No espaço de apenas 11 dias, depois de ter aberto um canal para receber denúncias de assédio e discriminação, a Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL) recebeu 50 queixas, relativas a 10% dos professores. Sabe-se que sete dos 31 professores alvo de queixa correspondem a mais de metade dos relatos. Para entender esta realidade e aquilo que a instituição de Ensino Superior pretende fazer para erradicar estas práticas, o jornal esteve à conversa com a diretora e Professora Associada Paula Vaz Freire.
Como decidiram abrir um canal para denúncias de assédio?
Isto partiu dos testemunhos de alguns alunos, no Conselho Pedagógico, que transmitiram preocupação relativamente a situações associadas ao assédio. Naturalmente que essa expressão não foi identificada de nenhuma identificação de docentes, mas entendeu-se, a partir dessas conversas iniciais, que tiveram início por volta de janeiro, que devíamos criar uma forma de recolher informação para traçar uma radiografia daquilo que estava a acontecer na faculdade. E, portanto, foi esse o pontapé de saída.
No mês anterior, em dezembro de 2021, houve exatamente um movimento semelhante na Universidade do Minho. Este teve impacto na forma como os estudantes se uniram, ganharam coragem e falaram?
Pode ser que tenha tido, mas os alunos são os mais indicados para responder a essa questão. Não posso formular um juízo de causalidade relativamente a esses acontecimentos, mas é totalmente possível. Que eu saiba, explicitamente, nunca existiu essa correlação.
No enquadramento do relatório, é possível ler que “o Conselho Pedagógico decidiu criar uma Comissão com o objetivo de melhor compreender a situação e de, caso tal se revele necessário, apresentar propostas relativas à criação de regras e procedimentos próprios”, sendo que esta “decidiu recolher, da forma mais completa possível, o contributo da comunidade académica, abrindo um canal através do qual puderam ser livre e anonimamente relatadas ocorrências de más práticas”.
Sim, exato. Tal como se pode ler, esta recolha decorreu entre os dias 14 e 25 de março de 2022, por meio de um Formulário Google no qual se deixou, somente, um campo em branco para introdução de texto, sem que fosse formulada qualquer questão.
De seguida, é explicado que “foram consideradas más práticas no relacionamento de docentes com alunos, nomeadamente, aquelas que se traduzam em atos de assédio sexual” como “repetir sistematicamente observações sugestivas, piadas ou comentários sobre a aparência ou condição sexual; realizar telefonemas, enviar cartas, mensagens ou e-mails indesejados, com texto ou imagens, de caráter sexual, de forma expressa ou insinuada; promover o contacto físico intencional e não solicitado, ou excessivo, ou provocar abordagens físicas desnecessárias; enviar convites persistentes para participação em programas sociais ou lúdicos, quando a pessoa visada demonstrou que o convite é indesejado; apresentar convites e pedidos de favores sexuais associados a promessa de obtenção de vantagens académicas ou profissionais, podendo esta relação ser expressa e direta ou insinuada)”.
Exatamente. E, depois, foi esclarecido igualmente que o assédio também pode ser de cariz moral “como, por exemplo, pela sua gravidade ou repetição, tentativas de intimidações ou represálias, atos provocatórios e humilhantes, comportamentos acintosos que demonstrem falta do respeito ou consideração devidos), que representam uma quebra na confiança própria da relação pedagógica e impedem a criação de um ambiente propício à aprendizagem”.
Foram apresentados um total de 70 testemunhos, 50 dos quais foram considerados casos de assédio em contexto pedagógico. Na totalidade, 29 foram de assédio moral, 22 de assédio sexual, dez foram considerados não relevantes, sete foram considerados relevantes no contexto pedagógico, dois foram considerados pouco relevantes, atendendo à vagueza dos termos em que foram apresentados e um prende-se com problemas de assédio entre alunos. Esperava estes números?
Tenho alguma dificuldade, ainda, em fazer um juízo fundamentado sobre estas situações. Isto porque não as conheço em termos de factualidade e os factos não são do conhecimento da direção. Temos conhecimento do relatório que tem à sua frente e eu à minha frente. Portanto, perante estes números, aquilo que posso dizer é que o assunto merece toda a nossa atenção. E, por isso, temos de adotar um conjunto de medidas, uma estratégia. E quando digo temos refiro-me a todos os órgãos. Contudo, é óbvio que há uma responsabilidade acrescida, por parte da direção, de promover determinados mecanismos e é isso que iremos fazer. Teremos de confirmar, na medida do possível, e chegar à concretização dessas situações para podermos agir em conformidade.
Ainda é muito cedo para entender os contornos dos casos, mas há muitas situações que podem ter ocorrido e levado os estudantes a fazerem queixa de um professor.
Claro. E, atendendo a que o modelo é a queixa anónima, há um eventual potencial para que isso aconteça. Isso não quer dizer que estejamos a desvalorizar as situações que nos preocupam. Pode é existir uma confusão de sentimentos por parte de alguém que se sente injustiçado. Vamos presumir que não é isto que não ocorre na maioria dos casos e não existe uma instrumentalização da denúncia.
Alguns órgãos de informação generalizaram as denúncias e definiram-nas como “troca de favores sexuais por notas mais elevadas”, mas, através da leitura do relatório, entende-se que esse não é o único motivo.
Também me parece que será excessivo fazer essa generalização.
“Os testemunhos referem-se a práticas de 31 docentes, sendo detetados, entre estes testemunhos, mais do que um testemunho relativamente a sete docentes”, lê-se e, abaixo, surge uma grelha com a designação dos docentes e o respetivo número de testemunhos: D2 – 3; D3 – 3; D6 – 9; D8 – 5; D18 – 5; D21 – 3 e D25 – 2. Todos estes são do género masculino?
Em rigor, não sei dizer isso. Mas, por exemplo, falando das vítimas, relativamente ao sexismo, todos os casos se referem a discriminação de pessoas do género feminino.
O único nome indicado, até agora, pelos meios de comunicação social, foi o de Guilherme W. d’Oliveira Martins. Além de professor auxiliar e advogado, desempenhou funções enquanto secretário de Estado das Infraestruturas do XXI Governo Constitucional entre os anos de 2015 e 2019.
Daquilo que conheço do processo do professor Oliveira Martins, sei que houve uma denúncia de alunas, em 2020, e instaurámos um procedimento disciplinar. Do ponto de vista da direção, parece-me que tomámos, em devido tempo, as medidas adequadas. Promovemos a instrução do processo e o instrutor apreciou os factos que estavam em causa. Nesta fase, o processo é público e houve um juízo de censura. Ou seja, no fundo, a conclusão de que aquelas condutas não eram adequadas e houve um pedido de desculpas da parte do professor: um reconhecimento, perante as alunas, de que a sua conduta não teria sido a mais adequada.
“Na queixa, as alunas acusam o professor, entre outros factos, de lhes enviar mensagens pelas redes sociais, nomeadamente pelo Facebook a altas horas da madrugada. Nesses contactos, o professor, de 45 anos, insistia em oferecer ajuda para explicar a matéria e fazia várias perguntas de foro pessoal. Todos os contactos eram feitos nunca antes das 20:00 e prolongavam-se pela noite fora, havendo ocasiões em que enviava mensagens já depois das 03:00 horas da madrugada”, avançou a CNN Portugal. É disto que se trata?
Precisamente. No relatório, foi apontado que “os meios utilizados para as práticas identificadas” foram o email – em dois casos –, a via presencial – em 32 – e as redes sociais/mensagens em 10. E foi acrescentado: “A vasta maioria dos relatos respeitante a ações presenciais refere-se a atividades em aula ou na sequência da aula, embora também haja casos relativos a provas orais (5) e um relativo a uma prova escrita”.
Abordando a questão das provas presenciais, em julho de 2021, uma estudante de Direito da Faculdade de Direito da Universidade do Porto (FDUP) foi impedida de realizar um exame devido à indumentária que apresentava. O episódio ocorreu quando o professor Paulo Pulido Adragão recusou entregar o enunciado da prova à jovem por esta estar “muito destapada” e pediu-lhe que vestisse um casaco, tendo a aluna conseguido realizar o exame, momentos depois, graças à intervenção de um colega.
Não vou comentar por uma questão de cortesia institucional e porque aquilo que poderia dizer seria a minha opinião pessoal.
“Todos os testemunhos considerados relevantes têm como objeto ações de docentes. Os testemunhos foram analisados tendo em conta os destinatários destas ações, em que cerca de metade (27) tem como destinatários uma determinada pessoa (ou várias, no caso de comportamento reincidente), sendo a outra metade (29) dirigida aos alunos em geral, ou a certas categorias de alunos” é clarificado, sendo que foram detetados cinco casos de xenofobia/racismo, um de homofobia e oito de sexismo. Pode abordar os mesmos mais detalhadamente?
No caso da xenofobia/racismo, como foi concluído, “os testemunhos referem-se a alunos brasileiros, negros ou originários de Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa. No caso do sexismo, todos os casos se referem a discriminação de pessoas do género feminino” e “não é possível especificar detalhes quanto ao testemunho dado relativo a homofobia”.
Em setembro de 2020, o Público adiantava que o professor Francisco Aguilar havia feito observações polémicas, em programas curriculares das cadeiras de Direito Penal IV e Direito Processual III e num artigo numa revista jurídica, entre as quais uma comparação entre o feminismo e o nazismo.
Esse caso tem outro tipo de contornos e aquilo que aconteceu foi um processo disciplinar e a suspensão imediata do docente. A partir desse momento, deixou de dar aulas e o processo tem muita complexidade, sendo que ainda não está concluído. Aquilo que posso assegurar é que o professor Francisco Aguilar deixou de estar ao serviço da faculdade e em contacto com alunos.
Até porque terá tido um relacionamento amoroso com uma aluna.
Sim. E não sei até se não terá chegado a casar com a pessoa em questão. Seja como for, tiveram uma relação.
É comum os professores e professoras da FDUL envolverem-se com estudantes?
O que acontece, sobretudo, e nisso tem prevalecido o bom sendo, é o relacionamento com ex-alunos. Há docentes da faculdade que são casados com pessoas que foram suas alunas e, no geral, só me recordo de docentes do género masculino. E isto não é de estranhar porque as pessoas vão, muitas das vezes, trabalhar para escritórios de advogados onde estão os professores e conhecem-nos melhor. Todavia, não tenho conhecimento que tal aconteça entre professores e alunos, existindo essa relação de poder. Isto é diferente porque estamos a falar de adultos e noutro contexto, fora da faculdade e o docente não está a relacionar-se com o aluno e a avaliá-lo simultaneamente.
Licenciou-se e tirou o mestrado e o doutoramento na FDUL. Enquanto estudante, sofreu assédio por parte de professores ou soube de casos que ocorreram nessa época?
Felizmente, não. Isto não quer dizer que não tenha acontecido, mas se aconteceu não chegou até mim.
E nessa época também não existia este canal. No fundo, criaram um espaço que, além de servir para agregar denúncias e agir, é extremamente útil para quem precisa de desabafar. E pode fazê-lo sem problemas através do anonimato.
É por isso que queremos justamente criar, tal como anunciámos na terça-feira, um gabinete de apoio às vítimas de assédio e discriminação. Assim, haverá pessoas externas à faculdade, através da Ordem dos Advogados e dos Psicólogos, a darem apoio às vítimas. Não queremos que os alunos tenham medo.
Se fossem órgãos internos, talvez houvesse mais receio.
Pode sempre haver uma ideia de condicionamento na própria atuação porque há relações hierárquicas e de poder. Desta forma, essa questão não está em cima da mesa.
Tanto a Ordem dos Advogados como a dos Psicólogos aceitaram de imediato auxiliar a FDUL?
Sim, houve uma recetividade muitíssimo grande. Ainda vamos acertar os detalhes até ao final do mês. Os dois bastonários quiseram dar-nos a mão desde o primeiro minuto e estou-lhes muito grata por isso.
A escolha do coordenador foi feita pela Ordem dos Advogados?
Pois, já sei que anda a circular o nome do doutor Rogério Alves.
De acordo com um comunicado da Ordem dos Advogados divulgado esta quarta-feira, a instituição “decidiu responder positivamente a solicitação da Faculdade de Direito de Lisboa e designou para o efeito o antigo bastonário Rogério Alves, que aceitou desempenhar essa função”, tendo em conta o “quadro das suas atribuições estatutárias de defesa dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.
Ainda estamos numa fase preliminar, de acertar o funcionamento da estrutura. Realmente, houve essa indicação da parte da Ordem. Só estou a dizer isto porque não lhe chamaria coordenador: será um elemento fundamental e precioso. Mais do que isto… Será prematuro dizer algo. A conformação desta estrutura não está definida.
A FDUL abriu um canal e a Universidade do Minho, antes de tomar uma decisão similar, viu ser criado o Movimento de Denúncia de Casos de Violência na Universidade do Minho, sob o lema “Não nos calarão!”, pelos estudantes.
Prestamos atenção àquilo que as outras instituições fazem e podíamos ter tomado consciência para a criação do canal nessa época, mas tal não aconteceu nesse momento. Aconteceu agora porque o assunto não ficou na ordem do dia em dezembro: para nós, ficou desde janeiro.
As estudantes Ana Amaral (Sociologia, 19 anos) e Carlota da Silva (Filosofia, 20 anos), que criaram a conta de Instagram @denuncia.uminho, disseram ao i que receberam comentários como “Agora tudo é assédio” ou “Que tempestade num copo de água”. Isto espelha a falta de conhecimento da população portuguesa?
Sim. Creio que ainda temos de fazer alguma pedagogia enquanto sociedade. E, por exemplo, há instituições de Ensino Superior noutros países, como a Universidade Stanford, nos EUA, que disponibilizam um grande conjunto de informação acerca daquilo que são ou não são práticas de assédio. E, nessa medida, aquilo que faremos é, como se pode ler no relatório, elaborar um “Código de Conduta, com a participação de entidades externas com competência especializada em matéria de assédio”, instituir “formação pedagógica para docentes e elaboração de um Manual de Boas Práticas Pedagógicas, com a participação de especialistas em matéria pedagógica”, rever o “regulamento de queixas pedagógicas e dos inquéritos pedagógicos à luz do Manual de Práticas Pedagógicas e do Código de Conduta” e rever o “Regulamento de Avaliação de Docentes no que toca à dimensão pedagógica”.