Jorge Molder. “Só gosto das coisas que se veem. Nas que não se veem não estou interessado”

Diz que, apesar de ter uma relação com o invisível, não é isso que tenta captar nas suas imagens. Em entrevista, Jorge Molder explica de onde vem o seu fascínio pelo preto, e revela por que o Centro de Arte Moderna, de que foi diretor, não tem na sua coleção uma pintura de Francis Bacon.

O seu rosto, frequentemente exposto em grandes fotografias a preto e branco nas paredes de galerias e museus, é um dos mais conhecidos da arte portuguesa de finais do século XX e início do século XXI. Jorge Molder sublinha porém que na maior parte dos casos os seus trabalhos não são autorretratos. Trata-se, antes, de autorrepresentações em que recorreu a si próprio como modelo ou ator. «Tenho disponibilidade, sou obediente e, sobretudo, nunca me encontrei claramente nas imagens que faço comigo», esclarece. «É uma espécie de tu ficas aqui enquanto eu vou ali».

Nascido em 1947, filho de um pai húngaro que combateu na Grande Guerra, fugiu do nazismo e em 1933 acabou por fixar-se em Lisboa, onde tinha um negócio de venda de pintura, Jorge Molder não possui outra formação artística além do que aprendeu nos livros, nas visitas às galerias e, mais tarde, nas conversas com artistas e comissários. Estudou Filosofia na Faculdade de Letras da Universidade Lisboa, que recentemente lhe atribuiu o Prémio Alumni. Como não queria passar a vida em bibliotecas, procurou outra atividade e encontrou a fotografia.

As suas enigmáticas imagens a preto e branco são facilmente reconhecíveis e estão presentes nas principais coleções institucionais. Além de artista reconhecido – representou, por exemplo, Portugal na Bienal de Veneza, em 1999 – foi diretor do Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian entre 1993 e 2009.

A entrevista é feita a dois tempos. Em virtude de um pequeno acidente que lhe limitou os movimentos durante algumas semanas, Jorge Molder começa por responder por escrito a um conjunto de perguntas que lhe enviamos por email. Ultrapassado o constrangimento – e o pior da pandemia – encontramo-nos nos jardins da fundação para uma conversa sobre a sua vida, o seu percurso, a sua arte.

O que o levou a escolher o curso de Filosofia?

Andava à procura de algo que tivesse a ver com os meus interesses e pressenti que a Filosofia poderia ser isso (talvez mesmo por ignorar do que é que se tratava). Diga-se, de passagem, que esses interesses também não eram lá muito claros. Mas tudo tem começo: numas férias em casa dum primo, teria talvez uns catorzes ou quinze anos, deparei com um romance, chamado Murphy, do Samuel Beckett e não o consegui mais largar.

Quando voltei a Lisboa procurei outras obras do autor. Acho que a minha aproximação às obras não seria muito profunda mas o meu fascínio e a minha persistência eram inegáveis. E aí senti que iria sempre estar sempre dividido entre os encantos da escrita e a inevitabilidade do que foi escrito. Assim, a decisão da Filosofia ficou assente duma vez para todas. 

O que recorda desses tempos da faculdade?

Recordo tudo. Para não irmos mais longe, conheci logo uma rapariga com quem viria a casar um ano mais tarde e com quem ainda hoje vivo [a filósofa e escritora Maria Filomena Molder].

Teve professores marcantes?

Tive professores incríveis e que me marcaram para sempre: Jorge Borges de Macedo, Vitorino Nemésio, David Mourão Ferreira, Joaquim Gonçalves Cerqueira, Ivo Castro e Oswaldo Market. Destes alguns ficaram grandes amigos para sempre: o Borges de Macedo, o David, o Padre Cerqueira, o Ivo e o Oswaldo (talvez um dos meus maiores amigos de muitas vidas). Mas por volta do meu 4.º ano percebi que não queria passar a minha vida em bibliotecas, que era uma coisa que me cansava muito, e decidi que havia de encontrar qualquer outra coisa. Nunca cheguei a trabalhar em filosofia, a minha mulher é que trata disso lá em casa…

[risos] Na altura já se interessava por fotografia? Quando começou a fotografar?

Já; muito; sempre. Tive um amigo de família, Luiz Corte Real, que nos tirava fotografias. Não era fotógrafo, mas era um homem que fotografava muito bem, eu achava as fotografias muito bonitas. E ensinou-me quase tudo o que havia para saber.

Ensinou-lhe o quê?

Óptica. Como se obtém fotografias com profundidade de foco, como se obtém fotografias sem profundidade de foco, como se utilizam comprimentos maiores para fazer retrato. Foi um homem muito útil. A propósito, posso contar-lhe uma pequena história? O meu segundo mestre foi o John Coplans, sem dúvida um grande artista. Depois da guerra de 39-45 ele tornou-se um dos jovens pintores do pós-guerra e foi nessa condição que integrou uma exposição de novos valores em Nova Iorque, segundo creio. Lá chegado, descobriu que o meio nova-iorquino era entusiasmante como nunca imaginara e que o seu trabalho pouco sentido fazia: assim, dedicou-se à crítica de arte e fundou uma revista, com uns amigos, chamada ArtForum International.

Depois foi diretor de dois museus, fez as primeiras retrospetivas de Andy Warhol, Wegee, e James Turrell. Um dia lembrou-se de se tornar fotógrafo. Convidou para jantar o seu amigo Lee Friedlander e pediu-lhe para lhe dar lições. Findo o repasto, o Lee Friedlander disse-lhe: ‘Vamos começar: 1.ª lição: para se ter uma boa fotografia é necessário ter um bom negativo. 2.ª lição: deve-se sempre ler as instruções dos fabricantes. É tudo o que há sobre o assunto’. E foi-se. John Coplans percebeu tudo que necessitava. Acho que também não há muito mais.

O que importa é dominar a parte técnica?

A outra parte tem a ver com o espírito, com o que se viu, com o que se viveu, com o que se procura. 

Ainda tem a sua primeira máquina?

Não; nem a primeira, nem a segunda e nem mesmo a terceira. A primeira foi uma Gevabox que o meu pai me deu. Nunca fiz com ela qualquer fotografia mas fartei-me de brincar.

Brincava mas não tirava fotografias?

Tirava fotografias constantemente, mas nunca revelei… Não me dizia absolutamente nada. Era uma coisa como qualquer outra.

Quando começou então a fotografar com mais intencionalidade?

Comecei a sério… não sei que idade teria. Uns quinze, 16 anos.

E o que fotografava ao início?

O que fotografo mais ou menos agora. Vou-lhe contar tudo. No princípio tentei fazer algumas fotografias de pessoas, de rostos, e percebi que nem tinha particularmente vocação para isso nem me interessou especialmente. Foi logo uma porta que se me fechou.

E locais, paisagens?

Fiz muitas vezes ao longo da minha vida muitas fotografias de viagens, mas nunca fiz no sentido de aproveitar. Ou muito raramente. 

Conhece o Steve McCurry?

O nome diz-me alguma coisa…

É um fotógrafo norte-americano muito conhecido por ter feito aquela capa famosa da National Geographic da menina afegã.

Ah, já sei quem é.

Um dos conselhos que ele dá aos jovens fotógrafos é: ‘Saiam de casa, se possível para o estrangeiro’. Porque diz que é a ver coisas, pessoas, lugares diferentes que se aprende a olhar.

Eu penso exatamente o contrário. Embora tenha feito muitas outras coisas, até porque tenho filhos. Sempre fiz fotografias de família, mas é um outro ‘ramo de atividade’.

Normalmente o fotógrafo é aquele que se “esconde” atrás da câmara. Regista o mundo que o rodeia, mas ele nunca aparece. No seu caso, elegeu-se a si próprio, se não como tema, pelo menos como modelo para muitas suas fotografias. Isso foi sempre evidente para si ou foi o ponto de chegada de uma pesquisa ou processo de experimentação? Quando percebeu que seria interessante fotografar-se a si próprio, ao seu rosto?

Não é um ponto de partida e nem sequer um ponto de chegada. É algo que foi despertando aos poucos. Como algo em que vamos reparando e que um dia começa a fazer sentido. Tenho disponibilidade, sou obediente e sobretudo, nunca me encontrei claramente nas imagens que faço comigo.

Nunca teve dúvidas, ‘pudor’, quanto a expor-se dessa forma? Não lhe causa embaraço?

Sempre soube manter as distâncias. Não tem a ver com as consagradas heteronomias: é uma espécie de ‘tu ficas aqui enquanto eu vou ali’. Há, contudo, uma coisa que desarranja uma separação tão bem planeada e que é o tempo. O tempo deixa as coisas, os momentos, misturarem-se e confundirem-se. É como se umas coisas andassem para trás e para a frente, mesmo que não o desejemos, ou melhor, queiramos.

Os rostos dos outros não lhe interessam?

Se interessam, mas estamos a afastarmo-nos do assunto. Já fiz algumas exposições de outros, das suas caras e dos seus corpos que foram sendo esquecidas. Podia também fazer parte do meu modo de artista mas não faz e não há mais explicações…

A arte europeia tem uma grande tradição do retrato e do autorretrato – Dürer, Rembrandt, Van Gogh… Mas será que podemos ver os seus trabalhos como autorretratos ou considera-os outra coisa?

Aos artistas que referiu eu juntaria o Velázquez, o Goya, o Munch, o Corinth, Claude Cahun… e ainda os outros, vindos da fotografia, com quem tenho uma boa relação; visitamo-nos com frequência. Pelo caminho que percorri, vemos que há um tempo em que é fácil dizer ‘isto é isto’ (uma autorrepresentação) e ‘aquilo é aquilo’ (um autorretrato), mas depois quando os tempos se vão juntando as separações vão se esgarçando (gosto de usar este termo que vem do lado dos tecidos); o tempo vai desconjuntando e desgastando os fios e as separações vão-se tornando imprecisas. Algumas séries são autorretratos sem dúvida (O pequeno mundo, 2001), não têm nada com este mundo intermédio de que estávamos a falar.

O fato e gravata com que aparece vestido nas suas fotografias são ‘adereços’ importantes, ou até mais do que isso?
Apesar das variantes (pequenas) procurei sempre vestuário que fosse uma espécie de lugar comum, ‘todo o mundo e ninguém’, ‘here comes everybody’…

O negro tem um papel importante na sua obra. Fotografou sempre a preto e branco?

Sempre imprimi as minhas coisas e imprimia durante toda a noite até muito tarde… Também trabalhei a cores, com polaroids, gostava muito da cor da Polaroid SX70. Relativamente à outra fotografia a cores, havia uma coisa que me afastava muito, que era não saber o que estava a fazer e a minha possibilidade de controlo ser muito pequena. E portanto eu era um inegável partidário da fotografia a preto e branco e muito pouco seduzido pela fotografia a cores. Quando surgiu a digital mudei, porque aí eu tenho a possibilidade de controlar bastante bem a cor.

Recordo-me de um filme do Kurosawa, em que o protagonista diz qualquer coisa do género: ‘Quem não tem medo do escuro é estúpido, porque isso significa que não tem imaginação’. O escuro na sua fotografia pode ser um pouco isso, excitar a imaginação, levar-nos a pensar no que pode estar lá?

Acho que sim e que não. Só fiz uma série clara em toda a minha vida, foi o Pinóquio. E é uma série que tem absolutamente a ver com a morte. Se fôssemos à procura de um sentido último das coisas, não sei se o ser claro não é um bocado pior… Eu também sou muito suspeito relativamente à transparência. Há uma coisa muito típica dos mágicos, mostram sempre as mangas e que não escondem nada.

Depois de terem dito isto, fazem qualquer coisa com um golpe de mão que nós não percebemos. É óbvio que o preto tem uma tradição de ser uma coisa fúnebre, sobretudo na nossa cultura. Mas sempre me encantou porque se poderia desdobrar num sistema de sombras e poderia estabelecer contrastes muito fortes com a luz. Há um texto de S. João da Cruz [frade carmelita e místico espanhol do século XVI, autor do poema Noite Escura], que já citei muitas vezes, que diz que a única possibilidade de vermos a luz é num quarto escuro onde entra um raio de luz. No fundo, só o negro permite ter uma visão da luz. 

Como o som. Se estivermos rodeados de ruídos não ouvimos nada. Gosta da noite?

Sempre fui uma pessoa da noite e agora não sou, sou uma pessoa do dia. Toda a minha vida me levantei às oito horas, às nove começava a trabalhar e deitava-me às quatro da manhã. Hoje em dia não sou um homem da noite. Com a idade a pessoa aproxima-se do fim e portanto começa a ser muito sensível à manhã, à força do dia que nasce. Antes era um homem sinceramente e completamente da noite. Hoje em dia sou partidário do deitar cedo e tarde erguer. [risos]

O que estudou acabou de alguma forma por ser-lhe útil para o seu trabalho como artista? De que maneira aquilo que aprendeu na Faculdade de Letras se traduz na sua abordagem à fotografia?

Quase nada é inocente, nem mesmo na Filosofia e na Fotografia. As coisas de que gostamos estão sempre a falar umas com as outras, mesmo que disso não nos apercebamos. Eu mesmo não me dei disso conta nuns primeiros tempos. Depois apercebi-me, pouco a pouco, que entre as muitas coisas com que trabalho essas também tinham sido e são importantes. Não são certamente o meu vento mais forte, mas sopram mesmo assim…

Disse que uma das coisas que o levaram a querer estudar Filosofia foi o Beckett, que todos conhecemos pelas suas peças de teatro. Faz sentido comparar a sua fotografia a uma peça em que o Jorge Molder é o autor, o encenador e o ator?

Eu acho que tenho afinidades, proximidades com o teatro, muito embora… é engraçado, não sou uma pessoa do teatro. Vou pouco ao teatro, ou quase nunca vou ao teatro, sou mais do animatógrafo.

Mais do cinema.

Mais do cinema. Mas em termos de conceção, isso acho que sim. E também de outras coisas, por exemplo do ballet. Fiz bastantes trabalhos com o Jan Fabre, com quem tive e tenho uma relação muita antiga. Conhecemo-nos há trinta e tal anos – agora, com estas coisas todas, perdi o contacto, estou um bocado longe… É natural, estamos todos.

A fotografia é um bocadinho o seu palco?

É um bocado. Um bocado muito. Quanto ao cinema é, digamos, um amigo consistente. Muitas coisas minhas partiram do que se ouve no café, do tipo que está ao lado, no elétrico ou no autocarro. Sempre fui muito ligado ao cinema, mas podia ser muito ligado ao cinema e a minha fotografia não ter nada a ver com cinema. O que é curioso é que a minha fotografia tem a ver com o cinema, e eu não tenho nada a ver com o cinema no sentido do modus faciendi, nunca me apeteceu fazer um filme. Fiz dois vídeos na minha vida.

O primeiro foi filmado pela minha mulher, que nunca tinha pegado numa câmara. Porque hesitei entre ser uma coisa muito bem filmada ou ser uma pessoa que tremesse, que a imagem vacilasse e isso tudo. O outro filme foi um amigo cineasta que filmou, e a minha colaboração é acrobática, uma vez que eu caio de um alçapão de um teto que estava a dois metros e tal.

Não se magoou?

Repetimos a cena 21 vezes, fiquei todo partido e depois aproveitámos o primeiro take.

[risos]

Fiquei desesperado.

Não lhe interessa fazer cinema porque é individualista e na fotografia pode controlar o processo todo?

Não é por ser individualista. Primeiro, o resultado que eu quero não é tão vasto quanto o do cinema, é só aquele momento. Depois, não faz a minha maneira de ser, de estar no mundo, ter uma grande equipa e trabalhar com ela. Acho que não seria capaz. Portanto não é só uma questão de querer ou não querer, é uma questão de ser capaz ou não ser capaz, e possivelmente não sou capaz.

Fiquei curioso com o que disse acerca de às vezes as coisas partirem de uma conversa ao lado no café ou de uma pessoa que estava sentada no elétrico. Como é isso?

Uma pessoa que diz uma frase, ou tem um gesto. Estamos numa repartição de finanças ou num autocarro, e muitas coisas na vida começaram assim.

São situações que põem a engrenagem da imaginação…

Em movimento. Eu sempre fui muito associado à literatura, e é verdade que tenho alguns lugares na literatura. Há os escritores que me ajudaram, que fizeram parte da minha vida e é verdade que fiz um livro sobre o [Joseph] Conrad. Mas a minha fotografia por vezes foi tida como literária – e acho que não tem nada a ver com isso. Não sou um leitor, leio muito pouco.

Não são essas as suas grandes referências?

São, mas… São situações que me marcaram muito desde miúdo, como o Beckett, como o Joyce, até ao último escritor, que é o Georges Perec.

O Joyce é um bocado complicado. O Ulisses é… difícil de digerir [um crítico chamou-lhe ‘ilegível, intragável e irrecenseável’].

Sabe que eu acho que o Ulisses é um livro fácil… quando se começa a ler o Finnegans Wake. [risos] Mas o Joyce também tem contos maravilhosos. Um deles deu origem ao último filme do John Houston [The Dead – ‘O morto’, de 1987], uma adaptação de um conto dos Dubliners. É muito bonito esse filme. Comecei muitas vezes ler o Ulisses, e depois uma vez fui para férias e acabei de ler o livro. Foi antes de ir para a tropa, devia ter 23 anos ou 24.

E conseguiu entrar naquilo?

Entrei completamente. E depois voltei mais tarde a ler bocados, nunca mais voltei a ler o livro todo, até gostava de o comprar.

O livro esteve uns anos proibido nos EUA [a primeira edição americana é de 1934, 12 anos depois de ser publicado em França] por obscenidade. Mas durante a ditadura era permitido cá…

Ninguém o lia. Mas é preciso também ter atenção a uma coisa. Antes do 25 de Abril havia em Lisboa boas livrarias que tinham edições estrangeiras de tudo e mais alguma coisa. O Ulisses não preocuparia com certeza absoluta o Antigo Regime, não era um livro propriamente que as massas populares fossem comprar, portanto não tinha a mínima importância.

Há quem diga que se respirava mal, mas pergunto-me se a vida era tão cinzenta como às vezes imaginamos. No caso da ópera e da música clássica, passaram por cá grandes nomes: a Maria Callas e o Alfredo Kraus, o Arthur Rubinstein, o Stravinsky…

Não era só isso. É preciso ver que a Gulbenkian abriu ao público – mas começou muito antes – em 69. Lembro-me de estar a ouvir a 4.ª [sinfonia] do Brahms e estar na sala o Presidente Américo Thomaz. Havia essas contradições do regime. Em que é que o regime era de facto repressivo? Relativamente a tudo o que se relacionasse com o Partido Comunista. Tenho família operária que era do Partido Comunista e para esses a vida talvez fosse um bocado cinzenta.

Nós não tínhamos razão de queixa. As pessoas já não se lembram disto, mas os filmes do Eisenstein [cineasta soviético de vanguarda, autor do Couraçado Potemkin, de 1925] passaram naquele cinema pequenino que havia na parte de cima do Monumental, o Satélite. Vi aí imensos filmes. O que é que poderia não passar? Os filmes ou muito escandalosos ou muito políticos, sobretudo do Neorrealismo [italiano]. Não vamos dizer que havia uma liberdade enorme. Mas hoje em dia temos uma liberdade muito maior e temos também oportunidades menores. Repare que continuamos a discutir a porcaria do 1% para a Cultura.

Não temos o verdadeiro Ministério da Cultura sediado aqui na Avenida de Berna?

Se calhar já tivemos mais. Hoje a Fundação Gulbenkian concentra-se mais nalguns objetivos prioritários, não tem a prodigalidade que teria nos seus primeiros tempos. Uma coisa quando surge não tem grandes compromissos. Ao fim de 30 anos é diferente. Por exemplo, a Companhia de Bailado ia na terceira ou quarta geração de reformados. Outro dia estava a ouvir uma entrevista em que o Jorge Martins contava que praticamente o chamaram para ir dar uma volta pela Europa, ver museus, ver isso tudo. Ainda a Fundação não existia aí e já estava a ter uma ação. E a primeira ação que ela tem ao nível das artes foi mandar as pessoas sair. Porque as pessoas estavam fechadas, é um facto, umas por razões políticas, outras por razões económicas.

Por falar nisso. A sua formação artística, como a fez?

A minha formação artística nasceu comigo. Comecei a visitar exposições aos 12, 13 anos, a ver tudo o que havia.

Veio do berço?

Veio talvez por influência do meu pai, que era um homem ligado às artes, e tinha todos aqueles livros sobre todos os artistas. Fundamentalmente artistas clássicos, italianos. Mas eu fiquei sempre ligado às poucas galerias que havia – havia aqui a Civilização, na Dona Estefânia…. Depois há um período mais intenso, com a Buchholz, a Quadrante e a 111, com o Manuel Brito, que fez um trabalho espantoso.

Qual era a ligação do seu pai às artes?

O meu pai era um homem muito antigo, do império [austro-húngaro]. Nunca viveu na Hungria. Foi para a Grande Guerra e a seguir à guerra viveu pela Europa – viveu em Bruxelas, viveu em Madrid, viveu em Berlim. Era casado com uma senhora alemã que tinha um filho que não era dele, e quando chegou a Portugal, em 1933, essa senhora morreu, com um tumor. O meu pai tinha a intenção de ir para a América ou para África, mas achou que isto aqui era muito bom e acabou por ficar.

1933 é o ano da ascensão de Hitler.

A vinda do meu pai tem a ver com isso. Percebeu logo que era tempo de ir embora. Era um homem que se adaptou muito bem à realidade portuguesa. Na loja dele também se vendiam objetos artísticos, alguns deles seriam bastante interessantes, certamente, porque eu ainda apanhei algumas coisas surpreendentes, mas a maior parte eram coisas um bocadinho da época.

Mobiliário?

Não, não, quadros, pintura. 

Então era uma galeria.

Sim, mas não acho que venha daí o meu interesse por estas coisas. Talvez venha também, uma pessoa sabe lá. Do que me lembro, era uma galeria que devia ter aquelas coisas que a época consumia. E depois teria algumas coisas interessantes, uma das quais, por exemplo, eu tenho em minha casa, que é um quadro do Emil Orlik, um dos pais do expressionismo alemão.

Esse negócio fechou?

Com o tempo acabou. A casa concentrou-se na filatelia e hoje em dia a minha filha Adriana é que tem lá uma galeria, mas não é comercial, é um projeto dela, a Galeria da Casa A. Molder. Não estou minimamente ligado, não tenho absolutamente nada a ver com isso.

A sua formação também passou por essas viagens ao estrangeiro?

Não, viajei muito pouco. Antes do 25 de Abril – e isto não tem a ver com estarmos a fazer uma datação ‘política’ – as pessoas não viajavam muito. Fui a Paris a primeira vez no Sud-Express, não fui de avião. Em 65 fui a Inglaterra. E também fui à Bélgica e à Alemanha, aí várias vezes. Mas não era normal. À Alemanha, por exemplo, fui de carro, a guiar. Hoje era incapaz.

Em Inglaterra teve alguma revelação?

Se está a dizer artística, tive muitas. A National Gallery continua a ser uma coisa absolutamente espantosa. E depois nessa altura eu não estaria a par das galerias inglesas, mas posteriormente estive muito a par, tive muitos contactos.
Vários artistas têm-me dito que estavam habituados a ver as pinturas em livros, às vezes até em reproduções a preto e branco, e chegavam a Madrid, a Paris ou a Londres e podiam vê-los ao vivo e a cores, era um momento de iluminação.

Ou de deceção. Um dia o Bacon está em Roma e dizem-lhe: ‘O retrato do Inocêncio X está em exposição na coleção Doria Pamphilj, vamos lá dar um salto logo à tarde?’. E o Bacon diz uma coisa admirável: ‘Eu não vou. Não preciso, tenho um postal ótimo’ [risos] E portanto não foi. Eu percebo isso. A pessoa está tão habituada a olhar para o postal, e depois é capaz de ter um choque e pensar que tudo aquilo que fez, afinal, teria sido diferente se desde o princípio tivesse tido um contacto assíduo com a pintura. E pronto, é capaz de ser melhor parar aí. Tenho um caso curioso de um quadro que toda a vida me fascinou – a mim e a milhões de pessoas – que é Os Embaixadores, do Holbein. Sempre que ia a Inglaterra passava a minha meia horita a olhar para os Embaixadores. Li imenso sobre o quadro mas nunca me deu para o usar para fazer qualquer coisa. Era uma paixão platónica.

Além de artista, foi diretor do Centro de Arte Moderna entre 1993 e 2009. Como começou a sua relação com a Fundação Calouste Gulbenkian? Foi bolseiro?

Tive algumas ajudas materiais mas nunca fui bolseiro. A relação começou porque fiz aqui três exposições. A primeira foi uma coletiva sobre o Saint-John Perse, aquele poeta francês muito clássico que foi muito amigo do Sr. Gulbenkian.

Depois fiz uma exposição com o Jorge Martins, O Fazer Suave de Preto e Branco, em 85, e em 87 tive uma exposição individual de um ciclo de fotografia. Principalmente na última, tive imensas conversas com o Sommer Ribeiro sobre o que eu pensava sobre a arte portuguesa, sobre a Fundação, o Centro de Arte Moderna [CAM], etc. E um dia o Sommer telefonou-me para vir cá falar com ele, e perguntou-me: ‘Você gostava de trabalhar comigo?’. E eu disse: ‘Era uma coisa de que gostava imenso’. E pronto, vim trabalhar com o Sommer Ribeiro.

Durante o período em que foi diretor do CAM foi fácil estar dos dois lados da barricada – o da criação e o da gestão?

Foi muito fácil porque eu sempre soube separar as coisas, nunca tirei partido do facto de trabalhar na Gulbenkian. A Gulbenkian deu-me uma coisa extremamente importante. Como sempre detestei ensinar, permitiu-me ter um contacto e falar com artistas. De alguns fiquei muito amigo. Todas as coisas que fazemos na vida são importantes – positivamente ou negativamente. Esta foi importante positivamente. Não foi importante de tirar partido de trabalhar aqui.

Para promover a sua obra?

Tentei sempre seguir um caminho diferente, que não tivesse a ver com a fundação. Um dos únicos casos em que não consegui evitar, embora tenha tentado, foi uma exposição da coleção da FLAD, que tinha muitos trabalhos meus, e alguns estiveram expostos no CAM. Ainda houve quem me propusesse, por trabalhar aqui, ser consultor de uma leiloeira, mas disse logo que não porque não gosto de confusões. E quando deixei a fundação também não quis nunca fazer parte desse mundo.

Houve alguma exposição ou iniciativa que tenha gostado especialmente de promover?

Houve muitas, muitas, muitas exposições. Os portugueses têm uma ideia de liberdade que de facto não existe. Nos museus americanos, por exemplo, os diretores estão muito condicionados pelo board of trustees [conselho de administração], que diz mais ou menos o que hão de fazer. Aqui acho que tive quase liberdade total de fazer o que me apetecia.

Seguindo as pegadas do Sommer Ribeiro, continuei a fazer uma divulgação sistemática da obra de artistas portugueses que não tinham qualquer suporte de futuro, portanto havia uma lógica de retrospetivas que achei que era importante manter, e depois havia os artistas estrangeiros que era importante dar a conhecer para não fechar. Fizemos grandes exposições aqui, desde o Franz Erhard Walther, para a qual trabalhei com ele em Duisburgo durante uma semana. Também estou a pensar nas discussões que tive com o Anthony Gormley, o grande escultor inglês de ferro. Ele começou a fazer finca-pé porque queria utilizar o piso de cima para meter as esculturas pesadas, chegou a estudar métodos de reforço do piso. Mas aquilo não dava. Era excessivo. E no piso de baixo ficavam as caldeiras, portanto havia um perigo grande se acontecesse alguma coisa.

E depois tivemos uma ideia ótima, que foi usar as oficinas para pôr essas esculturas pesadas e o piso do meio para fazer uma espécie de retrospetiva de algumas esculturas importantes que mediavam entre dois ciclos. Mas houve muitas. Por exemplo a exposição da Marlene Dumas, de quem eu sou muito amigo. Escrevi para a Tate a pedir as obras emprestadas e eles disseram que não emprestavam porque o pedido foi muito à última da hora. Telefonei para a Marlene e ela disse: ‘Deixa estar, que eu faço uma exposição para aí’. E fez a exposição para cá. Foi muito giro, as pessoas não se aperceberam. 

Há outras histórias curiosas desse período?

Como sabe, a Gulbenkian tem uma coleção extraordinária de arte britânica. Porquê? Porque o Dr. [Azeredo] Perdigão a certa altura resolveu fazer uma coleção com o British Council. Essa coleção é iniciada por três consultores absolutamente extraordinários – que são o Roland Penrose [pintor surrealista, colecionador e biógrafo de Picasso], o Herbert Read [poeta, crítico de arte e promotor da arte moderna] e o Alan Bowness, que foi um grande diretor da Tate. Só que os grandes espíritos às vezes também têm problemas e entraram numa discussão por causa de um desconto de um Bacon e é por causa disso que esta coleção e a do British Council não têm um Bacon. É extremamente curioso, que três tipos brilhantes…

Empancam.

Acontece aos melhores, como se costuma dizer. E é pena, porque fazia falta um Bacon.

Que é uma das suas referências.

É.

Há uma relação direta com aqueles seus retratos desfocados?

Talvez aí não tanto. Há duas séries que têm diretamente a ver com o Bacon. Uma é a T.V.

T.V.?

Velázquez foi encarregue pelo Filipe [IV] de comprar quadros para a coleção real. Foi a Itália, correu seca e meca, e enquanto andou por lá pintou o retrato do Inocêncio X, que era um Doria Pamphilj. Quando ele entregou o retrato ao Papa, o Papa disse: ‘É troppo vero’ [demasiado verdadeiro]. Usei essa expressão T.V., que quer dizer isso, entre outras coisas…

Já viu o projeto do novo CAM?

Já fui ver a obra. Há tipos que são bons para a geometria descritiva e conseguem ver como as coisas vão ficar. Eu nunca tive essa cadeira, felizmente. Não consigo imaginar e tive dificuldade outro dia, quando lá fui, em reconhecer alguns sítios.

Eles vão fazer uma intervenção mesmo de fundo, portanto aquelas zonas intermédias desapareceram. Mesmo assim há sítios que são extremamente ancorados. Até porque, pela minha maneira de trabalhar, eu devia ser das pessoas que conheciam melhor este edifício. Aquilo tem partes muito interessantes. Aliás, a única fotografia que eu fiz no CAM é exatamente de um sítio onde ninguém vai. Quando o piso 02 acaba há uma porta que abre para um corredor que dá a volta ao edifício todo, que é uma cintura de proteção. É uma coisa de terror. Aquilo impõe respeito. Abrir uma porta e descobrir que há uma passagem que é da sua largura, você teria de ir assim [de lado].

E foi aí que fotografou?

Fiz uma fotografia da série O pequeno mundo’ em que usei esse espaço exatamente por ser o espaço de um corredor mínimo onde a pessoa está no princípio e o resto é tudo escuridão.

Admite que em algumas fotografias suas há um certo sentido de claustrofobia?

Sim.

Quando faz uma fotografia interessa-lhe só a superfície ou o que pode estar para lá?

Eu fotografo a coisa que está lá. O que não está lá não sei, sobre isso não posso falar. Agora, o que disse é meia verdade. Eu fotografo o que está lá e deixo à pessoa [que vê] a possibilidade de ter curiosidade de ir para outro lado.

Colocando a questão de outra forma: a fotografia consegue captar mais do que a superfície?

Acho que sim. Mas eu só gosto das coisas que se veem. Nas coisas que não se veem não estou muito interessado. Costumo dizer que não gosto de símbolos, nunca trabalhei com símbolos. Mas gosto de metáforas. E o que são as metáforas? Levar a coisa de um lado para o outro. Os transportes públicos na Grécia chamam-se ‘metaphora’ – levam uma pessoa de um lado para o outro. Isso é qualquer coisa que faz parte da minha maneira de trabalhar. Agora, eu achar que com uma máquina fotográfica sou capaz de entrar para dentro do que quer que seja, disso tenho muitas dúvidas. O que deixo é a hipótese de alguém – ou eu próprio, como qualquer outro espetador – ver o que está para além.

Em todo o caso, o ponto de partida é sempre o visível.

Eu tenho uma relação com o invisível, como toda a gente tem. Mas dizer-lhe que estou a tentar apanhar o invisível, não. Estou a apanhar aquilo que ali está. Tive um professor na Faculdade de Letras, o Jorge Borges de Macedo, que dizia uma coisa que me marcou muito a minha vida. Dizia: ‘O real é tumultuário. Está sempre disposto a surpreender-nos’. Isso é verdade. Quando vemos uma coisa de repente depois descobrimos outras coisas a propósito disso. Aquilo que eu posso descobrir é uma coisa, aquilo que eu mostro é outra. Resumindo: eu não tenho especiais dons de penetração, quer nas pessoas, quer nas coisas. Mas posso sugerir um espaço que é inquietante e que nós, ao vê-lo, sentimos como inquietante. Aí com certeza.

Hoje em dia trabalha com digital ou analógico?

Em dezembro de 1999 comprei uma máquina digital, a minha primeira, e fiz um trabalho fantástico, ficou muito bem. Quando fui imprimir, percebi que aquilo não valia nada, era uma coisa completamente incipiente, que dava para fazer uns postaizitos. Cinco anos depois já estava a trabalhar no digital com resultados absolutamente satisfatórios. O que eu entendo é que o digital e o analógico são diferentes: com um obtém-se uma coisa, com o outro obtém-se outra. Agora, o meu ponto de vista é que tenho que viver com as coisas do meu tempo.

Isso obrigou-o a alterar a sua maneira de trabalhar?

Completamente. O estilo de fotografias que eu fazia implicava trabalhar 12 horas e um esforço relativamente grande. As quantidades de revelador, essa coisa toda, só tinha sentido se uma pessoa trabalhasse durante um certo período, se não era uma coisa desproporcionada. Acontece que a partir de 2003 percebi que tinha chegado ao meu limite. Poderia – e ainda posso hoje em dia – fazer coisas analógicas mas tenho de fazer numa dimensão que esteja ao alcance dos meus poucos poderes.

A partir dos 60 e tal anos a pessoa sente uma redução muito grande das suas forças, e da energia, portanto tem de encontrar outros meios. E o digital permite-me fazer imagens, não são as mesmas imagens, são outras. E atenção que não estou a dizer ‘Tenho de me satisfazer com isto’. Não, antes pelo contrário, descobri outras coisas. E sinto-me satisfeito com isso.