Camarões. País em guerra vai receber a Taça das Nações Africanas

A esperança de uma evento sem atentados diminuiu quando separatistas interromperam o primeiro-ministro com fogo de metralhadora.

Hotéis, restaurantes e bares do popular bairro de New-bell, em Douala, terra natal do lendário avançado Samuel Eto’o, já começam a ser renovados para receber a Taça das Nações Africanas de 2021, em janeiro do próximo ano. Para muitos habitantes deste país apaixonado por futebol, com uma longa história nos anais do desporto rei, trata-se uma oportunidade de complementar os seus parcos rendimentos, com uma enchente de adeptos vindos de todo o continente, de recuperar após dois anos de crise, confinamentos devido à covid-19 ou, talvez pior ainda, de sucessivos surtos de cólera, malária e sarampo. “É uma verdadeira oportunidade de negócios”, garantiu Magloire Ndedi, gestor de um hotel em New-bell, à agência Anadolu. “Sabemos que teremos imensos clientes durante a competição”. Outros queixam-se do custo excessivo do evento, num país tão pobre, falam de estádios de futebol construídos com orçamentos misteriosamente acima do preço de mercado, recorrendo a empréstimos com juros exorbitantes nos mercados internacionais.

Para complicar tudo, a pouco mais de trinta quilómetros de Douala, fica a região sudeste dos Camarões, que, junto com a região nordeste, foi proclamada como República da Ambazónia pelos separatistas anglófonos, liderados por guerrilheiros como o infame “General Sem Piedade”. Desde há cinco anos que travam uma sangrenta guerra civil contra o Governo deste país maioritariamente francófono, com pelo menos quatro mil mortos e 700 mil deslocados. Enquanto isso, no norte dos Camarões, os jiadistas do Boko Haram, cruzando impunemente a porosa fronteira com a Nigéria, escalam os seus ataques.

Os receios quanto à segurança da Taça das Nações Africanas de 2021, que os separatistas juraram travar, são enormes. Ainda esta terça-feira o próprio primeiro-ministro Joseph Dion Ngute, que gosta de se apelidar de “apóstolo da paz”, dirigiu-se à cidade de Bamenda, no noroeste, coração da insurgência, procurando reunir com dirigentes, sindicatos e associações locais, com o propósito expresso de travar a guerra civil.

“É o momento deste sofrimento acabar para todos nós. Foi isso que me trouxe aqui”, dizia Dion Ngute, em pigdin, uma mistura de línguas africanas e inglês, quando foi interrompido pelo estrondo de rajadas de metralhadora, vindo de perto do centro da cidade, onde discursava. O primeiro-ministro, sobressaltado, foi de imediato agarrado e arrastado para o carro por um guarda-costas vestido de fato e colete à prova de balas, enquanto a multidão se virava, em estado de pânico, mostram vídeos que se tornaram virais nas redes sociais, segundo a Reuters.

Horas depois, a policia camaronense lançava o alerta para a possibilidade de ataques terroristas em grandes metrópoles, sobretudo Douala, Yaoundé, Bafoussam, tudo cidades onde daqui a três meses decorrerão os jogos da Taça das Nações Africanas. Edifícios públicos, hotéis, bares e supermercados terão de contratar seguranças munidos de detetores de metais, avançou o Journal du Cameroun, havendo receios de ataques com explosivos.

Não é algo implausível. Muito mudou desde que o Governo camaronense suprimiu brutalmente as greves e manifestações de 2016, quando anglófonos, que compõem quase 20% da população, ou seja, são 17 milhões, exigiam que a sua língua fosse reconhecida pela administração pública, e o fim do subdesenvolvimento da região. Os protestos viraram motins, subitamente havia grupos de guerrilha, que hoje são peritos no uso de artefactos explosivos improvisados, os famosos IED que, semearam terror entre civis e tropas da NATO no Afeganistão e no Iraque.

Desde março que todas as semanas são divulgados na internet vídeos de caravanas de Toyotas dos militares a avançar por estradas enlameadas, no meio da floresta, acabando com destruição e gritos dos feridos. “Estes ataques têm sido mais frequentes, mais mortíferos, e mais importante, não pararam”, escreveu a African Arguments. A situação piorou desde que separatistas camaronenses montaram uma aliança com o grupo Povo Indígena do Biafra (IPOB), que tenta ganhar a independência desta região nigeriana vizinha, permitindo que munições, equipamento e armamento como lança-rockets cruze a fronteira.

Que os independentistas deem mais um salto na sua capacidade operacional, colocando os seus IED em centros urbanos, é um dos receios. As incursões destas milícias em bairros da cidade de Limbe-Buea, em julho, queimando carros nos arredores do Limbe Omnisport Stadium, que receberá quase todos os jogos do Grupo F, ou seja, Tunísia, Mali, Mauritânia e Gâmbia, chegaram a ser vistas como uma ameaça ao evento.

Aliás, esta competição pareceu em risco desde o início. Os Camarões, escolhidos como anfitriões pela Confederação de Futebol Africana (CAF, na sigla inglesa) em 2014, antes da guerra civil eclodir, chegaram a perder a possibilidade de receber a Taça das Nações Africanas de 2019, quando a CAF decidiu expandir a fase final da prova, passando a incluir 24 em vez de 16 seleções. Consideraram que os Camarões ainda não tinham infraestrutura para algo dessa escala, passando essa data para as mãso do Egito.

Como tal, o Governo dos Camarões passou os últimos anos a desenvolver freneticamente essa infraestrutura, com uma pandemia pelo meio. E com suspeitas de corrupção generalizada, tendo dezenas de milhares de milhões de francos CFA (654 valem um euro) a ir parar de forma suspeita às mãos de empreiteiras, sobretudo francesas, sem concurso público, denunciaram jornalistas camaronenses à France Press.

“Em termos de infraestrutura, os hotéis, as estradas, ainda há muito por fazer, dado que só estamos a 60%, assumiu Cisse Bamanga, analista da Hausa Television, à ESPN, no início deste mês. Até há estádios por acabar, como o Olembe Stadium, em Yaoundé, na capital, que deveria ter capacidade para 60 mil espetadores, e estão a ser pensadas alternativas, como o Stade Omnisport de Bepanda, em Douala. Só o tempo dirá se têm qualidade para receber estrelas do calibre mundial, como o egípcio Mohamed Salah, ou o senegalês Sadio Mané, habituados à Premier League.

Seja como for, a esperança é que a Taça das Nações Africanas não vire um marco de tragédia na longa guerra civil do país, apesar das ameaças, mas um fator de unidade. “Especialmente para a nossa sociedade, tão dividida por tribalismo e impulsos políticos, esta competição porá em pausa estes conflitos, para sublinhar a paixão pelo desporto, que todos partilhamos”, assegurou à Anadolu Serges Espoir Matomba. Este político e antigo candidato presidencial, oriundo da mesma cidade de Eto’o, mostrou-se orgulho das cinco Taças das Nações Africanas ganhas pelo seu país, só batido em troféus pelo Egito. “Muitas pessoas descobrirão os Camarões pela primeira vez e poderão ver o novo rosto do nosso país”.