Paul Garassus. “A segmentação teórica do público e privado não tem nenhum interesse”

Paul Garassus esteve esta semana em Portugal e foi recebido pela ministra da Saúde. Defende que a pandemia mostrou que a colaboração entre setores é essencial e pede avaliação de qualidade pelos mesmos critérios para todos. “Não faz sentido dizer que só por ser público é bom”, diz.

Paul Garassus. “A segmentação teórica do público e privado não tem nenhum interesse”

Disse no final do ano passado que a hospitalização privada tinha sido um recurso negligenciado na resposta à pandemia na Europa. A pressão do último inverno levou a uma mudança?

Acho que não se pode falar de mudança mas do que aprendemos. Não estávamos preparados para lidar com uma crise assim, um tsunami que varreu o mundo e que nos colocou um problema: como gerir a segurança dos cidadãos, não apenas no setor da Saúde, mas a nível global. Foi inesperado. Vimos muitas hesitações no início e, da parte dos hospitais, percebeu-se que não estávamos preparados.

Havia um excesso de confiança nos diferentes países sobre a capacidade dos seus sistemas de saúde?

Talvez mas não foi apenas isso: não estávamos preparados para algo com esta intensidade. A dificuldade não era apenas ser uma epidemia, mas uma epidemia perigosa, rápida. Todos os sistemas de saúde se sentiram rapidamente sobrecarregados. Lembro-me muito bem do que foram aqueles primeiros tempos na região do Norte de Itália, na Lombardia, onde houve um forte recurso ao setor privado e mesmo assim houve problemas.

Sendo uma região com muitos recursos de saúde.

Sim, uma região rica, bem organizada. Penso que a conclusão é que os sistemas de saúde inventaram uma resposta eficaz para o que tinham à frente. Adaptaram-se bem mas isso levou tempo e percebeu-se que os planos previstos para situações excecionais foram completamente ultrapassados.

É aí que defende que o setor privado poderia ter sido mais envolvido?

Estávamos disponíveis mas não fomos logo solicitados. No início a questão foi tratada como um problema de saúde pública e não era apenas isso. A questão era como garantir cuidados de saúde às pessoas em cada território. Todos os Governos foram procurar como primeira resposta os hospitais públicos. Ficaram sobrecarregados e o segundo reflexo foi então a colaboração. Todos os hospitais privados que foram solicitados responderam ‘presente’. Dou-lhe um exemplo: na região de Île de France, em Paris, com 10 milhões de habitantes, o diretor da agência regional de Saúde convocou hospitais públicos e privados. Os privados ficaram com 25% dos doentes de cuidados intensivos.

Em Portugal, vimos um momento em que os hospitais não se mostravam em Lisboa disponíveis para receber doentes com covid.

É preciso ter em conta três elementos. Uma primeira questão é saber se os hospitais têm capacidade e sabemos que os cuidados intensivos estão primordialmente no público, a capacidade não é simétrica. Depois, esse pedido foi feito prioritariamente aos hospitais públicos. Por fim, quando foram solicitados, os hospitais responderam afirmativamente, colocando a questão do financiamento. E esta é uma questão prática. São cuidados exigentes que têm custos.

O setor privado não poderia ter cofinanciado estes cuidados com lucros anteriores, e dá-los gratuitamente?

Respondo-lhe, mas antes deixe-me dizer que a primeira coisa que esta crise nos mostrou é que a colaboração entre setores, seja qual for, é essencial. Estive com o ministro da saúde francês na semana passada, que nos agradeceu todo o envolvimento. A todos: setor público, setor privado não lucrativo e setor privado lucrativo. A segunda questão é perceber como se financiam os hospitais privados: dependem de uma única fonte de receitas que é o pagamento pelos doentes tratados. Se o Estado não pagar, como é que são pagos esses tratamentos? Não conheço nenhum sítio onde se tenha dito: vamos fazer uns cálculos para ver se temos lucro. Não, o que todos os profissionais disseram foi queremos tratar as pessoas o melhor que for possível e que sabemos.

Houve setores onde a faturação disparou em ano de pandemia. Não foi o caso dos hospitais privados?

Não. Por um lado houve um aumento de custos. Acompanhei como os hospitais alemães iam à China buscar material. A segunda questão, que trabalhámos com os hospitais espanhóis por exemplo, foi que tivemos um tsunami de doentes covid mas muitas clínicas fecharam, os doentes não apareciam. E o que dissemos na altura foi que os hospitais podiam ser a segunda vítima da covid: se não trabalhamos, como é que pagamos ao pessoal, como é que mantemos as estruturas? Vimos que Governos em França, Suíça tiveram uma abordagem muito generosa no sentido de dizer pagamos-vos de forma equivalente ao ano anterior mas mantenham-se. Foi fundamental. Alguns Governos decidiram que era fundamental proteger a oferta de cuidados do risco financeiro que foi a pandemia, que afetou também este setor. Houve um entendimento de que havia uma proteção semelhante para todos os setores. E, como disse, essa para mim foi uma das grandes lições da crise: a segmentação teórica e jurídica de setores não tem nenhum interesse. Somos pagos com dinheiro público. Opor o estatuto privado e público não faz sentido. A questão é estão prontos, podem servir a população?

Não percebe os receios de que isso gere mais despesa, favoreça uma maior mercantilização da Saúde?

Aceito discutir todas as questões, mas penso que a questão tem de ser cada vez mais quais são os hospitais eficazes e financiar cuidados de cuidados de qualidade.

Esta semana um artigo de opinião no The Guardian falava de como hospitais nos EUA cobram 11 dólares por avaliar o estado de um doente que chora numa consulta ao arrancar um dente. Não podemos ir parar aí?

Isso não é a Europa. Porque é que lá gastam 18% do PIB em saúde e cá 10%? Não é essa a minha filosofia e não penso que seja comparável. Na Europa temos um financiamento da saúde pelos Estados de acordo com contratos e quando somos contratados pelo setor público regemo-nos da mesma forma que os hospitais públicos. O que li esta semana no Financial Times foi que no Reino Unido, a maioria das operações ao joelho, anca, estão a ser feitas no privado, a pedido do NHS (serviço nacional de saúde inglês). Encontrei há duas semanas o Jeremy Hunt [ex-ministro da Saúde britânico] que nos chegou a dizer salvem o NHS. Há uma coisa em que é preciso refletir, quais são os pagamentos das pessoas. Se são elevadíssimos nos EUA, perguntem porquê aos americanos, não aos europeus. Em França, as despesas diretas das pessoas, aquilo que chamamos as despesas out-of-pocket, é de 7% e o privado faz mais de 50% das cirurgias. Qual é o problema? E isto leva-nos para outra coisa, que é pensar no papel que podem ter seguros complementares, como lhe chamamos em França. Os trabalhadores pagam a Saúde através da Segurança Social e dos impostos. Em França é assim e 85% dos franceses têm um seguro complementar que não é muito caro e que pode cobrir idas dentistas, óculos, mais alguns atos, é um complemento em áreas que as pessoas têm despesas extra. Com este mix de Segurança Social e seguro complementar, assumem 7% da despesa diretas com saúde. Podemos ainda invocar se esta despesa impede alguém de se tratar, é possível, mas na esmagadora maioria das situações as pessoas podem ir a um hospital público ou privado, sem despesas excessivas.

Em Portugal não existe esse modelo e as despesas diretas da população estão perto de 30%.

Não conheço suficientemente bem a realidade portuguesa, o que sei que é verdade em muitos países do Sul e do Leste europeu é que os preços hospitalares não são suficientes para garantir a qualidade. Sabemos que a pressão sobre os serviços de saúde para diminuir custos é enorme e a questão tem de ser onde é que vamos encontrar a eficiência para manter a qualidade dos cuidados. É este compromisso que temos de garantir e nisso o setor privado é imaginativo.

Esteve esta semana com a ministra da Saúde portuguesa, que também já disse que na pandemia a colaboração entre setores foi essencial. Têm preocupações comuns?

Foi um encontro amigável e penso que a ministra está muito ciente dos problemas da Saúde no futuro próximo. Falámos da questão da qualidade e a minha mensagem foi muito sobre a necessidade de se avançar na mudança do pagamento pela quantidade para o pagamento pela qualidade, que é a área a que me dedico em França e ficámos de partilhar experiências. No fundo é passarmos para um sistema em que se publicam dados sobre resultados, incidentes adversos e tudo isso influencia o financiamento hospitalar.

Que experiência têm em França?

Existe um programa que se chama IFAQ (Incitation Financière à l’Amélioration de la Qualité). Neste momento representa 5% a 10% do financiamento e estamos a negociar o financiamento de 2 mil milhões de euros para todos os hospitais, sejam públicos ou privados, em função de critérios de qualidade. Existe um forte compromisso do Presidente Macron com esta transição. E somos chamados a estar na mesa de negociação, as ideias do setor privado são aproveitadas e temos o mesmo respeito que o setor público.

Em termos de efeitos adversos, há uns anos houve uma discussão o Reino Unido sobre os cirurgiões divulgarem a taxa de mortalidade nas suas operações. É por aí?

Não gosto de falar do Reino Unido porque são exagerados, mas temos de avançar nesta área. Estou muito focado no que é preciso fazer para melhorar a segurança dos doentes. O último encontro global foi em Tóquio. Um colega inglês perguntava se sabia qual era o maior serial killer no Reino Unido? Respondeu: ‘o NHS’. Não é uma anedota. Temos de reduzir eventos adversos graves, não hesitar em analisar as situações críticas em cada instituição e agir, fazer a informação chegar aos doentes e empoderá-los nas suas escolhas, porque isso vai induzir mais qualidade no sistema. Mais um exemplo francês: somos supervisionados pela alta autoridade de saúde com os mesmos critérios para hospitais públicos e privados. Não faz sentido dizer que só porque é público é bom. Temos de controlar isso. E é preciso avaliar também a satisfação dos doentes.

Voltando à imagem do serviço de saúde como serial killer, questões como infeções hospitalares, quedas, foram desvalorizadas ao longo dos anos?

Acho que é preciso interrogarmo-nos porque é que estas coisas demoram a resolver. Para começar, penso que é preciso mais dados e partilhar informação. Até porque é isso que importa às pessoas: onde é que a minha estadia pode ser segura? Onde posso ser melhor tratado? É isto que interessa, não se é público ou privado.

Mas acha que o setor privado tem essa cultura mais desenvolvida?

Se não tivermos estamos mortos.

Como se explica que as taxas de cesariana nos hospitais privados sejam muito mais elevadas que no público, acima do que recomenda a OMS?

Publiquem-se esses dados. A informação é essencial para melhorar a qualidade. Não para pôr os serviços em concorrência, mas para se ver onde estão as boas equipas e aí temos de o aceitar. Represento a UEHP na OCDE, que tem um comité onde esta discussão sobre como é que público/privado podem desenvolver melhores serviços para os cidadãos está muito presente. Somos parceiros. Como prestadores privados, temos de discutir com Governos, com a academia, para provar, não apenas dizer, que somos uma parte da solução para melhorar a qualidade dos cuidados e investimentos estratégicos em saúde. Este é o meu grande objetivo. Não sou um fazedor de dinheiro. Não sou pago nestas funções. Ter a mente aberta hoje é ver que esta relação entre público e privado é a única maneira de avançar.

É esse sinal que vê na ideia de União Europeia da Saúde, que tem sido reforçada por Ursula von der Leyen?

Sim, temos feito apresentações na Comissão Europeia e muito nesta lógica de apresentar resultados.

Sente que o setor privado tem responsabilidade passada nessa ideia de que só querem fazer dinheiro?

Quem disse isso? Arranje uma pessoa que me diga isso na cara. Não estou a ser ingénuo. Mas falamos de investimento estratégico, qualidade, segurança. Aceito todas as discussões, incluindo sobre resultados financeiros. É possível encontrar dinheiro para aumentar a qualidade dos cuidados? É a questão.