O horror de Bucha contado na primeira pessoa

Via-se lixo, excrementos, carros roubados e sapatos de criança à volta das casas ocupadas por russos, diz Dmytro Gumenyuk. Eles disparavam “contra tudo o que mexe”, conta Iryna Yarmolenko, do conselho municipal de Bucha.   

por João Campos Rodrigues e Marta F. Reis

Iryna Yarmolenko acordou com o estrondo de mísseis russos. Eram cinco horas da manhã e esta mãe de 30 anos, eleita para o conselho municipal de Bucha, fora surpreendida pelo começo da invasão. Hoje, Yarmolenko está a salvo na Polónia, mas mal vê a hora de regressar à sua cidade, de ajudar a reconstruí-la com  o apoio de países europeus, até já procura arquitetos e material de construção, falando com câmaras municipais como a de Lisboa e Cascais. Enquanto observa com horror as imagens de Bucha desfeita, ouvindo amigos e vizinhos falarem-lhe de execuções sumárias, violações e pilhagens cometidas pelos soldados russos deixados à solta, frequentemente bêbedos.

Talvez Yarmolenko só tenha escapado à carnificina de Bucha por ter um filho. Mal a invasão eclodiu, meteu-se no carro acorreu a ir buscá-lo à avó, que vivia a umas centenas de quilómetros de distância, não levando nada mais do que água, documentos e um fato de treino. Não fosse isso, poderia ter arriscado ficar.

“Não conseguíamos acreditar que fosse possível que uma capital fosse invadida tão rápido no século XXI”, explica Yarmolenko, à conversa por telemóvel com o i. “Acordei com o barulho e nem conseguia acreditar. Uns segundos depois ouvi o som dos caças ao longe. Passado uns minutos as pessoas começaram a escrever no Facebook que nos estavam a bombardear”. Ligou à mãe, que estava aterrorizada, verificou que as suas amigas mais próximas se tinham escondido em abrigos com os respetivos filhos e arrancou.

Quem ficou viveu semanas de terror. Bucha fica próximo do Aeroporto de Antonov, em Hostomel, tomado pelas tropas aerotransportadas russas nos primeiros momentos da invasão. A ideia seria que servisse como testa-de-ponte, enquanto forças de elite avançavam sobre a capital ucraniana, para uma vitória rápida. À frente seguiam unidades como o 331.º Regimentos de Guardas Paraquedistas, que rapidamente descobriu que os seus veículos blindados, leves o suficiente para serem transportados de avião, não chegavam para enfrentar o fogo inimigo com que se depararam em Bucha.

Este regimento foi praticamente aniquilado, avançou a BBC, deixando as carcaças dos seus veículos nas ruas, enquanto reforços russos iam chegando a Bucha, que virou linha da frente. Perante a feroz resistência, as tropas russas foram-se tornando cada vez mais impiedosas. E Yarmolenko escutava o pânico dos civis.

“Não é a primeira vez que tento escapar”, contou-lhe uma amiga, que já tivera de deixar tudo para trás devido à guerra civil em Donbass, em 2014. “Acho que devia fugir, mas tenho medo, porque eles estão a disparar contra tudo o que mexe. Não querem saber se são miúdos, civis ou soldados, simplesmente disparam”, continuou, quando conseguiu ter alguma rede, no quarto dia da invasão.

A amiga de Yarmolenko pegou no seu bebé, arriscou sair da cave entre combates, seguindo para leste, atravessando Kiev, “graças a Deus conseguiu”. Mas a situação em Bucha foi-se deteriorando cada vez mais. “Mal temos rede, não temos água”, contou uma outra amiga de Yarmolenko, que teve de ir buscar água ao lago próximo de Bucha. “Temos frio e não temos petróleo para me aquecer”.

Os invasores, que já tinham disparado contra os corredores humanitários, até “mataram voluntários que levavam pão aos velhotes, àqueles que não se podiam deslocar”, denuncia esta dirigente do município de Bucha. Talvez fosse isso que fazia o ciclista ucraniano cujo cadáver foi abandonado nas ruas  de Bucha. Ainda ontem as autoridades ucranianas divulgaram um vídeo captado por um drone, que parece mostrar esse mesmo ciclista a virar a esquina e a deparar-se com um tanque russo, que abriu fogo sem grandes contemplações. “Disparavam contra as pessoas ali mesmo na rua. E ninguém as pôde ir buscar para os enterrar durante semanas”, lamenta Yarmolenko.

 

Ódio e disciplina quebrada

Entre edifícios destruídos, acumularam-se cadáveres mas também tanques queimados, contou Dmytro Gumenyuk. Este responsável do centro estatal da Ucrânia para a segurança nuclear e radioativa, ou SSTC NRS, foi distribuir medicamentos a Bucha, a uns 30km de onde mora, esta terça-feira, e deu com um cenário inimaginável.

“Vi casas onde soldados russos estavam a viver. Havia montanhas de lixo, excrementos à volta das casas, carros roubados, bicicletas, sapatos de crianças”, descreveu o engenheiro nuclear, por mensagem ao i. “Não consigo imaginar como é possível usar os sapatos de uma criança morta. Ou usar os brincos de uma rapariga violada e morta”, questionou-se. “Consegue imaginar?”

De facto, é algo quase impossível de conceber. Mas à medida que a moral russa ia quebrando e as derrotas se iam somando, a disciplina desintegrou-se. O crimes escalaram. “Os russos vieram para roubar, violar e matar civis”, acusou Gumenyuk. “O maníaco do Putin reuniu um exército de selvagens”.

“Eles odeiam  os ucranianos porque a TV russa os ensinou a odiar”, concluiu o engenheiro nuclear, no mesmo dia em que o discurso do Kremlin mudou (páginas 2-3), revelando um ódio ainda mais visceral à população ucraniana.

Já Yarmolenko sente o peso dessa propaganda na pele, até entre a sua família. A sua tia, nascida na Ucrânia, e que se mudou para perto de Moscovo há décadas, nos tempos da União Soviética, não só lhe pediu que não dissessem mal de Vladimir Putin por telemóvel – algo razoável, dada a perseguição a dissidentes políticos na Rússia – como nem sequer acredita nos abusos sofridos pelos amigos e vizinhos da sua sobrinha. “O nosso exército nunca iria matar civis, só atingem infraestruturas militares”, respondeu a tia desta dirigente municipal de Bucha, mesmo confrontada com imagens.

“Sentimos que acreditam nessa propaganda, que os civis morreram por causa da nossa ideologia nacionalista, não sei de que ideologia falam”, lamentou Yarmolenko. “Quem é que são estes nazis? Sou eu? É o meu filho ou a minha mãe?”, perguntou à sua própria família, uma e outra vez, sem obter qualquer resposta.