Artur Vaz: “Se nada mudar, a falta de gestão vai ser a morte do SNS”

A PPP do Hospital de Loures chega ao fim na próxima terça-feira. O Estado nunca quis uma verdadeira parceria com o privado, diz Artur Vaz, gestor do grupo Luz, que ao fim de quase 40 anos de uma vida dedicada à gestão hospitalar encerra um ciclo com orgulho nas suas equipas e desilusão com a…

Há dez anos abria o hospital de Loures, construído e até aqui gerido pelo grupo Luz. O que se sente na hora de passar a pasta?

Sente-se um vazio. Sente-se uma incerteza muito grande relativamente à continuação de um projeto que era muito marcado quer pelo ADN do grupo Luz Saúde quer pelas pessoas que estiveram aqui a conceber o hospital, a pô-lo a funcionar. Esse sentimento de incerteza é repartido por todos, quer pelos que vão sair, como eu, quer pelos que vão ficar. As grandes interrogações que as pessoas me colocam são ‘e agora, o que vai acontecer?’, ‘como é que conseguimos manter a nossa identidade?’. Passando a ser uma gestão pública direta, estará sujeito a constrangimentos que não existiam.

A criação de uma nova EPE para gerir o hospital foi anunciada há dois meses pelo Governo, parece ter sido decidido tudo muito em cima do acontecimento. Houve tempo suficiente para preparar a transição?

Eu não sei se foi decidido. Tudo parece acontecer por forças da natureza, porque tem de ser assim, porque não podia ter sido de outra forma. E eu acho que podia ter sido. Nós em junho/julho do ano passado pedimos ao Ministério para começarmos a tratar do processo de transmissão. O processo de transmissão de uma casa destas é muito complexo.

Na altura o grupo já tinha dito que não queria prolongar o contrato?

Não fomos nós que dissemos que não queríamos, o Estado é que disse que não queria.

Que não queria renovar a PPP automaticamente, mas ofereceu a hipótese de um prolongamento do contrato até um novo concurso.

O Estado não oferece nada. O Estado perguntou-nos em março de 2021 se estaríamos interessados em manter-nos mais dois anos à frente do hospital e nós dissemos que nas condições atuais não. Tínhamos tido resultados negativos horrorosos, estamos a falar de 28 a 29 milhões de negativos em 2020, por causa da pandemia, quer por causa dos custos que cresceram quer pelas receitas que diminuíram muito porque fomos mandados suspender toda a atividade programada não prioritária e, portanto, entendemos que não poderíamos suportar a atividade nestas condições.

Quando foi mandada suspender a atividade, não houve financiamento para manter custos fixos?

Recebemos de acordo com aquilo que produzimos, portanto, se deixamos de produzir, não recebemos. As pessoas continuarem a receber salários é um problema da sociedade gestora, não é um problema que o Estado queira assumir, como fez nos hospitais EPE. Não quis e, portanto, quando nos pergunta se queremos continuar mais dois anos e não nos dá nenhuma solução, está à espera de quê? Que a gente diga que sim, que queremos continuar a financiar o Estado em 20 e tal milhões de euros por ano? Não pode esperar uma coisa dessas.

Era esse o valor que pediam que fosse ajustado no contrato para prolongar a gestão PPP?

Pedíamos o reequilíbrio financeiro do valor que tivemos de suportar por um motivo de força maior. Estávamos à espera de uma resposta. Até ao momento, posso dizer que não tivemos qualquer resposta, nem sim, nem não, por isso vamos avançar para tribunal arbitral, porque achamos que temos direito a ser ressarcidos desse prejuízo inesperado, determinado pela pandemia e pelas medidas que foram sendo adotadas pelo Governo ao longo do tempo. Em 2021, a situação repetiu-se um pouco melhor mas sempre com resultados negativos muito expressivos. E 2022, são 18 dias, mas continua cá o peso da covid-19. É o mesmo que lhe perguntar se quer que lhe dê um tiro na cabeça ou no coração? O resultado é o mesmo: vai morrer, não é viável. Não é uma alternativa que possa ter resposta. Assim, dissemos nesta situação não podemos, não aguentamos.

E nos anos bons, houve lucro com a PPP? Não teria dado para alavancar os anos maus da pandemia?

Nos anos bons não houve lucro. Sempre tivemos prejuízo, pouco expressivo e que era sustentável e financiável pelos acionistas, mas essa situação financeira sustentável também decorria de uma série de interpretações do contrato que tiveram de ir para tribunal arbitral, como o financiamento de tratamentos de sida ou da formação médica que o Estado não garantia. Numas perdemos, noutras ganhámos, mas permitiria reequilibrar as contas para trás, não ficando com lucros, mas também não perdendo dinheiro. Agora, perder 29 milhões de euros por ano não é sustentável.

Não há ganhos indiretos numa PPP? Por exemplo, na alavancagem dos clientes nos hospitais privados, no vosso caso no Hospital da Luz?

Na alavancagem de clientes não há seguramente. As pessoas que vêm ao Hospital Beatriz Ângelo não irão ao Hospital da Luz em alternativa, a maior parte delas pelo menos. Existe uma vantagem de escala, naturalmente, porque o Hospital Beatriz Ângelo aumenta a escala das compras do grupo, mas isso é um pressuposto que já é tido em conta no contrato que se faz com o Estado. É algo que contribui para que possamos ser mais eficientes nos custos. Agora, o Hospital Beatriz Ângelo no dia 18 de janeiro passa para a gestão pública, sai da esfera do grupo Luz Saúde e não vai acontecer nada ao grupo Luz Saúde. Vai continuar a fazer o seu caminho. Não somos indispensáveis. A sobrevivência do grupo não depende do Hospital Beatriz Ângelo, de maneira nenhuma.

Antes de irmos à sua visão sobre o modelo de gestão PPP na saúde que parece estar a dar os últimos suspiros…

O nosso é o penúltimo, Cascais há de ser o último mais tarde ou mais cedo.

Esta transição acaba por coincidir com este novo pico da pandemia, em pleno inverno. Qual tem sido a principal preocupação?

A grande preocupação, quer nossa quer do conselho de administração que nos vai suceder, é que a transmissão não tenha impacto direto nem na prestação de cuidados de saúde nem nas condições dos colaboradores. Agora, naturalmente que a alteração das circunstâncias objetivas de funcionamento do hospital para o regime EPE (entidade pública empresarial) vai-se sentir mais tarde ou mais cedo. Eu, quando quero contratar uma pessoa, não preciso de autorização de nenhum ministério, contrato. 

E podia pagar mais.

Posso oferecer o dinheiro que acho que corresponde ao valor do profissional que estou a contratar.

Fazia contratos de exclusividade?

A exclusividade para mim não é um problema, como acho que não é para o SNS. A exclusividade, no meio dos problemas todos que o SNS tem, é o menor. 

Porquê?

Porque a mim o que me interessa é o que eu estou a comprar. Não estou a comprar a pessoa, estou a comprar o trabalho dela e os resultados que espero obter. E por isso os contratos que fazemos com as pessoas são baseados nos resultados que esperamos que elas possam ajudar a produzir. Desde que esses resultados apareçam, isso é mais importante que o número de horas ou se estão só aqui. Não me interessa controlar horários se a pessoa vier encostar o rabo a uma esquina e não fizer nada. Não cria valor para o hospital nem para os seus doentes.

Mas consegue dar uma imagem de como tem sido a negociação com os profissionais: o que pedem, o que valorizam para querer ficar?

O que nós oferecemos aos profissionais é um projeto e um modelo de organização clínica que não encontra no hospital público. Não somos as Balcãs com um serviço de cardiologia, psiquiatria, com camas próprias, etc; usamos os recursos onde são precisos e a especialidade é sobretudo competência e conhecimento técnico. E os diretores de serviço é isso que fazem: gerem o conhecimento. Os recursos são geridos de forma centralizada, servindo quem precisa deles. 

E as equipas fluem?

Não exatamente, porque há especialidades, mas são os profissionais que vão ao encontro do doente e não o contrário. Tentámos estruturar o hospital de uma forma que favoreça a multidisciplinaridade e essa conveniência, porque os doentes que hoje frequentam os hospitais são caracterizados  pela multipatologia. A Medicina Interna funciona sempre como a especialidade principal de assunção da responsabilidade pelo internamento dos doentes ou como consultora das outras especialidades. Na cirurgia a mesma coisa. Temos, por exemplo, uma unidade de orto-gerontologia em que são admitidos todos os doentes de ortopedia com mais de 65 anos: precisam de ter uma abordagem específica e um apoio constante da Medicina Interna para gerir as suas multi doenças para além da fratura do colo do fémur ou seja o que for que os trouxe cá.

E esse modelo clínico tem atraído profissionais para o hospital?

Claro que temos meia dúzia de médicos que vieram e se arrependeram, porque não gostaram. Este modelo clínico implica duas coisas: trabalho de equipa e muita comunicação. Todos os dias temos uma reunião de manhã em que os doentes são distribuídos pelas especialidades, pela consultoria da Medicina Interna, e isso dá trabalho, é chato. Temos de nos ouvir uns aos outros e ter essa humildade. Mas creio que é um modelo que tem atraído muitos profissionais, porque ao mesmo tempo é muito estimulante.

Inspirou-se em quê?

Na racionalidade mais básica. Quanto mais espartilhar a distribuições de recursos que são finitos e por vezes faltam, mais difícil é gerir. É baseado também na caracterização dos doentes que vêm ao hospital, como disse, mais velhos, com multipatologia. Se quiser, é um hospital mais desenhado em função dos interesses dos doentes do que dos interesses dos profissionais. Para um profissional é muito mais confortável ter o seu espaço próprio, com recursos próprios, que pode controlar diretamente, do que ter este modelo, que lhe tira muito poder.

Quanto pagam mais aos médicos?

Não é muito mais, mas é um diferencial que acaba por ser interessante para as pessoas.

Mas é quanto?

Depende de pessoa para pessoa, não pago igual a toda a gente. O princípio da chapa cinco para mim não funciona.

Vai sair muita gente com o fim da PPP? É uma das preocupações que tem havido, nomeadamente se não poderão ir para o Hospital da Luz e para outras unidades do grupo.

Não. Há sempre muitas preocupações, como se o Hospital da Luz fosse interminável. Em dezembro saiu o mesmo número de pessoas que costuma sair – sair e entrar. São 30/40 pessoas, a taxa de rotação normal do hospital. Naturalmente que há recursos que são escassos no mercado, anestesiologistas, internistas. Contamos sempre muito com os internos que vão saindo da especialidade aqui do hospital e o que sempre fizemos foram contratos condicionados com eles antes de acabarem o internato. Ou seja, se estão interessados em ficar cá, fazemos um contrato hoje dependente da obtenção de aprovação no internato. Um EPE não pode fazer isto.

Seria uma solução para os hospitais públicos reterem jovens médicos? Já se chegou a falar de pactos de permanência no SNS…

A experiência dos Hospitais S.A., antes do modelo EPE, revelou o pior que havia a revelar: sem regulação, viam-se os maiores descalabros e hospitais a contratar pessoas por balúrdios. Agora entre isso e aquilo que existe hoje pode haver soluções intermédias que antecipem estes problemas mas que tornem menos rígida a colocação dos internados no fim do internato, que acontece por concurso nacional e impede os hospitais de tentarem ficar com os seus internos. Nós tínhamos este modelo. Temos dois internos de Anestesia e dois de Medicina Interna que vão sair em maio. Se continuássemos a gerir o hospital já estariam a assinar o contrato condicionado. Vão ter de esperar que haja vagas e que tenham classificação para poder escolher o Beatriz Ângelo. 

Acaba por desaproveitar-se um pouco o tempo de formação e integração nas equipas no internato?

Um bocadinho. Esta questão de se ter de fazer em todo o lado igual para toda a gente, esta chapa cinco que se aplica de uma forma relativamente cega no setor público, tem impactos negativos naturalmente numa série de aspetos. Este é um deles.

É o maior problema no SNS?

Não, o maior problema do SNS é a falta de gestão. Não entendo como é que o SNS é tão louvado e tão querido no discurso público e depois é tratado de uma forma tão displicente e tão negligente em termos de gestão.

Não há gestão desde quando e porquê?

Diria quase desde o início, é uma doença infantil do SNS. Temos o maior serviço público, não sei se a Educação é maior em termos de números de profissionais, mas temos um serviço essencial e complexo, que é gerido por uma pessoa, que tem imensos serviços, imensos assessores e imensos apoios, mas é uma pessoa, que é o ministro da Saúde. É o topo da gestão. Mas o ministro da Saúde não é ministro do SNS e a saúde é mais do que o SNS. É saúde pública, é milhares de coisas. Como é possível uma pessoa que é responsável pela saúde da nação ser ao mesmo tempo uma espécie de CEO do SNS? Para mim, não é possível e não faz qualquer sentido.

O Governo queria agora no novo estatuto criar um CEO do SNS, uma comissão executiva.

Não, o que o Governo queria criar, não tendo ainda percebido exatamente o que era, poderia parecer ser o CEO do SNS mas que a mim me cheira que nunca seria porque há demasiados poderes envolvidos. O modelo do gestão do SNS é muito estranho, muito complicado, é muito irracional. Temos o ministro da Saúde, os secretários de Estado, que também têm poderes, temos a DGS, temos a SPMS, a ACSS, as ARS. Existem centenas de centros de saúde, dezenas de hospitais. Quem é que os gere como um todo? Ninguém.

Não são as Administrações Regionais de Saúde que planeiam a contratualização daquilo que os centros de saúde, os hospitais devem disponibilizar e depois entra o financiamento através da ACSS?

A contratualização é uma palavra lindíssima, mas o que é na prática? É o encontro dos gestores dos hospitais para discutir o financiamento, a produção e indicadores de qualidade do ano seguinte com uma entidade que ao mesmo tempo é sua acionista, financia, e sua cliente, compra os serviços. Não funciona, os interesses não são alinháveis. O acionista quer resultados financeiros positivos das instituições, o cliente quer preços baixos e máxima qualidade. 

E o plafond é limitado à partida pelas Finanças.

Tenho experiência de negociar contratos-programa quando estava no Amadora-Sintra, quando passou de PPP para EPE, em que no fundo diziam-nos: ‘têm aqui este valor, agora digam-nos que produção fazem com isto’. Isto não é negociação. Onde é que estão as necessidades da população que são servidas pelo hospital? Não existem. 

Que estado de espírito encontra nos seus colegas administradores hospitalares?

Estão um bocado fartos, sentem-se muito impotentes. Há um modelo de liderança no SNS que é muito napoleónico, baseado na hierarquia, diretrizes. Posso dizer que nunca me senti não desconsiderado como quando estive no Amadora-Sintra no período EPE.

Quando fez a transição da PPP para a gestão pública, entre 2008 e 2011, e se deu o fim da primeira parceria público- privada na saúde.

Foram três anos e pico. Sentia-me desconsiderado. Pelo Ministério da Saúde, pela SPMS, por todos os serviços. Quando não conseguimos cumprir os objetivos olham para nós como se fôssemos uns falhados, quando a maior parte das variáveis com que temos de lidar nos hospitais públicos são exógenas ao hospital. Grande parte da despesa adicional nos hospitais EPE é gerada pelo Ministério da Saúde e não é acompanhada por financiamento específico.

Por exemplo, não haver médicos de família e os doentes entupirem urgências?

Por exemplo. Lembro-me de uma situação que tive no Amadora-Sintra. Norma da DGS: a partir de hoje os hospitais devem vacinar as crianças com a vacina anti-pneumocócica. E perguntei: onde está o cheque para pagar as vacinas? Ninguém responde. Ou uma carta que recebi na altura a dizer que tínhamos de pagar aos fornecedores no espaço de 90 dias, quando a ACSS, no dia em que recebi a carta, nos devia 26 milhões de euros. 

Nestes últimos anos uma das críticas dos administradores hospitalares foi ao regresso às 35 horas.

É outro exemplo. É inelutável: é uma ordem, um despacho, um decreto. E depois atribuem-se recursos que são sempre insuficientes para aquilo que é suposto fazer. E por isso digo que é um modelo de gestão e de liderança que não funciona e que só quem não defende efetivamente o SNS é que pode querer que as coisas continuem na mesma. Quando se diz que não se pode mexer no SNS porque é uma conquista de Abril, concordo, é uma conquista essencial, mas não concordo que não se pode mexer. É preciso mexer no SNS, se não isto vai por água abaixo mais tarde ou mais cedo.

Mexer em quê? Nesta campanha eleitoral, volta a ser um tema que divide esquerda e direita.

Ninguém precisa de matar o SNS, mas precisa de ser reformado.

Mas reformado na forma como funciona ou na visão da liberdade de escolha que defende a direita?

Primeiro, na parte como o sistema público funciona e é gerido. Alguém gere a rede? O caso da covid-19 é paradigmático. Eu podia estar cheio e outros hospitais não e ninguém geriu a rede. Foi pedida a mesma taxa de esforço aos hospitais? Não foi.

Mais tarde acabou por ser, quando os hospitais da periferia de Lisboa se queixaram, o Amadora-Sintra teve o colapso da rede de oxigénio…

Mas não foi isso que foi montado. Eu gosto de factos, que não podem ser desmentidos pela ideologia. A primeira reunião que todos os hospitais da região de Lisboa e Vale do Tejo tiveram com a ARS foi em outubro de 2020. 

Sete meses depois do início da pandemia?

Sim. Foi a primeira reunião em que as pessoas puderam falar umas com as outras e com a ARS. O que se montou a partir daí foi um modelo de partilha de informação, não mais que isso.

Nos cuidados intensivos houve uma gestão centralizada, não?

A CARMIN (Coordenação da Resposta Nacional à Covid-19 em Medicina Intensiva) emite orientações. Mas o que precisamos não é de orientações, é de cooperação e de ter capacidade de discutir com os outros a melhor maneira de enfrentar as coisas. E depois é preciso alguém que, no fim do dia, como se diz, parta o bacalhau. Tome uma decisão que nunca é consensual. Cheguei a mandar doentes para Abrantes quando tinha vagas para doentes com covid-19 a cinco quilómetros do hospital… Isto é falta de cooperação.

Mas perguntou por que razão não os recebiam? 

Podia perguntar, mas a resposta não ma podiam dar porque seria uma resposta da treta. Não posso incomodar o hospital A, B ou C porque depois eles vão chatear não sei quem, que me vem chatear a mim. E, portanto, quem paga são os doentes, que fazem quilómetros. Mandei três ou quatro para Abrantes, como mandei para Madeira. Não houve e não há uma liderança que coordene e obrigue à cooperação.

Percebe porquê?

Porque cada um faz aquilo que acha melhor, porque há muitos poderes instalados que ninguém consegue combater.

Poderes de quem?

Poderes das instituições, das organizações profissionais, da burocracia do Ministério.

As ARS não têm peso? 

A ARS é mais um elemento deste ecossistema. Ainda não percebi bem qual é o papel das ARS atualmente e temo, por absurdo, que se fossem eliminadas não se passava nada. Mas ou têm uma perspetiva efetiva da liderança efetiva da rede de cuidados primários, continuados e hospitalares de uma região ou então parece-me que o seu âmbito é muito limitado e está sempre dependente de terceiros e da vontade das instituições. A ARS não dá ordens nos hospitais. A partir de outubro de 2020 começou a haver partilha de informação, mas continuou a ser muito difícil transferir algum doente. Passámos a ligar à ARS a dizer que era preciso arranjar uma vaga. A ARS tirou-nos o trabalho de cima de sermos nós a telefonar para todos os hospitais e passaram a fazê-lo, mas isto não é cooperação. E só em janeiro de 2021, quando a situação ficou realmente brava, é que houve uma intervenção direta do Ministério da Saúde quando os sete hospitais à volta de Lisboa disseram ‘estamos assoberbados e há hospitais mais folgados e que não estão a ajudar’. Nessa altura, a senhora ministra tomou a decisão de fazer reuniões diárias. Mas faz sentido o ministro da Saúde ter de fazer reuniões diárias para os hospitais se entenderem, para funcionarem de forma lógica e eficiente?

Parece que é preciso um adulto na sala.

Isto é assim porque há hospitais que só reconhecem o ministro da Saúde ou a ministra da Saúde como o seu superior hierárquico. Não reconhecem a ARS e os outros hospitais não são iguais.

Sente que houve o estigma de serem uma PPP?

Não me parece que isso tenha acontecido durante esta crise. Mas mais uma vez por motivos ideológicos, políticos, ouvi a senhora ministra dizer no Parlamento que as PPP se tinham adaptado mal às necessidades determinadas pela covid-19 quando isso é mentira e a senhora ministra sabe que é. Sabe que o Hospital de Loures foi dos hospitais mais fustigados pela covid-19 e com taxa maior de esforço.

Por vezes parece surgir a dúvida sobre se quando Loures fecha a urgência ao CODU não podia mesmo fazer mais ou não faz porque não está no contrato…

Isso é muito interessante. O Artur Vaz que está aqui foi o Artur Vaz que esteve no Amadora-Sintra PPP e depois EPE, no Hospital da Universidade de Coimbra que era público e tradicional à antiga. Não sou diferente. E as pessoas parece que acham que quando uma pessoa trabalha no setor privado é um malandro, é um bandido, é um vendido, é um tipo sem princípios, sem moral e sem ética. Isso é mentira. Conheci muita gente completamente amoral e sem ética no setor público como conheço no setor privado. É como tudo, há uma distribuição mais ou menos homogénea no universo. Mas há este maniqueísmo de pensar que o privado é apenas determinado pelo lucro, o capitalista de cartola a explorar os trabalhadores e a maltratar os doentes, e o público, só porque é público, é bom. E esse maniqueísmo é baseado em motivos exclusivamente ideológicos.

É uma mágoa que leva destes anos?

Sim, porque parece que quando estava num EPE era um gajo porreiro e quando passei para o setor privado passei a ser um filho da mãe. E o meu problema é com estes arquétipos que as pessoas têm na cabeça e que são quase religiosos. Quando ouvimos o Bloco de Esquerda parece que as pessoas que trabalham no setor privado, que é a maioria da população portuguesa, são todos uns palermas e uns tipos sem princípios e isso é uma mentira objetiva mas que tem sustentado muito esta discussão na Saúde, que nunca vai chegar a lado nenhum. É uma crença.

Não vai chegar porque o sistema público sozinho não vai conseguir dar resposta ou porque seria preciso mais meios para o fazer?

Por isso tudo. A gente não pode definir uma coisa pelo seu contrário. Não posso definir o SNS por considerar que o setor privado é seu inimigo. É complementar, adicional, o que se quiser chamar, mas não são incompatíveis e apesar de terem lógicas de funcionamento diferentes contribuem ambos para a saúde dos portugueses e é nessa medida que devem ser geridos. Portanto, não posso ter a ministra da Saúde a dizer uma mentira no Parlamento para defender a ideia de acabar com as parcerias. Que se assuma que são pressupostos ideológicos, não se inventem factos alternativos.

Mas indo então ao modelo PPP: parece-lhe justo haver no SNS hospitais que podem ser geridos de uma maneira e outros de outra, uns pagar melhor, outros pior, terem uma organização mais conveniente para os doentes quando outros não têm?

Acho que não é uma questão de justiça mas de se perceber o valor acrescentado para os doentes e profissionais. E o que me parece é que há muito pouca capacidade para aprender. As PPP poderiam ter servido como laboratório para perceber se algumas soluções adotadas fora do quadrado dos hospitais públicos poderiam ser replicadas e se isso representava criação de valor. Mas não há nenhuma capacidade analítica, o nosso contrato é gerido como um mero contrato administrativo.

Não são avaliados os resultados?

São avaliados 96 indicadores de funcionamento do hospital mas não se tiram conclusões. Não se pensa: fizeram assim e assim, será que se fizéssemos assim poderíamos ser mais eficientes? Ninguém olha para as PPP como uma experiência para aprender, olham para nós como uns tipos que têm um contrato e que é preciso controlar porque, como são privados, certamente nos vão tentar passar a perna. E isso não é uma parceria; para ser, teria de haver comunhão de objetivos e não desconfiança. E depois não há aprendizagem. Portanto, para mim esta experiência, pessoalmente e profissionalmente, foi muito boa, mas é como água na areia, vai desaparecer. Ganhou-se muito pouco para o esforço que foi feito, quer pelo Estado que fez o contrato connosco, quer por nós. O que fica são estes dez anos e o que fizemos aqui para o SNS é pouco. Já se tinha passado no Amadora-Sintra. Foi uma andorinha sem primavera. Estas quatro experiências, que vão ficar reduzidas a Cascais, vão pelo mesmo caminho. O Estado tem sempre a mesma abordagem: vamos espremer ao máximo o privado porque eles aguentam. Podemos ser mais eficientes, mas há um limite para tudo.

Com o crescimento do setor privado e dos seguros, não são os privados que precisam menos destes negócios? Sem tom pejorativo.

Lá está o maniqueísmo. A saúde é um negócio. É um negócio para as farmacêuticas, para as farmácias, para os prestadores privados que fazem análises. Podemos dizer que não é um negócio, mas objetivamente é. Se não queremos que seja um negócio, acabe-se com toda a atividade independente, autónoma e privada que tenha a ver com a saúde. Não vão conseguir, naturalmente.

Mas vê pontos em que o privado persegue o lucro em prejuízo do interesse público?

É natural o setor privado perseguir o lucro.

Mas na saúde isso pode induzir procura desnecessária.

Mas, mais uma vez, ética há em todo o lado e falta de ética também. Também há práticas ilegítimas no setor público. Não é em nome do lucro, é em nome de outra coisa qualquer. Parece uma discussão religiosa: Cristo de um lado e diabo do outro. Na vida real não há Cristos ou diabos, há misturas diferentes de quantidades de Cristos e quantidades de diabos, não somos completamente bons ou maus. Agora o modelo PPP é para acabar e vai acabar.

Já disse que a pandemia foi um abanão no SNS. O que fica?

Foi um abanão no sentido em que permitiu aos hospitais reganhar alguma autonomia, que tinham perdido, mas nesta altura já está tudo a voltar ao mesmo, a uma falta de autonomia quase absoluta. E sem autonomia não é possível responsabilizar as pessoas ou sequer avaliá-las. Sem avaliação não há compromisso, sem compromisso não há motivação e sem motivação as coisas não acontecem. A indiferença dos acionistas públicos e da estrutura do Ministério relativamente aos bons resultados é desmotivadora.

Percebe que a pandemia tenha adiado reformas?

Foi mais um argumento. Durante a pandemia não gostava de ter visto reformas nenhumas, mas achando eu que a gestão é o principal calcanhar de Aquiles e vai ser motivo de morte do SNS se nada acontecer, acho que é isso que tem de ser feito. Mas tem de ser uma reforma muito profunda, muito pensada, implementada de forma tranquila e segura.

Não é uma preocupação que debatem há anos?

É verdade. Uma vez convidaram-me há três ou quatro anos para ir a uma conferência para falar sobre o SNS e comecei a minha intervenção a dizer ‘cá estamos nós de novo, os mesmos, a discutir exatamente os mesmos problemas que discutimos há 30 anos’. E é um bocadinho a noção que se tem: vão se mudando algumas coisas para ficar tudo na mesma. E o tudo é o essencial. O SNS não tem um problema de qualidade clínica, tem um problema de gestão, de liderança e de rede. 

Além da gestão, parece-lhe que existe um diagnóstico adequado das necessidades de saúde da população?

Não existe. Mas existe a perceção da procura que não é satisfeita ou não é satisfeita em tempo. A prevenção continua a ser muito ignorada e depois levamos com as consequências na utilização dos cuidados primários e hospitalares. Felizmente parece que os municípios estão a preocupar-se mais com essa parte, com ciclovias, etc, estão atentos, mas falta cimento a estas coisas todas. 

Já falou também da pandemia silenciosa do que ficou por fazer. O que se vê em concreto no hospitais?

Pessoas que chegam aos serviços de urgência em situação cada vez mais irremediável. Antes da pandemia tínhamos uma média de 50% de casos amarelos, laranja e vermelhos, os casos mais graves, e nesta altura estamos com 60% a 70%. O que os profissionais referem é que as pessoas chegam em estados mais avançados da doença, nomeadamente oncológico, mas também cardíaco e respiratório. Essa é uma pandemia que vamos ter de enfrentar nos próximos anos. 

A associação de administradores hospitalares tem defendido a necessidade de um plano de recuperação. Faria diferença?

Acho que é preciso alguma coisa, mas, repare, podemos ter planos, orientações para fazer mais SIGIC (cirurgias adicionais), deitar dinheiro em cima do problema, mas enquanto não mudarmos a gestão e a forma como se planeia a resposta à população podemos deitar dinheiro que não vamos resolver os problemas. Já não falo de sermos menos hospitalocêntricos, que é um chavão que cada vez perde mais sentido. A questão é o critério para distribuir meios e doentes e isso é sempre muito circunstancial.

Trabalhou no Amadora-Sintra, nestes últimos dez anos em Loures, dois hospitais que servem subúrbios muito densos. Tem hoje uma imagem diferente do que são os problemas e a pobreza na periferia de Lisboa comparando por exemplo com a que conhecia em Coimbra quando começou a trabalhar?

Tenho. É diferente, a pobreza urbana é mais dramática.

E sente que é bem captada pelos decisores políticos?

Acho que a maior parte dos decisores políticos não faz ideia disso. Tivemos em Loures, no século XXI, um doente com escorbuto, uma doença associada às viagens marítimas por falta de vitamina C. Tivemos um caso no século XXI a dois passos de Lisboa. Isto será reflexo de alguma coisa. Quer aqui, quer na Amadora quando abrimos o hospital em 1996, durante os primeiros anos surgiram casos que os médicos só tinham visto em livros. Isto quer dizer que há uma população subtratada, subacompanhada, que esporadicamente aparece quando existe um aumento da oferta.

Têm também nestes dois hospitais um trabalho de mediação cultural. Há muitas barreiras no acesso à saúde?

Acho que nenhum de nós consegue perceber a vida do outro, mais quando estamos a falar de realidades culturais e económicas diferentes. Temos uma comunidade grande do Bangladesh, uma comunidade grande sikh, uma comunidade grande de etnia cigana. São pessoas que se vão integrando mas a nossa integração é um bocadinho como o nosso colonialismo mas mais baldas, mais fruto das circunstâncias do que de um pensamento objetivo de como vamos fazê-lo. Temos aqui uma experiência muito boa em Loures, potenciada pela pandemia, de reunião semanal com as câmaras, com os ACES, com a saúde pública, mas isso não consegue ultrapassar um esquema muito hierarquizado e fechado de organização dos serviços, que coloca os cuidados primários e cuidados hospitalares em duas gavetas separadas.

Há melhorias na gestão dos casos sociais que ficam à espera de vagas nos hospitais?

A resposta da Segurança Social melhorou muito durante a pandemia, foi um dos efeitos positivos. Entre ontem e hoje conseguimos dar 10 altas altas. Costumávamos ter entre doentes à espera de cuidados continuados e casos sociais 65 a 70 doentes todos os dias, são duas unidades de internamento. Hoje temos 19, o que é uma diferença substancial. Vamos ver se passada esta fase não voltamos ao mesmo ramerrame.

Sendo um reflexo também do envelhecimento da população, preocupa-o como se vai lidar com isso?

Vai-se lidar mal. Não é um país para velhos. O próprio Estado no sistema que monta para usar o trabalho de reformados está a prejudicá-los porque diz que podem trabalhar mas para manter a pensão têm de reduzir o vencimento, está a dizer que o trabalho deles vale menos porque estão reformados. Mas é preciso mais do que isso. No Canadá há um movimento de hospitais amigos dos mais idosos e temos de começar a pensar nisso. Não estou a falar só de rampas para as cadeiras de rodas, estou a falar do tamanho das letras da sinalização, de coisas que têm de ser ajustadas para servirmos melhor os nossos principais clientes, que são os velhos. Se for a uma área médica de internamento, 80% das pessoas têm mais de 65/75 anos. Foi um paradigma que também correu mal: houve a ideia de que os hospitais cada vez deviam ter menos camas porque éramos mais eficientes e clinicamente mais efetivos. O problema não é a eficiência, o problema é a quantidade de patologias que hoje um doente tem. Estamos a ver internamentos mais prolongados. Em média, no Beatriz Ângelo, durante 2020, cada doente internado no hospital tinha 11 patologias presentes. 

Quando regressa aos primeiros anos de administração hospitalar, na década de 80, o país está menos desigual?

Está desigual de uma forma diferente. Está melhor genericamente nas condições básicas mas continua diferente entre litoral e interior, entre cidade e campo, mais diferente talvez eventualmente entre pobres e ricos porque há um paradigma também a esse nível que é espelhado fiscalmente em que parece não haver nada entre ter um salário pequeno ou relativamente pequeno e ter rendimentos muito elevados. Cada vez mais essa zona de ninguém é maior. Estamos num país em que quem ganha 2000 euros já é considerado uma minoria fiscal, que pode pagar uma grande taxa de imposto. Qualquer pessoa que ganhe um bocadinho acima do salário médio português leva logo uma talhada porque é rico. Acho que isto resulta das perceções que acabam por perpassar toda a sociedade e não correspondem à realidade porque uma pessoa que ganha 2000 euros por mês não é substancialmente muito diferente de quem ganha 1500 e quem ganha 1500 de quem ganha mil. 

Está desiludido com a política?

Estou desiludido genericamente com quase tudo. Só não estou desiludido com a minha vida pessoal, com os meus netos novos em folha, com a minha família, com a equipa do HBA. Mas acho que o país tem tratado muito mal os portugueses e os que não são portugueses mas procuram aqui uma oportunidade de ter uma vida digna. Não me parece que a gente vá muito longe. Não temos um projeto para o país. É um bocadinho como o SNS. Alguém tem um projeto para o SNS? Ninguém sabe. 

Não se encaixa entre o projeto de esquerda e o projeto da direita?

Já dei para esse peditório. Acho que nós, enquanto país, ou encontramos um rumo e um propósito ou não vamos longe. É como na nossa vida pessoal, temos de ter propósitos, se não andamos cá a ver andar os outros. Somos um país que a esta altura anda cá a ver andar os outros. Acho que é triste, os portugueses já fizeram coisas fantásticas, já deram provas inequívocas da qualidade intrínseca que têm, e agora desistimos. Eventualmente passamos o dia a olhar para o telemóvel a ver as porcarias do Facebook e redes sociais e desistimos de pensar em nós como pessoas, como comunidade. Estou muito farto. Ando a sofrer estas desilusões sucessivas há muito tempo.

Estava a lembrar-me de uma frase do prof. José Fragata, da sua geração, que nos dizia há tempos que o Estado é uma máquina trituradora.

É mas os portugueses também têm uma relação ambivalente com o Estado. Se eu precisar, quero que o Estado me ajude, mas se eu puder engano o Estado. Isto é uma relação que não é saudável, é parasitária. E o contrário também é verdade: o Estado olha para os cidadãos como pagadores de impostos. A questão essencial é que o Estado somos nós, não é o Governo e os Governos têm de deixar de desvirtuar esta ideia do Estado. O Estado são os cidadãos todos. Os governos são passageiros, existem para gerir o Estado. E nós cidadãos é que deixámos o Estado chegar ao ponto em que chegou, de ser agressivo, negligente e displicente na sua relação com os cidadãos, na saúde, nas questões fiscais, em tudo. Não há extraterrestres a determinar o nosso destino. E a solução também deve estar em nós, não vejo é gás ou pica para resolver isto. 

Nunca quis meter-se na política?

Nunca. Acho que quando a gente anda num lamaçal fica com lama. Não gosto dos pressupostos dominantes da atividade política atual, não é só em Portugal.

O que o levou para a Saúde?

Foi um acaso. Tirei Direito mas não tinha nenhuma inclinação. Era muito rebelde.

Um jovem rebelde de esquerda?

Da esquerda desalinhada, nunca pertenci a nenhum partido, andávamos mais entretidos a fugir da Polícia. Tinha uma relação um bocadinho complicada com o meu pai, que tinha uma personalidade mais autoritária. Precisava de algum afastamento. Direito era o único curso que não havia no Porto e foi assim que fui para Coimbra. Detestei o curso. Fui em 1973, dá-se o 25 de Abril, tive imensas distrações mas acabei. Depois fui chamado para o serviço militar obrigatório. O modelo militar para mim naturalmente que funciona em batalhas, guerras…

Em campanhas de vacinação.

Sim, eventualmente, mas não gostei. Quando saí da tropa não tinha emprego. Estava cá o FMI. Surgiu a possibilidade de tirar administração hospitalar em Lisboa, pagavam uma bolsa de 16 contos. Inscrevi-me, fui selecionado e vim para Lisboa. 

O SNS estava a começar. O que se ensinava no curso?

Era muito focado na gestão. Havia discussões sobre política mas era muito o sol nascente. O meu primeiro hospital foi o Sobral Cid mas a doença psiquiátrica mete-me mais espécie que a doença física. Depois fui para os HUC, Covões, fui para a ARS, IPO, depois Amadora-Sintra como PPP. Depois abri o Hospital da Luz, depois voltei para o Amadora-Sintra para a gestão EPE e depois vim para aqui.

Quais foram os melhores anos?

Profissionalmente, todos. Encontrei gente fantástica, projetos muito interessantes. Não faço nenhuma diferença entre público e privado e tenho essa sorte: quando sair, saio de barriga cheia.

O que se aprende quase 40 anos a viver no dia a dia nos hospitais?

Aprende-se tudo e fundamentalmente uma verdade que muita gente esquece: não somos nada. Não somos nada sem os outros, não somos nada quando estamos doentes. Aprendemos a relativizar. Pode faltar o dinheiro, educação, muita coisa, mas quando falta a saúde é um compromisso muito grave da nossa vida. Vi-o muitas vezes e sei como ficamos sem chão quando temos uma doença grave. E aí somos todos iguais. Aprendi também que sozinhos não conseguimos fazer nada. Podemos ser uns tipos cheios de ideias que, se não tivermos a capacidade, a habilidade, a sabedoria de envolver os outros, não conseguimos concretizar nada. Somos uns idiotas. E aprendi que é melhor trabalhar com as pessoas e que elas trabalhem por vontade própria do que obrigá-las a fazê-lo e na liderança essa capacidade emocional e relacional é muito importante.

Era mais impositivo ao início?

Não, nunca fui autoritário. O que as pessoas com quem trabalhei também sabem é que quando acho que foi passada uma linha vermelha é melhor fugirem. Há linhas vermelhas que não admito que ninguém passe e perco um bocadinho a bonomia nessas situações. Aconteceu muito poucas vezes, talvez quatro ou cinco, é um fenómeno meteorológico extremo.

Quer contar porquê?

Não, são coisas do passado. Devo dizer que aqui no Beatriz Ângelo em 11 anos nunca aconteceu. Tira-me do sério a falta de princípios ou quando me acusam de desonestidade. Da minha parte, todos os dias faço o meu exame de consciência e se fiz alguma palermice corrijo.

É católico?

Não. Mas tenho de ter responsabilidade sobre o que faço enquanto cá ando e quando vejo que cometo alguma injustiça ou erro de análise no dia seguinte emendo-me, quando não o faço no momento. Acho que o sentimento das pessoas, quando sentem que são mal compreendidas ou vítimas de um erro de análise, é muito difícil de gerir. Portanto, quando sentimos que o fizemos devemos pedir desculpa e voltar atrás. São situações que criam musgo. Costumo dizer às pessoas: what you see is what you get (o que vê de mim é o que leva de mim). Não tenho uma personalidade eventualmente encantadora e depois sou um filho de puta.

E ao fim destes anos todos um portuense já se sente mais lisboeta?

Eu não, nunca!

Mas sente diferenças nos lisboetas?

Sinto diferenças no ambiente. As pessoas no Porto são frontais, muitas vezes é confundido com rudeza. Digo asneiras como uma pessoa do Porto mas para mim não são asneiras, é uma expressão normal. Aqui em Lisboa há mais o ambiente de corte e isso implica que haja um maior disfarce.

Nestes 25 anos, viajou todas as semanas de Coimbra para Lisboa.

Sim, desde 1996. Noutro dia estive a fazer as contas e devo ter feito a A1 à volta de 2500/2600 vezes.

A 200?

Nem sempre, houve alturas em que foi a menos (risos).

Por que razão a família não se mudou para cá?

A minha mulher é professora universitária em Coimbra e também não queria vir trabalhar para Lisboa. Durante três anos esteve foi aqui vice-presidente na CCDR em Lisboa e morámos juntos mas acho que encontrámos um bom equilíbrio. Todos os dias quando chego a casa telefono à minha mulher como se chegasse a casa e a encontrasse e antes de dormir voltamos a falar.

Isso tornou-o um bocado workhaólico?

Sim, sobretudo no Amadora-Sintra, entrava as 8h e saía à meia-noite. Como em Loures também chegou a acontecer mais no início. Mas gosto muito de ler, é o que faço para compensar estar longe de casa.

E agora, quais são os planos?

Agora vamos viver para o Porto. A minha mulher reforma-se daqui a dois anos e consegue conciliar as aulas presenciais e o trabalho de investigação. Eu vou continuar a trabalhar no grupo noutra área e poderei fazê-lo a partir do Porto. Já me reformei, agora terei um estatuto mais ou menos de senador, mas continuo a trabalhar porque não consigo parar.

Tem que idade?

Tenho 66 anos e agora oito meses, reformei-me logo que pude. Fiz os meus depósitos muito tempo e a taxa de juro é baixíssima. Será uma mudança para o Porto. Tenho a minha mãe com 92 anos, os meus irmãos, as duas filhas da minha mulher, como se fossem minhas filhas, e dois filhos de uma delas, dois netos.

E está preparado para abrandar?

O que quero é pensar no que faço para não ficar sem nada para fazer e por isso é que não quero deixar de trabalhar já, não tive tempo para pensar num plano de ação para substituir o trabalho. É uma estratégia de sobrevivência intelectual, pessoal. Acho que se parasse passado uns tempos morria de tédio.

A última viagem para Lisboa é na segunda-feira?

Ainda vou ficar cá até junho, julho. Com esta idade é um bocadinho louco este recomeçar, mas não passa nada. De vez em quando precisamos assim de uma coisa para nos inquietar.