos emblemáticos do século XX – como Luther King ou Mandela – ultrapassaria, e de que maneira, as fronteiras norte-americanas.
Quando Obama recebe o Nobel da Paz, que diz não merecer, reflecte, de novo, sobre o «fosso entre as expectativas e as realidades da minha presidência» e, já em Oslo, na noite anterior a receber o galardão do pacifismo, acolhido por uma multidão com velas, milhares, à porta do hotel em que ficara instalado – «uma visão mágica, como se um grupo de estrelas tivesse descido dos céus» – registaria, em cortante lucidez, que «em certa medida, a multidão lá em baixo estava a aclamar uma ilusão».
Por detrás da atribuição do prémio, uma certa ideia de um Médio Oriente reconciliado, uma missão maior do que o Homem: «A ideia de que eu, ou qualquer outra pessoa, poderia impor ordem àquele caos pareceu-me ridícula». Mesmo no cargo político mais poderoso do mundo há limites ao que é possível conseguir-se; mesmo na hora de celebrar um acordo tão importante quanto improvável sobre o clima, incluindo, nele, a China e os países emergentes (eis uma cena digna de um filme de gangsters), Obama despe de novo as vestes eufóricas para regressar a uma balada melancólica: «Haveria sempre um abismo entre aquilo que eu sabia que deveria ser feito para se conseguir um mundo melhor e aquilo que conseguiria efectivamente fazer num dia, numa semana ou num ano».
A política como arte do possível
É um elemento central e transversal ao conjunto de memórias com que Barack Obama nos cumula: nos cuidados de saúde, na reforma de Wall Street, no domínio fiscal, o critério que o ex-Presidente dos EUA utiliza, para aferir se valeu a pena o que fez, passa por aquilatar se existiu uma mudança para melhor face à herança por si recebida, sobretudo nos sectores mais desfavorecidos da população, bem como no que concerne à classe média.
Acossado pela ala esquerda dos Democratas, claramente desiludida com a sua Presidência, Obama defende, agora, com vigor, aquilo que fez, em uma abordagem política na qual os valores do pragmatismo, dos pequenos passos, das reformas possíveis e do compromisso se antolham determinantes.
Numa escala de 0 a 10, a obtenção de um 1 ou de um 2, em termos políticos, correspondente a pequenas melhorias na vida das pessoas, não lograria, eventualmente, justificar uma plataforma política que se apresentava como significativamente transformadora.
Há, em qualquer caso, alguns argumentos fortes a que Obama deita mão (para justificar o seu «realismo»): 20 milhões de norte-americanos que não tinham, e com a sua Presidência passaram a ter, seguro de saúde. Um ganho extraordinário para o americano comum, ainda que, para se alcançar uma maioria capaz de aprovar a nova legislação, tivesse o Presidente que deixar cair a opção pública de seguro.
Entre a solução ideal – e quando a opção pública foi retirada do projecto de Lei do Senado «os activistas de esquerda perderam a cabeça» – e um avanço muito significativo na vida dos norte-americanos é difícil não concordar que, pelo menos neste ponto tão relevante, valeu a pena.
A crise do Lehman Brothers é um incêndio monumental que surge nos EUA – e que se propaga, com não menor virulência, no prado dos mercados internacionais. Obama decide escolher, em vez de novos talentos, gente experiente a pilotar, não altera o sistema quando, pela primeira vez em décadas, este é questionado com fragor: «A minha tarefa prioritária não era reformular a ordem económica, mas evitar mais desastres».
Se Obama dá nota de que «nos dias anteriores à tomada de posse (…) lera vários livros sobre o primeiro mandato de Franklin Delano Roosevelt e a implantação do New Deal», em realidade, quando comparado com os resultados daquele, não deixa de assumir uma postura modesta: não reestruturara o capitalismo, como havia feito Roosevelt, mas, também, porque entendia que, ao contrário daquele, não tinha mandato para isso. Reformou as práticas dos bancos, mas não o tipo de instituição em causa.
E, se atentarmos na questão fiscal – só com as alterações nas leis de heranças, Bush havia transferido 130 mil milhões para os mais ricos, contribuindo para que o superavit deixado por Clinton se transformasse num enorme défice -, a ideia de solução menos má impõe-se de modo gélido.
Obama confidencia-nos que «embora admirasse [Bill] Clinton, não me parecia que ele tivesse transformado a política como havia feito Ronald Reagan nos anos 80»; ora, dir-se-ia que a confiança cega no mercado continuou a predominar mesmo sob os mandatos de Obama. A sua abordagem passava por «marcar uns pontos enquanto podíamos», mesmo que também defenda: «Promovemos a alteração mais radical às leis que regiam o sector financeiro dos EUA desde o New Deal».
Numa palavra, Obama melhorou a vida de milhões de norte-americanos em muitos aspectos significativos – da Saúde aos impostos e apoios aos mais desfavorecidos -, sendo que para os seus críticos (onde, por vezes, se incluíram Prémios Nobel da Economia, muito próximos dos Democratas, como Joseph Stiglitz ou Paul Krugman, que entendiam que Obama não fora suficientemente longe nas mudanças) não reformou tanto como estava ao seu alcance. E, no entanto, deixará escrito Barack Obama – ele, que adorava o trabalho como Presidente dos EUA – tinha «a rara oportunidade de conduzir a História para melhor» e não a desaproveitou.
Os líderes internacionais
Angela Merkel, com quem Obama se dará bem e na qual confiará, era de «aparência fleumática, mas com sensibilidade analítica»; diversamente, Sarkozy tem «explosões emocionais e retórica empolada», sendo «impelido pelas manchetes ou por oportunismo político». Na caracterização feita por Obama, o Presidente francês é alguém com «arrojo, charme e energia frenética», um demagogo que queria estar no centro das atenções e não era fiável. De resto, Merkel olhava para Sarkozy como uma mãe olha para um filho traquinas.
Quanto a Lula da Silva, «impressionou-me»; «fez reformas pragmáticas que fizeram disparar a taxa de crescimento do Brasil», mas, por outro lado, «alegadamente, tinha os escrúpulos de um líder do Tammany Hall e corriam rumores sobre favorecimentos do Governo, acordos injustos e subornos».
Os retratos mais interessantes são porém os dos líderes russos. Obama situa-os numa Rússia de tradições autoritárias, em que mãos de ferro eram, muitas vezes, respaldadas popularmente. Inscrevendo o primeiro-ministro Medvedev, sempre, sob a tutela do Presidente Putin, escreve: «Eu e Medvedev tínhamos imensas coisas em comum: ambos estudáramos e fôramos professores de Direito, casáramos e constituíramos família alguns anos mais tarde, dedicáramo-nos vagamente à política e fôramos ajudados por políticos mais velhos e ardilosos. Isso fez-me questionar em que medida as diferenças entre nós poderiam ser explicadas pelas respectivas personalidades e disposições, e o quanto era apenas resultado das diferentes circunstâncias. Ao contrário dele, eu tivera a sorte de nascer numa nação onde o sucesso político não me obrigara a fechar os olhos a subornos de milhares de milhões de dólares ou à chantagem de adversários políticos».
Depois de historiar todo o percurso de Putin, suas origens e passagem pelo KGB, assinala: «Como um chefe de armazém, mas com armas nucleares e poder de veto no Conselho de Segurança da ONU (…) Putin lembrava-me aquele tipo de homem que gerira a máquina de Chicago ou o Tammany Hall – homens duros, com a inteligência das ruas, sem sentimentalismo, que sabiam aquilo que sabiam, que nunca saíam do seu ambiente e que encaravam o mecenato, o suborno, a extorsão, a fraude e a violência ocasional como ferramentas legítimas da sua área de negócios.
Para eles, tal como para Putin, a vida era um jogo em que a vitória de um significava necessariamente a derrota de outro; podiam fazer negócios com pessoas exteriores à sua tribo, mas, no final, não podiam confiar nelas. Primeiro, zelavam pelos próprios interesses e só depois pelos dos outros. Num mundo assim, a falta de escrúpulos e o desprezo por aspirações nobres que não se traduzissem em acumular poder, não eram defeitos. Eram uma vantagem».
Relativamente à relação de suma importância com a China, dir-se-ia que o principal apontamento é o seguinte: «Uma China pobre e caótica era um risco maior do que uma China próspera, mas, de facto, cresceu à custa dos EUA».
Em nenhum momento são citados políticos portugueses nestas Memórias, sendo Portugal mencionado por três vezes, a que podem somar-se, ainda, a referência às origens portuguesas do fotógrafo oficial da Presidência, Pete Souza.
Gerar confiança
Entre 2009-2017 o Presidente americano impor-se-á uma disciplina que o retire de qualquer bolha: todos os dias lê 10 cartas de eleitores. Nelas, entre múltiplos exemplos, poderá confrontar-se com uma interrogação que, com as devidas adaptações, não nos seria estranha: «por que é que o Ministério da Justiça não mandou para a cadeia nenhum daqueles bandidos de Wall Street?».
Mas seria, provavelmente, na carta de condolências que enviava a cada família cujo filho perecera em combate que a capacidade empática de Obama é mais sublinhada (diga-se que quando Obama chegou à presidência, havia 180 mil soldados norte-americanos colocados no Iraque e Afeganistão).
Muito consciente de ter sido «investido da autoridade de rebentar com o mundo», compreendeu, desde a primeira hora, que aos EUA «seria necessário, não um salvador solitário, mas um Congresso cooperante». O seu olhar complexo sobre a vida política – longe, pois, de um providencialismo de um homem só (e atento à formação de uma «inteligência colectiva» institucional) – manifestava-se, também, na noção de que «a política consiste menos em acertar em todas as políticas do que em gerar confiança».
Esta não é, de modo algum, uma questão de «sim» e «não» mas de um aturado sopesar de razões. «A nossa missão tinha de ser definida não apenas pela necessidade de garantir que o país não ficava na miséria ao fazê-lo; que questões sobre gastar centenas de milhares de milhões de dólares em mísseis e bases de operações avançadas, e não em escolas ou cuidados de saúde para as crianças, não eram periféricas à segurança nacional, mas sim fulcrais para ela; que o sentido de dever tão intenso que tinha em relação às tropas já no terreno, o seu genuíno e admirável desejo de que tivessem todas as hipóteses de serem bem-sucedidas, poderia ter um adversário à altura na paixão e no patriotismo daqueles que estavam interessados em limitar o número de jovens americanos postos no caminho do perigo».
As reflexões de Obama sobre as limitações da política e de uma Presidência norte-americana incluem ainda a constatação de que «estava a aprender outra difícil lição sobre a presidência: que o meu coração estava agora agrilhoado a considerações estratégicas e análises tácticas, as minhas convicções sujeitas a argumentos contra-intuitivos; que, no cargo com mais poder do planeta, eu tinha menos liberdade de dizer o que me ia na alma e de agir de acordo com o que pensava do que quando era senador – ou apenas um cidadão comum, perturbado ao ver uma jovem ser alvejada pelo próprio Governo».
Ou a relação do político com o tempo: «A presidência muda os nossos horizontes temporais. Raramente os nossos esforços dão frutos no imediato: o âmbito dos problemas que nos caem na secretária é demasiado vasto para isso; os factores em jogo, demasiado variados. Aprendemos a medir os progressos em passos menores – cada um dos quais pode demorar meses a concretizar, nenhum dos quais merecedor de muita atenção do público – e a reconciliar-nos com a ideia de que atingir a nossa derradeira meta, se alguma vez for atingida, pode demorar um ou dois anos ou até mesmo um mandato inteiro».
Ou ainda o modo como a política certa, sem a necessária visibilidade e percepção pública, e com os ciclos eleitorais a marcarem todos os agentes políticos, correr o risco de ser posta de parte: «Isso não me impediu de interrogar durante quanto tempo poderíamos continuar a defender políticas que tinham resultados a longo prazo, mas que, de algum modo, eram criticadas».
Da pena de Obama surge, adicionalmente, uma interrogação clássica: que influência pode ter/tem um (dado) indivíduo (um líder) sobre a história? «Penso na velha questão de em que medida é que as características dos líderes individuais têm influência sobre o curso da História – se aqueles de nós que sobem ao poder somos canais para as profundas e implacáveis correntes dos tempos ou se somos, pelo menos em parte, autores do que está para vir. Questiono-me se as nossas inseguranças e esperanças, os nossos traumas de infância ou memórias de uma bondade inesperada têm tanta influência como qualquer mudança tecnológica ou tendência socioeconómica».
Uma história do nosso tempo
E, de repente, Sarah Palin. Aos 44 anos, mãe de cinco filhos, a governadora do Alasca, membro de uma confissão cristã conservadora, ex jogadora de basquetebol e vencedora de um concerto de beleza numa pequena cidade, que saltara entre 5 faculdades até obter um diploma em jornalismo, antiga apresentadora de programas desportivos, forma dupla com John McCain – um homem, conhecido herói de guerra, apresentado por Obama como probo, mas com considerável maleabilidade tática, mudando de posições, com facilidade bastante, em função do que uma dada maioria momentânea reclama e ainda com a curiosidade de ser proprietário de oito casas – na corrida às Presidenciais de 2008.
De imediato, ajudou a que muitos milhões chegassem aos republicanos. Comportava-se como uma «perturbadora poderosa», afirmando, sem peias, os maiores dislates. «As críticas do New York Times a Palin reforçavam-na», numa altura em que se vislumbrava já que «os velhos guardiões [media] estavam a perder relevância» para as redes sociais, ou os canais de debate nas rádios.
Aliás, Palin assentava na perfeição a um «modelo de negócio dependente de provocar raiva e medo nos espectadores» como aquele a que recorria a Fox News; Sarah Palin era «uma actriz nata (…) [que] não fazia a mínima ideia dos assuntos da governação».
Só que a ignorância grosseira, a falta de preparação, as frases chocantes, e sem qualquer adesão à realidade, em vez de a tornarem pouco credível aos olhos do eleitorado, tinham o efeito contrário junto de vastos sectores da população (que com ela se identificavam).
Palin «era um sinal do que estava para vir». Nos seus comícios, as bancadas enchiam-se com t-shirts que berravam slogans como «Não aos comunistas», e delas saíam uivos para Obama, o Obama «socialista, negro e muçulmano», em palavras de ordem como «terrorista», «matem-no», «arranquem-lhe a cabeça».
Palin e os seus companheiros de bancada perceberam que, ao contrário do que sucedera durante grande parte do pós-II Guerra Mundial em que as linhas divisórias entre partidos não tinham sido demasiado fortes, agora «raramente, os americanos premiavam a oposição por cooperar com o partido no poder», pelo que o permanente «obstrucionismo republicano» – a recusa de colaborar com ou aprovar a menor iniciativa legislativa que adviesse do campo democrata – tinha a sua racionalidade.
A operação Lança de Neptuno
É durante a Presidência de Barack Obama que se dá a captura/eliminação de Osama Bin Laden, líder da AlQaeda, a «base» que arquitectara e operacionalizara os atentados de 11 de Setembro de 2001. O nome de código da Operação foi «Lança de Neptuno», tendo Bin Laden recebido o nome de código «Geronimo». Tratou-se da primeira e única vez em que Obama assistiu em direto, a partir da Casa Branca, a um evento desta índole. Para o concretizar, foi necessária uma violação territorial de um (país) aliado putativo – o Paquistão – de forma flagrante.
O Presidente paquistanês, avisado a posteriori, viria a anuir na estratégia norte-americana. Um software de reconhecimento facial para a CIA viria a comprovar que o alvo fora mesmo o pretendido. Muitos milhares de norte-americanos, a maioria dos quais pouco sabia sobre o Islão e que custeavam os 10 mil milhões de dólares/mês para a guerra no Iraque vieram para as ruas, celebrando o acontecimento.
Os republicanos, críticos acérrimos de uma suposta complacência democrata para com o terrorismo, foram obrigados a saudar Obama e a dar tréguas políticas durante certo tempo. Para o Presidente norte-americano, era claro que «a morte de Bin Laden foi a catarse para o povo americano».
Entre os ficheiros apreendidos na operação Lança de Neptuno, estavam novos planos de ataque aos EUA (note-se que durante a Presidência Obama um terrorista conseguiu entrar num avião com explosivos colados à roupa interior e só o falhanço no detonar daqueles impediu nova catástrofe.
O caso, conhecido como o do «terrorista das cuecas», não deixa de surpreender, na medida em que toda, desde logo nos aeroportos, a vigilância e securitarismo foram ultrapassados, afinal, com um truque aparentemente simples). No âmbito da luta contra o terrorismo, Obama assinou ordem executiva a proibir a tortura, mas não conseguiu fechar Guantánamo como prometera.
Demasiada decência
Barack Obama, tal como Michelle, não foi criado num lar particularmente religioso, tendo vindo, no entanto, a frequentar uma congregação cristã, com presença mensal na eucaristia (mais tarde, mais espaçada). A sua relação com o reverendo Wright iria causar-lhe especiais problemas, numa América muito marcada pelo tema do racismo. Obama tinha a memória de, ainda jovem professor de direito, gravata colocada, havia automobilistas que trancavam as portas do carro quando ele se aproximava. «A questão dos negros e da polícia era mais polarizada do que qualquer outro tópico da vida americana».
No início da campanha para as Presidenciais, Obama notara que os seus discursos, excessivamente pedagógicos, revelavam-se entediantes para muitas pessoas. «Quer eu gostasse ou não, as pessoas eram afectadas pela emoção, não pelos factos».
A questão fiscal e a mobilidade do capital enfraquecia a posição dos trabalhadores. Os salários estavam estagnados e mesmo a classe média estava em francas dificuldades. Para Obama, o objectivo político da sua Presidência era claro: aumentar o salário mínimo, aumentar os impostos para os mais ricos e reforçar os sindicatos.
Se as pessoas associavam isto a comunismo, Obama ria «às gargalhadas», mas percebia que a máquina de propaganda era oleada por homens multimilionários, como os irmãos Koch, que pretendiam manter os seus privilégios e desmantelar o Estado Social.
A propósito da questão fiscal sobeja, ainda, uma pergunta decisiva que muitos não deixaram de colocar-se ao longo dos anos (e de novo quando Trump pôs em prática uma reforma fiscal que beneficiou de modo desproporcional os mais ricos): por que é que os eleitores trabalhadores na Pensilvânia votam contra os seus interesses? Responde Obama: «Esta pergunta já me fora feita mil vezes, sob diversas formas. Normalmente, eu não tinha problema em descrever a amálgama de ansiedade económica, frustração com um Governo federal aparentemente insensível e divergências legítimas sobre questões sociais como o aborto, que empurravam eleitores para as fileiras republicanas. (…) Vamos a algumas dessas pequenas cidades da Pensilvânia e, como em muitas pequenas cidades do Midwest, os empregos já desapareceram vai para vinte e cinco anos e nada veio substituí-los. (…) Portanto, não é de surpreender que tenham azedado, que se agarrem às armas, à religião ou à antipatia para com as pessoas que não são como eles, ou ao sentimento anti-imigrantes, ou ao sentimento contra o comércio internacional, como maneira de explicarem as suas frustrações».
Ao contrário de muitos políticos, Obama confessa que sentiu-se magoado com o seu povo, quando teve uma derrota estrondosa nas eleições intercalares, a meio do seu primeiro mandato: «cansaço», «fúria», «mágoa», «vergonha» são as significativas palavras a que recorre para exprimir o que sentiu (ele que quando estava zangado nunca levantava a voz).
Para lá das questões políticas, ideológicas ou de mundividência, Obama, que considera que a Presidência dos EUA não o mudou, ao longo das quase 800 páginas do I Volume de Memórias dá-nos conta de um lado pessoal que foi construindo na Casa Branca e que passou por deixar de fumar, realização de exercício matinal, caminhada ao fim da tarde, jogos de basquete ao fim de semana, ida aos jogos de basquete de uma das filhas ao fim de semana.
Dos seus gostos e escolhas pessoais, recuando ao seu tempo em Chicago, diz-nos que ouvia áudio-livros de John Le Carré ou Toni Morrison e, mais tarde, escutaria Miles Davis, John Coltrane e Frank Sinatra, tendo no ipod também Marvin Gaye, Outkast ou Nina Simone. Devorou os livros de Philip Roth, Saul Bellow e Norman Mailer. Da formação moral que a mãe lhe dera, fazia parte o Holocausto. A avó materna foi uma permanente inspiração. Gandhi, Lincoln, Luther King e Nelson Mandela foram líderes em que procurou beber sabedoria.
E o certo é que, definitivamente, esta combinação, também ao nível do assegurar do escrúpulo republicano, parece ter dado resultado: «Não tivemos a mais pequena suspeita de escândalo na minha administração». Os mandatos de Obama, para muitos milhões de norte-americanos e cidadãos de todo o mundo, foram vistos como um tempo em que, de algum modo, as coisas, para variar, tinham melhorado (com uma certa sobriedade, compostura, capacidade de articulação em termos políticos e comportamentais). Talvez por isso, aquando da eleição do seu sucessor, um eleitor tenha explicado assim a mudança: «Havia demasiada decência».