Filipa Martins: “A idade é, para mim, só um número”

Depois de conquistar a melhor classificação de sempre na ginástica portuguesa, nos Mundiais, e de criar um movimento com o seu nome, Filipa Martins aponta a Paris’2024, mas, primeiro, os treinos e o curso. Ginasta desde os 4 anos, cresceu entre a escola, os treinos e a disciplina, mas não acredita ter perdido alguma coisa…

Filipa Martins: “A idade é, para mim, só um número”

Vi a tua entrevista ao DN, onde falas do facto de o Marcelo Rebelo de Sousa não te ter ligado. O que é que achas que leva a isso, a que pareça que há níveis diferentes de importância dos atletas nos seus feitos, especialmente em comparação ao futebol?

Era algo que eu não tinha pensado, porque não estamos habituadas a ser recebidas por ele… Foi um jornalista que perguntou «Olha, foste recebida?», e eu respondi «Não». E ele voltou a perguntar, «Mas deram-te os parabéns?», e eu voltei a responder… «Não». Mas é algo que para nós é comum, porque não estamos habituados a isso. Acaba por ser uma modalidade que começou a ser conhecida só agora, porque muita gente não conhecia a ginástica quando eu comecei a praticar e agora, pouco a pouco, está a crescer. É uma modalidade que não tem os apoios que se calhar o futebol tem, financeiramente, por isso, acaba por ser uma modalidade que também ninguém apoia muito, e em que ninguém se interessa muito… acaba por ser um bocado esquecida. 

Mas o que é que achas que pode ser feito para mudar isso? Ou o que é que e está a ser feito?

O que é que está a ser feito, não sei. Sobre o que é que poderia ser feito… Acho que, para a quantidade de horas que nós treinamos, podia ser um desporto profissional, como são os outros – recebermos e conseguimos viver dele, o que é impossível para nós. 

É? Isso não é uma possibilidade?

Não, de todo. É impossível. Normalmente nós até pagamos para treinar, não é o clube que nos paga para nós estarmos lá, por isso são realidades um bocadinho diferentes.

Isso é assim em todo o lado ou é um caso específico de Portugal? Há sítios onde saibas que dá perfeitamente para viver disso?

Sim, nos Estados Unidos, por exemplo, a ginástica é como se fosse o futebol em Portugal, por isso também tem a ver um bocado com a cultura desportiva de cada país.

Gastando 6 horas por dia a treinar, fica pouco tempo para ter um emprego… Quais são as possibilidades então?

Pois, é praticamente impossível. Se já tivesse acabado a faculdade, já tinha saído da ginástica porque tinha de viver de alguma coisa e tinha de trabalhar. Claro que temos alguns apoios do Comité Olímpico e conseguimos alguns resultados para conseguir obter uma bolsa, mas acaba por ser reduzida. Porque é um apoio mais para treino ou alguma coisa que precisemos durante a nossa preparação, para algum campeonato, ou para preparação para os Jogos Olímpicos, e não algo financeiro mais estável, como um ordenado.

Nesse caso, que planos é que tens para depois de acabar a faculdade e teres de enfrentar essa realidade? 

Espero acabar a faculdade este ano, mas ainda tenho o foco em Paris’2024, por isso não vou começar a trabalhar. É claro que é sempre complicado, porque não consigo ser independente, tenho que estar sempre a viver com os meus pais, e são eles que me ajudam e sempre me ajudaram. Sem eles, não estava aqui hoje, possivelmente. Quando deixar a ginástica, eu gostava de continuar ligada, e ser treinadora, mas isso é um bocado mais para frente, ainda não pensei muito nisso [risos].

Mas então Paris 2024, já está na mente, não é?

Sim, sim. 

Antes desta viagem ao Japão…

Já foi a terceira [risos]. Foi esta [onde disputou os Mundiais e garantiu a melhor classificação de sempre na ginástica portuguesa], os Jogos Olímpicos [Tóquio’2020] e, antes, tinha feito um estágio no início de 2020, de preparação para os Jogos.

Ah, então já conheces aquilo de trás para a frente… 

Sim sim, mais ou menos [risos].

O que é que achas que te marcou mais, o que é que mais aprendeste com a experiência, com a tal melhor classificação de sempre?

É algo a que eu já habituei um bocadinho os portugueses, porque consegui fazer história desde cedo. Fui a primeira a ir à final de um Campeonato da Europa em ‘all-around’, a primeira a ir à final de um Campeonato do Mundo em ‘all-around’, depois a final de paralelas, depois o Europeu, o Mundial… o elemento! Acabam por ser muitas coisas e acho que ainda não caí bem na realidade deste ano. Foi tudo ao mesmo tempo, e foi mesmo um ano incrível. Mas não sei, sinto que também estou a conseguir que a ginástica em Portugal seja mais reconhecida e o nome de Portugal lá fora seja já respeitado, e valorizado, e que não pensem ‘Ah, este país não importa’. Sinto que vou conseguir fazer com que a ginástica cresça a esse nível. Claro que depois é muito complicado continuar a haver gerações futuras, porque também não há formação de treinadores, que acabam por também não conseguir fazer isto de forma profissional. Então acaba por ser uma bola de neve. Ninguém aposta, nem em treinadores nem em atletas, e acabamos por ter de estudar/trabalhar e treinar. Todos os treinadores que eu tive são professores universitários e dão treino complementar. 

Isso é realmente uma situação complicada, acabam por não conseguir-se focar-se sempre…

É assim… E depois ainda acabamos por receber muitas perguntas, tipo «E resultados? E medalhas?»… Acabam por nem sequer apoiar-nos para nos conseguirmos dedicar àquilo, mas depois nem percebem que a nossa vida é sempre a correr de um lado para o outro. Por exemplo, não temos fisioterapia, então acabamos por ter de nos deslocar para lá, fica um dia completamente corrido… E o descanso, que é muito importante e faz parte do treino fora do ginásio, acaba por também ficar afetado.

E ainda assim, com essas condições, o que é que sentes que te levou a conseguir bater todos estes marcos históricos?

Sempre gostei muito de fazer ginástica, e para mim… é a minha vida. Faço isto desde que tenho 4 anos, independentemente de receber dinheiro ou não é algo que gosto de fazer, que faço com muita paixão, e algo a que me dedico ao máximo para ser cada vez melhor. E também me concretiza… Treinar, competir e querer ser cada vez melhor. Por isso, quando temos algum reconhecimento e apoio é sempre melhor. É sempre bom conseguirmos ser melhores, independentes e ter as nossas coisas, estar mais tranquilos, sem ter que pensar no futuro próximo, em termos de trabalho e assim. Sempre fiz isto por paixão, e porque gosto muito, mesmo. 

Como é que enfrentas a questão de seres uma ‘veterana’, aos 25 anos? Sentes um peso por eventualmente estar a competir com atletas mais jovens, ou levas mais pelo lado de ter mais experiência?

Acho que hoje em dia a modalidade tem cada vez atletas mais velhas. A idade é, para mim, só um número. Agora, claro que sentimos que, quanto mais velhas, mais custa treinar, mais custa recuperar, principalmente de lesões. Felizmente, nunca tive assim muitas lesões, claro que já tive algumas chatas, já fui operada algumas vezes ao tornozelo direito, principalmente, porque acabamos por ter muito impacto. Agora, para mim, a ginástica vai continuar até o corpo deixar. Às vezes é sorte, até. Há muita gente que desiste cedo porque tem lesões e não consegue continuar, há muita gente que nem sequer consegue atingir os patamares de receber algum, acaba por entrar na faculdade e sai… então acaba por ser assim. Há miúdas que têm muito jeito, mas pensam, ‘O que é que eu vou fazer? Tenho 20 anos, estou na faculdade, não recebo nada… o que é que estou aqui a fazer?’. E isso acaba por desmotivar sempre os atletas… Mas no meio disto tudo, eu acho que a idade é só mesmo um número.

Achas que isso pode ser um dos fatores que leva a que as carreiras dos ginastas em Portugal não se estendam tanto? É a questão da falta de segurança financeira?

Sim, sem dúvida. Se calhar, se eu não conseguisse ter tantos resultados como tenho, já não fazia ginástica… já tinha começado a trabalhar ou algo assim.

Não é só uma questão física, então. Mas disseste-me que não tiveste muitas lesões… estou curioso, é uma questão de sorte? Muito cuidado?

Não sei, eu nunca tive lesões de uma queda ou assim, é sempre de impactos excessivos e muitas competições, e sempre aliado à sobrecarga. Claro que chega sempre um momento em que nós aprendemos a treinar com dor e depois de tantos anos já estamos habituados. Acabamos sempre por ter uma dor… Por exemplo, tanto neste Campeonato do Mundo como nos Jogos eu estava com os pés a doer, e já sabemos como aliviar a dor, às vezes tomamos algo para conseguir competir melhor, mas o alto rendimento não é saudável para ninguém, nem aqui [na ginástica] nem em nenhum desporto.

Pois, parece-me que treinar com dor não soa a algo muito saudável…

Pois, acho que todo o desporto é saudável, tirando o desporto de alto rendimento, que deixa de ser saudável precisamente porque é de alto rendimento [risos].

O que é que te leva a continuar? Mesmo com toda essa dor e sacrifício?

É o gosto, mesmo. É eu saber também que acho que consigo dar mais, e também quero mais resultados para mim.

Quando começaste a ter uma carreira mais profissional, sentias que ias conseguir chegar tão longe, em termos de feitos, e, aos 25 anos, a competir?

Não, nunca pensei muito nisso. Desde nova, sempre me disseram que tinha algum talento, mas há tantas ginastas que têm talento e depois perdem-se um bocado no caminho, ou não gostam de treinar… e eu sempre gostei muito de treinar e aproveitei que também tinha um bocadinho de talento. Desde cedo comecei a ter alguns resultados, então acho que isso também me motivou a querer mais e a trabalhar mais, mas às vezes é sorte, também…

Já são praticamente 20 ou 21 anos a fazer isto… 6 horas por dia, todos os dias… Como é que manténs ainda essa vontade de acordar de manhã e dizer ‘Vou treinar, vou ser melhor e vou conseguir’?

Depois deste ano, acho que tenho a motivação toda [risos]. Mas sim, ali os períodos depois da quarentena foram complicados. Ainda por cima foi um ano sem competições nenhumas, e acabou por ser onde surgiu o Martins [movimento original cunhado por Filipa Martins], que também nos deu motivação para continuar. Tentamos agarrar-nos sempre a outras coisas e não reclamar de não haver provas, até porque reclamar não adianta nada.

Essa situação do movimento Martins foi praticamente um bebé da quarentena, não foi?

Foi, foi sim [risos]. Nós andávamos a fazer vários elementos diferentes, não tínhamos competições, foi um período de experiências. Passado algum tempo, fomos ao código ver se existia esse movimento que estávamos a experimentar e percebemos que não existia. A partir daí pensamos ‘Olha, não existe, se calhar era fixe pôr o nosso nome. Já viste?’. É que, até agora, não existia nenhuma ginasta portuguesa que tivesse feito isto. Então, nós decidimos tentar e foi algo que nos deu motivação. Foi o que nos cativou.

Mas como é que faziam isso a partir de casa? Tinhas material?

Não, não. Nós estivemos 2 meses e meio em casa e, depois, quando voltámos ao ginásio, começámos a treinar, e esse ano todo não tivemos competições. Foram todas canceladas. Existiu o Campeonato da Europa em dezembro [2020], mas a maior parte dos países não foi. Nesse ano, depois de começar a treinar, andámos ali quase sete meses, entre agosto e abril, só a treinar, sem nenhuma competição, e fomos experimentando coisas.

Mas consegues explicar um pouco melhor o processo de criação do Movimento? Porque agora, acabado, parece tudo muito bonito, mas como é que se parte do zero e se cria algo assim?

O gesto simples sem a meia volta eu já tinha começado a treinar em setembro do ano anterior. E esse já foi um processo demorado, porque eu já tinha tentado esse movimento há alguns anos e ele não saía nem por nada [risos]. Começámos a treinar, treinar e treinar, e depois, com a quarentena, deixei de treinar esse movimento. Quando voltei a treinar esse movimento começou a sair mais consistente. E nessa altura o meu treinador começou a sugerir que eu experimentasse incluir a tal meia volta. Experimentámos, vimos que não existia, tentámos fazer por ficar com o nome no Código. Antes de o fazer no Campeonato da Europa, tivemos de enviar para a Federação Internacional, para ser aprovado antes de o apresentar e, depois, no Campeonato da Europa, só se eu conseguisse mesmo fazer completamente e agarrar é que ele fica mesmo [aprovado], se não, também não serve para nada. É todo um processo ainda um bocadinho complexo.

E há muita pressão, não é? Basta um erro para não valer…

Nós íamos muito numa de tentar, ainda por cima estivemos um ano sem competir e aquela foi a nossa primeira competição, não estava à espera de nada [risos]. Nós tentamos, se corresse bem corria, se não, olha… 

Mas no fim, acabou por correr tudo bem.

Claro que treinei muito até lá, mas era algo que nunca tinha feito antes e não tinha a consistência da competição daquele elemento, foi mesmo a primeira vez…

Falaste-me em muitas horas de treino… Em média, como é uma semana na tua vida?

Normalmente treinamos de segunda a sábado. São duas horas de manhã e três horas e meia à tarde três vezes por semana, e os outros dias são [treinos de] três horas e meia. Normalmente é o ano todo assim. 

Eras aquela miúda na escola que, às 8 da manhã, estava toda a gente cheia de sono e tu já vinhas de um treino

Não, não. Eu comecei a treinar bidiário aos 13 anos, estava no sétimo ano, e a minha escola sempre me ajudou com os horários. Eu entrava sempre às 8h30, mas saía às 11h para treinar até às 13h, e depois entrava às 13h40 até às 17h, e a essa hora ia para o treino. Às vezes almoçava na sala, ia à cantina buscar e comia lá.

Treinando dessa maneira, acabas por ter de sacrificar alguma coisa na tua vida, não?

Sim, especialmente os tempos livres e aquela fase da adolescência em que os nossos amigos querem ir passear, ir ao café, e nós nunca podemos porque temos treinos… Depois saídas à noite, quando já se tem ali à volta de 18 anos, temos sempre de dizer que ‘não dá’ porque há treino no dia seguinte… Essas coisas mais na adolescência e na fase rebelde de toda a gente em que apetece fazer tudo de errado que há na vida [risos]. A ginástica acabou por me segurar muitas vezes nisso, acabou por ensinar-me a ter disciplina. Por exemplo, não consigo chegar atrasada a nenhum sítio, até por causa da ginástica e dos meus treinadores, que me puxavam as orelhas se chegasse atrasada. Mas claro que não dá para ter tudo, e ou escolhemos um caminho ou escolhemos outro.

Tu dizes que a ginástica te deu disciplina, mas, como é que uma atleta adolescente ‘põe de lado’ essa ‘rebeldia’ em prol da ginástica?

É assim, a maior parte das ginastas desiste na adolescência precisamente por causa disso, por não poder fazer coisas com os amigos, porque estão ‘presas’ nos treinos. Eu sempre fui um bocadinho teimosa, e acho que não é defeito, é uma qualidade. Era teimosa no sentido de dizer «Não, eu quero ir treinar, não quero ir sair. Vocês querem que eu vá, mas eu não vou, vou treinar». Pronto, sou teimosa [risos].

Já percebi que é difícil alguém tornar-se 100% profissional na modalidade, mas em que momento da tua carreira é que tu percebeste que tinhas o que era preciso para ir a competições internacionais, para ir aos Jogos, para ser profissional?

A primeira vez que eu comecei a sonhar ir aos Jogos, foi mais ou menos no meu primeiro Campeonato da Europa, em 2010, quando eu era Júnior ainda, e foi quando tive assim o primeiro contacto de competição com outras ginasta estrangeiras. A prova não correu muito bem, mas pelas classificações percebi que não estava ali muito longe. Tinha de treinar mais, era um país que não tinha treinadores muito bons e que não tinhas apoios quase… principalmente a nível escolar. Noutros países, muitas das ginastas que treinam no Centro de Alto Rendimento têm lá a escola e não importa se faltam, e depois têm acesso à matéria toda. Nós nunca tivemos esse tipo de apoio. Então acho que foi mais ou menos nessa altura que pensei ‘Ok, mas se calhar eu consigo mesmo ir aos Jogos’. Foi algo que pensei muito por alto. Sabia que tinha de treinar mais, de dar mais, e acho que começou um bocadinho por aí.

Que papel desempenha esse contacto com as atletas estrangeiras no teu desenvolvimento?

Nessa altura, ainda ninguém se conhecia. Era o primeiro Campeonato da Europa quase de toda a gente, então ainda éramos pequenas. Eu tinha 14 anos. Hoje em dia, claro que já nos damos todas um bocadinho melhor, e já há aquela coisa de apoiar o adversário, não há tanta rivalidade assim. Falamos todas umas com as outras e fica um ambiente muito giro para competir. 

Então já se conhecem todas umas às outras… Isso, de alguma forma, ajuda a amortizar as dificuldades das viagens? Sentir que lá tens pessoas que conheces…

Sim, claro. É assim, normalmente, sempre que vamos a competições tipo Campeonato da Europa ou Campeonato do Mundo, é raro ir só eu. Vai sempre mais gente de Portugal. Só que, hoje em dia, as ginastas que vão comigo são sempre muito mais novas do que eu. Sou quase a mãe delas. Mas claro que é sempre bom. Por exemplo, nos Jogos, eu sabia que estavam no meu grupo pessoas que eu já conhecia há muito tempo. Por exemplo, uma atleta romena que estava lá no meu grupo, eu conheço-a desde 2008, quando tinha 12 anos. Foi no primeiro estágio internacional que fiz…

Estás a fazer a licenciatura em Ciências do Desporto, na Faculdade de Desporto da Universidade do Porto (FADEUP). O que te levou, mesmo com esta carreira de ginástica profissional, com tanto trabalho e tanta carga horária, a procurar ter um curso do ensino superior?

Pelo facto de não dar para ser totalmente profissional na ginástica, mesmo que fosse, a minha mãe sempre me ensinou que estudar é importante, e que ter um curso nunca me impediria de nada e seria melhor para o futuro. Mesmo assim, com a licenciatura, sinto que não vou conseguir grande coisa de emprego no futuro. Claro que, com o meu currículo, e na área onde estou, possivelmente consiga alguma coisa, mas, em Portugal, não me pagam só por fazer ginástica, por isso, também não vou conseguir fazer só isso. Acho que estudar é importante, eu tentei nunca deixar de estudar, até porque para o próprio treino também ajuda estar concentrada noutra coisa. Acabamos por desligar um bocado do treino, mas continuamos a trabalhar a cabeça. Hoje em dia, eu percebo que muitas coisas que estudei na faculdade me ajudaram no treino, enquanto atleta. Coisas que comecei a perceber melhor, por causa da própria faculdade.

Então de alguma forma a faculdade ajuda a dar-te rotina também… Claro, se não ficamos preguiçosos também [risos].

Fala-se muito dos ‘feitos’, mas nalgum momento, tal como qualquer pessoa, falhas. Na final dos Europeus, por exemplo, tiveste uma situação complicada… nesses momentos, o que é que te faz conseguir recuperar?

Claro que eu nunca gosto de falhar, e treino muito para a probabilidade de falhar ser cada vez menor, mas errar também é importante na ginástica, e aprender com os erros que fazemos. No Europeu, por exemplo, foi a primeira vez que fiz o elemento, foi a primeira vez que consegui ir à final, e eu não esperava nada daquela final. Nunca tinha estado numa, e não sabia sequer como era para controlar os nervos. Já nesta final do Campeonato do Mundo percebi tudo de errado que fiz na outra prova e tentei fazer tudo diferente. Nos Europeus, estava desatenta porque estava nervosa, estava lenta… Por isso, eu acho que errar faz parte da aprendizagem e ajuda-nos a ser também melhores e a mudar as coisas que correram mal.

Costumas ver os vídeos dos teus desempenhos?

Quando falho, não [risos]. Normalmente eu sinto o que fiz de errado, então pronto… Mas quando corre bem e vejo, às vezes sinto que tive alguns erros, mas vendo de fora não se notam tanto… mas eu sei que foi mau. Muitas vezes eu acho que o erro foi pior do que, visualmente, foi.

Conta-me, na tua família já havia alguma ligação com a ginástica? Para quem começou com 4 anos…

Eu tenho uma prima que agora é treinadora também no Acro de acrobática, mas não foi por causa disso que fui para a ginástica. No infantário, nós experimentámos as modalidades todas, e a mãe de uma colega minha trabalhava já na FADEUP. E perguntou se eu não queria ir para o Sport Club do Porto, que foi onde eu comecei a treinar… até porque eu era hiperativa e em casa estava sempre a fazer cambalhotas… Os meus pais queriam que eu chegasse a casa e dormisse, então meteram-me num desporto para ver se a coisa acalmava [risos]. Foi muito lúdico, aquilo era quase a hora do recreio. Depois comecei a subir de grupos e começaram a ver que eu tinha algum jeito.

Como é que se aceitou lá em casa quando tiveste de começar a pedir boleias para treinos e competições ao fim de semana?

Os meus pais sempre me apoiaram muito, acho que foram o principal pilar. Se tivesse pais que me dissessem que eu devia treinar menos para me dedicar aos estudos, talvez não conseguisse ser a ginasta que sou hoje. Os meus pais sempre me ajudaram a ir treinar naquele ‘períodozinho’ de almoço da parte da manhã… Até porque eu com 13 anos não podia andar sozinha. Na altura, vinham-me buscar à escola, levavam-me ao treino, ficavam lá à espera para me levar de volta para a escola e, depois, voltavam a ir buscar-me à escola para levar-me ao treino, e às 9 da noite iam-me buscar outra vez…

É que, no meio disso tudo, o dia só tem 24 horas… alguma coisa teve de ficar para trás?

Acho que em cada momento eu consegui aproveitar a vida, como as outras pessoas. Claro que, se calhar, em menor quantidade, mas acho que em cada momento, no momento que eu achei mais certo, consegui fazer tudo o que uma pessoa faz. Não fui assim tão restrita.

Tu já falaste da Simone Biles, e durante os Jogos levantou-se muito a questão da saúde mental dos atletas. É um assunto tabu? É uma realidade em Portugal?

Eu acho é um bocado relativo, porque depende muito do país. Lá, nos Estados Unidos, são tantas, e têm tanta pressão, porque são muitas e são boas… então acaba por ser muito competitivo entre elas. Claro que ela tem um peso acrescido porque foi campeã do mundo em 2013, foi campeã olímpica e parece que não, mas depois as pessoas acabam por pôr muita pressão em cima de nós, e nós também queremos fazer bem, porque a primeira coisa que acontece sempre é sair nas notícias que nós falhámos, e as pessoas não percebem o porquê de ter falhado… E, no caso dela, era mais a pressão que tinha dentro dela do que a exterior, por saber que foi campeã olímpica, e não querer fazer mal. Se já eu às vezes sinto alguma pressão…

Pois, era o que te queria perguntar. Já tiveste algum momento em que sentiste que está o mundo em cima de ti?

Hoje em dia consigo desligar-me um bocadinho disso, mas, por exemplo, no Campeonato da Europa, depois de o meu vídeo da qualificação nas paralelas ter ficado quase viral e toda a gente ficou a saber quem eu era, senti alguma pressão para a final, porque ainda por cima apurei-me em quarta. A probabilidade do pódio era muito grande, então começou muita gente a apontar para a medalha, e uma pessoa fica mais ansiosa. As pessoas às vezes não têm noção… eu tenho a certeza que querem o nosso melhor, mas às vezes acabam por colocar mais pressão. A minha opção foi não ver mais o telefone antes de nenhuma prova. Desde os Jogos e agora no Campeonato do Mundo, no dia da competição, não vejo nada. Até porque, ainda por cima, recebia tudo de noite. De manhã, abria o telefone e levava com tudo duma vez, então desliguei-me um pouco. 

Nem mesmo para os jornalistas?

Pois… os jornalistas parece que não perceberam que eu acabei a minha qualificação, cheguei ao hotel, eram 11 da noite, e queriam que fizesse diretos às 3 da manhã para a televisão… Disse logo que não ia acontecer. Tinha ainda mais duas provas, não podia estar ali preocupada com jornalismo. Começaram então a pedir para eu gravar vídeos sobre determinadas questões, e aí tudo bem, mas não podia fazer diretos. A questão é que, a nossa modalidade, como é pouco visível, sempre que há atenção por parte dos media aceitam logo… Eu percebo, mas se estou concentrada numa competição é complicado ter que estar concentrada noutra coisa…. 

Vamos voltar às questões tabu…outra vez nos Estados Unidos, o mundo da ginástica foi abalado recentemente com uma série de escândalos sexuais, com o Larry Nassar, entre outros. Naquela altura, o que é que isso te fez sentir, estando dentro do assunto? E já agora, sentiste alguma coisa parecida cá?

É assim, aqui há logo uma diferença que é que não temos um acompanhamento com fisioterapeutas como elas têm lá. Acho que depois desse boom, surgiram a nível mundial outros casos. Mesmo com os treinadores, ligados a abusos verbais e não só. Acho que virou um bocado moda depois disso, no entanto, eu sei que nos Estados Unidos, só para tentar ir aos ‘camps’ deles já é difícil, e às vezes fazem chantagem… imagino que, com tanta rivalidade, acabe por haver assim essas situações. Aqui em Portugal não há quase rivalidade, nem fisioterapeutas para isso. É um pouco diferente, porque não nos conseguem exigir nada para competir com outros… Somos tão poucos, que acaba por ser um bocado diferente. Quem cá está quer é apoiar e ajudar. Os treinadores dos clubes ajudam-se uns aos outros, não há tanta rivalidade assim.

Ainda em termos tabu… há o tema da sexualização da ginástica, dos fatos, se deviam ser de corpo inteiro ou não? O que opinas sobre esse assunto?

É assim, eu acho que a ginástica em si é complexa a partir do momento em que se é treinada por um homem. Por exemplo, eu tenho um treinador homem, e, para ele me ajudar, vai ter que pegar em mim. Claro vai ter que me tocar, e às vezes a mão vai parar onde não deve, ou alguma coisa assim, mas é algo que acontece. Hoje em dia há pessoas que podem levar isso a mal, ou porque é homem e são crianças, e acaba por ser um bocado ingrato para treinadores homens. Acho que há um bocadinho disso, independentemente de ser verdade ou não.

Surgiu também o caso das alemãs que começaram a vestir fatos até aos pés por causa disso, porque há miúdas que não se sentem confortáveis a fazer de fato normal.

Pronto, eu acho que por ser tema no ar, há países que também se aproveitam um bocadinho.

Para fechar, em palavras tuas, disseste que este foi o melhor ano da tua carreira. Quando chegas a esse patamar, o que é que vem a seguir?

Agora é recuperar o corpo. Depois, continuar a treinar. Acho que, por ter 25 anos, tenho alguma experiência, e há vezes em que não preciso de treinar tanto. Acho que é um bocadinho conservar o corpo e apostar realmente na dificuldade para tentar subir um bocadinho mais. Mas um dia de cada vez.