Gouveia e Melo contra lóbi da 3ª dose

Henrique Gouveia e Melo deixou recado na reunião do Infarmed: ‘Temos de pensar por nós’. Coordenador da task-force de vacinação é contra a administração generalizada da terceira dose a toda a população sem evidências de que haja necessidade. DGS aguarda decisão da EMA.

Gouveia e Melo contra lóbi da 3ª dose

por Felícia Cabrita e Marta F. Reis

O coordenador da task-force de vacinação considera que a pressão para uma terceira dose generalizada da vacina da covid-19 está a ser movida mais por interesses comerciais do que por evidências da sua necessidade. A posição ficou marcada na reunião do Infarmed, já à porta fechada, depois de os peritos terem recomendado, na antecipação da eventual necessidade de reforço maciço da vacinação, o planeamento desse processo. Ao que o Nascer do SOL apurou, uma das afirmações do responsável de vacinação na parte de perguntas e respostas, que já não é aberta à comunicação social, causou surpresa nos representantes dos partidos na sala:_«É preciso pensar por nós e não ir atrás de decisões de outros países sem base científica», observou Gouveia e Melo.

O Nascer do SOL sabe que a comissão técnica de vacinação aguarda o parecer da Agência Europeia do Medicamento sobre o pedido por parte da Pfizer de autorização de uma terceira dose de reforço da vacina da covid-19 para maiores de 16 anos, estando para já em avaliação a recomendação de uma terceira dose para idosos. Até ao momento, a Direção-Geral da Saúde recomendou apenas a vacinação com uma dose adicional de doentes imunossuprimidos, como doentes com VIH ou doença oncológica.

Na reunião do Infarmed, entre os cenários apresentados pela DGS e pelo INSA, projetam-se no entanto situações em que a imunidade proporcionada pelas vacinas possa diminuir no espaço de um ano, o que aumenta o receio sobre o estado imunitário dos mais velhos quando chegar o período crítico de infeções respiratórias, a coincidir com a altura do Natal e Ano Novo.

A equipa liderada por Raquel Duarte, que fez a proposta de medidas para o outono – defendendo que passem, regra geral, de obrigações para medidas baseadas na avaliação de risco em cada local e auto-responsabilização da população e organizações – defendeu que seja dada prioridade no reforço a idosos e que, antecipando a «eventual necessidade de reforço massivo da vacinação», seja desde já estabelecido um plano que garanta que esse processo «não fica apenas a cargo dos cuidados de saúde primários, condicionando a sua capacidade global de resposta». Isto depois de os centros de vacinação terem funcionado com pessoal administrativo, médicos e enfermeiros dos cuidados de saúde primários, em alguns casos reforçados com profissionais contratados pelas autarquias.

 

Plano em marcha, mas coordenador com dúvidas

O plano estava já a ser desenvolvido pela task-force de vacinação mas até aqui Gouveia e Melo tem afastado um reforço maciço, preferindo-lhe reforços específicos. Um dos argumentos usados pelo coordenador é a taxa de vacinação completa alcançada em Portugal, a mais elevada em todo o mundo a par de Malta (e que deverá alcançar a barreira dos 85% entre a última semana de setembro e de outubro). Por esta altura estarão vacinados 95% das pessoas elegíveis, já que as crianças até aos 12 anos representam cerca de 1 milhão de portugueses, 10% da população.

Na reunião do Infarmed, o vice-almirante manifestou a convicção de que o país atingirá proteção ou eventual imunidade de grupo, apresentando uma análise feita pela sua equipa que correlaciona reduções de incidência da covid-19 à medida que aumentou a cobertura vacinal. Também o Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge (INSA) apresentou uma análise comparativa do RT nos diferentes países em função da cobertura vacinal, concluindo que maiores coberturas vacinais são sinónimo de menor transmissibilidade.

Portugal está com um RT de 0,84, sendo que a epidemia nunca esteve com este abrandamento sem que estivessem implementadas medidas restritivas mais fortes do que as vigoram atualmente, disse Baltazar Nunes. Os dados do INSA mostram que, há um ano, a epidemia estava com tendência crescente desde o início de agosto, com um RT superior a 1 a nível nacional desde 5 de agosto. O RT só voltaria a ficar abaixo desse valor a 20 de novembro, depois de ser declarado um novo estado de emergência a 6 de novembro, a que se seguiria a imposição de recolher obrigatório ao fim de semana à tarde, que vigorou nos concelhos de maior risco até ao Natal. Também as máscaras na rua, agora levantadas, passaram a ser obrigatórias na via pública sempre que não houvesse distanciamento a 28 de outubro.

 

Vacinas há, falta decidir

A comissão técnica de vacinação tem estado a estudar o reforço com a terceira dose, aguardando o parecer da EMA. Até aqui, Israel avançou com a terceira dose para toda a população, França e Alemanha para os mais vulneráveis. Mais do que a presença de anticorpos específicos, a comissão técnica de vacinação está a analisar o risco de hospitalização com doença grave e morte entre vacinados e por faixa etária, explicou ao Nascer do SOL Manuel Carmo Gomes.

A vacinação dos mais idosos, em que há indícios de um desvanecimento mais rápido da imunidade, não havendo no entanto estudos aprofundados que relacionem mais ou menos anticorpos com desfecho clínico, será sempre prioritária, havendo a dúvida sobre se se deveria iniciar por lares ou por idosos na comunidade.

Há no entanto opiniões divergentes e quem defenda a generalização da terceira dose. O Governo – que tem de tomar opções sobre o outono/inverno com a incerteza de um recrudescimento da epidemia e mortes nos mais vulneráveis – mantém a opção em aberto e voltou à discussão durante a semana. A Organização Mundial de Saúde tem pedido aos países mais avançados na vacinação que adiem reforços enquanto a população dos países mais pobres não estiver mais vacinada – e sendo Portugal o ‘caso de estudo’ da vacinação, a decisão de avançar com a terceira dose estaria debaixo dos holofotes internacionais.

Uma das principais vozes contra o reforço generalizado da vacinação já este outono-inverno nos países ricos tem sido o diretor-geral da OMS, que concorre a um novo mandato à liderança do organismo da ONU. Tedros Ghebreyesus considerou o reforço nesta fase «imoral», tendo apontado o dedo às farmacêuticas. «Não ficarei calado a ver que as empresas e países que controlam o fornecimento global de vacinas pensar que os pobres devem contentar-se com sobras», afirmou.

Esta sexta-feira, no Porto, a ministra da Saúde afirmou que, se for necessário dar uma dose de reforço, «há quantidades para, se for necessário, revacinar a totalidade da população portuguesa». Na reunião do Infarmed, Gouveia e Melo tinha indicado haver disponibilidade de vacinas, mas centrando o reforço na população com mais de 65 anos. O vice-almirante começou por declarar que, na sua perceção, «a primeira batalha contra o vírus está ganha», garantindo depois que o país tem 1,1 milhões de doses da vacina em reserva e vai receber mais no último trimestre. «Temos vacinas sem preocupação, eventualmente para uma terceira dose, se necessário um reforço acima dos 65 anos», disse.

Vacinas não parecem faltar, estando por decidir se, como, quando e quem as deve tomar e se com um reforço agora ou reforços regulares anuais, como na vacina da gripe. E se com as atuais vacinas, com vacinas adaptadas às novas variantes ou mesmo uma vacina dupla contra gripe e covid-19 – já em ensaios. A Direção-Geral da Saúde e o Infarmed anunciaram em julho que Portugal, no âmbito das negociações europeias, já tinha dois contratos com Pfizer e Moderna para mais 14 milhões de doses para 2021 e 2022 e, para o ano de 2023, um contrato com a Pfizer no valor de 10 milhões de euros. Até ontem, e já violando há muitos meses os prazos previstos para reporte de contratos públicos, continuavam publicados no Portal Base apenas os dois primeiros contratos com a Pfizer, no valor de cerca de 89 milhões de euros (mais IVA) e dois contratos com a Moderna no valor de 45,9 milhões de euros (mais IVA), não tendo sido publicitados os contratos com a AstraZeneca e Janssen.