O inverno demográfico do Estado

Alertas soam na Saúde e na Educação. Nos próximos quatro anos poderão reformar-se 16 mil professores e mais de 1700 médicos de família. Elevado número de aposentações sem capacidade de atrair novos quadros pode agravar a degradação dos serviços públicos e afetar a execução de fundos europeus, avisa Eugénio Rosa.  

A boa notícia é que vivemos mais, porque falar de inverno demográfico é sinónimo de desafios – em 1920, os homens portugueses viviam em média 35,82 anos e as mulheres 40,06. Cem anos depois, a esperança média de vida mais do que duplicou, chegando aos 78,1 anos nos homens e 81,1 anos nas mulheres, ganhos ocorridos sobretudo no último meio século.

Mas as pessoas reformam-se (cedo ou tarde depende também do grau de cansaço e das expectativas de toda uma vida), temos menos filhos, vai aumentar a dependência intergeracional e a flexibilidade para conciliar papéis e carreiras e pensar (e executar) soluções de médio longo prazo não tem sido o forte do país. 

Dos vários confrontos com o envelhecimento há um que ganha agora contornos de encontro imediato: o do próprio Estado. Na Saúde e Educação, os próximos anos , incluindo já este, são de previsíveis picos de aposentações, que segundo especialistas ouvidos pelo SOL exigem medidas diferentes para não afetar a cobertura do setor público nestas áreas, já a dar sinais de alarme: no final de março, foi atingido o número mais elevado de utentes sem médico de família desde 2014 (1 milhão e 235 mil portugueses) e, segundo a Fenprof, ainda há cerca de 25 a 30 mil alunos com falta de professores a pelo menos uma disciplina neste final do segundo período (2º semestre para algumas escolas). No próximo ano poderão ser mais de 100 mil.

O economista Eugénio Rosa defende que estes são os casos mais preocupantes, mas antecipa um agravar da degradação dos serviços públicos e que pode ficar em causa a execução de bandeiras deste novo ciclo político, como projetos do PRR e outros fundos comunitários… por falta de quadros e incapacidade do Estado de se rejuvenescer. «É preciso que se diga com toda a frontalidade, para mais tarde não se poder dizer que não se sabia, que a Administração Pública no estado em que se encontra será incapaz de garantir a aplicação com a eficácia e eficiência dos fundos comunitários do Portugal 2020, do PRR e do Portugal 2030», alerta.
    
Idade média do trabalhador público: 47,7 anos

Começando pelo retrato, vamos ao raio-X disponível: A última análise foi publicada pela Direção-Geral da Administração e do Emprego Público no ano passado, com o ponto de situação no final de 2020: a idade média estimada dos trabalhadores do Estado era de 47,7 anos, superior em quase quatro anos à idade média da população ativa do país. Em dezembro de 2020, por cada 100 trabalhadores do Estado com mais de 40 anos, havia apenas 28,8 com menos de 40 anos, 24,1 excluindo polícias e militares.

Na Saúde, são 27,2 pessoas com menos de 40 anos por cada 100 com mais de 40 e aqui há outra preocupação: a crescente feminização, o que implica pensar substituições para que as mães e pais possam gozar licenças e apoiar os filhos quando o desgaste da profissão afasta os mais velhos por exemplo das noites. Na Educação, um dos valores mais baixos: por cada 100 trabahadores com mais 40 anos há apenas 10 mais jovens. Ja se sabia de outros estudos: só 1% dos professores tem menos de 30 anos. Há 10 anos eram 16%.

«Os dados oficiais da DGAEP revelam um rápido envelhecimento dos trabalhadores de todas as Administrações Públicas», conclui Eugénio Rosa, chamando a atenção para a velocidade deste inverno demográfico: «Entre 2011 e 2020, a percentagem de trabalhadores com 44 anos ou menos diminuiu de 51,2% (372.800) do total de trabalhadores (727.785) para apenas 36,9% (265.393) do total dos trabalhadores (718.947). E os com 55 anos e mais aumentaram de 16,1% (117.011) para 30,7 (220.657). Trabalhadores com 65 ou mais eram apenas 5.111 em 2011, enquanto em 2020 o seu número já atingia 22.015, ou seja, 4,3 vezes mais do que em 2011». 

O economista acrescenta outro elemento à análise: além de mais velhos ser sinónimo de mais saídas, os funcionários públicos tendem a reformar-se mais cedo mesmo com penalizações. «Segundo o relatório e contas da CGA de 2020, a idade média do trabalhador à data da aposentação ou reforma, naquele ano, foi de 64,5 anos e não os 66 anos e 6 meses como dispunha a lei, sofrendo a maioria deles uma dupla penalização. Portanto, face a estes dados, é-se levado a concluir que o número de aposentações vai ser muito elevado nos próximos anos o que determinará um agravamento da degradação dos serviços públicos nomeadamente em áreas vitais para a população e para o desenvolvimento do país».

Saúde e Educação: as áreas mais críticas

Para o economista, não há dúvidas de que Saúde e Educação serão as áreas mais críticas: «Segundo a DGAEP, em 2020, 38,4% dos trabalhadores do setor da Educação tinham 55 ou mais anos, e no setor da Saúde a percentagem atingia 29,1%», diz, sublinhando as previsões de aposentações. 

Na Educação, prevê-se que saiam este ano das escolas 2826 professores e, em 2023, mais 3515. Na Saúde a situação não é menos dramática, continua, pois a previsão é que, em 2022, atinjam a idade de aposentação 1080 médicos de família; em 2023, 419 médicos e, em 2024, mais 297 médicos. «E isto enquanto já falta nos centros de saúde cerca de 800 médicos. A situação é dramática, e tende a agravar-se ainda mais se não forem tomadas medidas urgentes, o que é incompatível com a prioridade constante do programa do atual governo em reduzir drástica e rapidamente o défice orçamental para próximo de zero e dívida em 27,4 pontos percentuais em apenas 4 anos. E mais quando o país enfrenta uma crise económica e social causada pela pandemia, que ainda não terminou, e pela guerra na Ucrânia», alerta, avisando que a crise demográfica do Estado não fica  por aqui, o que o leva a admitir consequências a longo prazo nos setores que garantem o bem-estar como no desenvolvimento do país. 

«Há duas categorias profissionais que são críticas para a modernização e aumento da qualidade dos serviços públicos que são a dos técnicos superiores e a dos informáticos. A Administração Publica atual não é atrativa para estes profissionais com qualidade nem em termos de carreira profissional nem de remunerações. Hoje na Administração Pública é praticamente impossível contratar um engenheiro informático, assim como técnicos superiores com experiência e competência elevada», afirma, dando um exemplo concreto: o concurso lançado em 2019 pelo Ministério das Finanças para contratar mil técnicos superiores para todos os ministérios. 

«Inscreveram-se mais de 18.000 candidatos, levou-se mais de dois anos para terminar o concurso, e acabou-se por contratar apenas 600 técnicos superiores, muitos deles sem qualquer experiência e sem que a sua formação base (licenciatura) fosse adequada às funçõe. Só em 2020, aposentaram-se antecipadamente 4.782 trabalhadores mais 7.476 sem ser por antecipação. Estes números são o espelho da Administração Pública atual».

Propostas? Eugénio Rosa elenca quatro, a começar por alterar «radicalmente o sistema burocrático e anquilosado de contratação de trabalhadores, de que é exemplo o concurso das Finanças», aponta, substituindo-o por concursos mais flexíveis em que as entidades públicas tenham efetivamente poder para contratar. «O Governo aprovaria o orçamento com verbas destinadas à despesa de pessoal, seriam definidas regras claras para haver transparência e garantido tratamento igual de todos os candidatos  nos concursos, mas a decisão seria rápida e da competência das direções das entidades, o que não acontece agora. Para dar qualquer passo é preciso obter autorização do Ministério das Finanças e do Ministério da tutela que empata e leva meses e meses para decidir, que é uma forma de reduzir o défice orçamental embora esteja a destruir os serviços públicos», acusa, uma crítica que se ouve nos diferentes setores, desde logo dos gestores hospitalares.

Um modelo de gestão ‘enquistado’, resumiu esta semana em entrevista ao i o presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares, Alexandre Lourenço: «Um presidente de um conselho de administração tem um orçamento para gerir por ano. Tem um bloco operatório parado porque falta um assistente operacional e com isso tem uma série de pessoas paradas e doentes à espera de ser operados. E não o consegue resolver. Vai ter de fazer um pedido ARS, que vai para a ACSS, para a Saúde e depois para as Finanças. E nisto espera nove meses por uma autorização. Um modelo assim não está interessado em responder aos problemas da população», dizia, admitindo ainda assim que a falta de profissionais pode vir a trazer oportunidades por exemplo para rever modelos de trabalho e os papéis das profissões. Têm sido áreas com poucas mudanças, sendo a partilha de tarefas entre médicos e enfermeiros o tema de doutoramento da ministra da Saúde Marta Temido. 

Para Eugénio Rosa, é imperioso, no entanto, alterar o sistema de progressão nas carreiras: «hoje só cerca de 75% dos trabalhadores só ao fim de 10 anos é que conseguem subir  um nível remuneratório», diz o economista, propondo ainda atualizar a Tabela única Remuneratória, que desde 2009 teve apenas duas atualizações (de 0,3% em 2020 e de 0,9% em 2022), «o que determinou que o poder de compra dos trabalhadores da Administração Pública tenha diminuído, em média, desde 2011 em mais de 17%», diz. A que se soma agora a inflação. Por fim: «Alterar o sistema de avaliação dos trabalhadores que não permite compensar aqueles que revelem maior competência e empenho, que determina uma profunda desmotivação dos trabalhadores», propõe.

Só não vão faltar professores de Educação Física

Na Saúde e na Educação, onde os alertas vão soando com maior intensidade, o apelo é por medidas imediatas, sob pena de deixar milhares de utentes e alunos a descoberto. Um dos alertas partiu nas últimas semanas de Luísa Loura, diretora da Pordata e ex-diretora-geral de Estatísticas da Educação e Ciência (DGEEC). A partir do estudo feito no ano passado pela NOVA SBE a pedido da tutela, que calculou que até 2030 irão reformar-se 40% dos professores e será necessário recrutar 3400 por ano já tendo em conta a diminuição da natalidade, Luísa Loura fez as contas aos professores que estão a sair das universidades com habilitações para dar aulas e lançou os números no blogue da Fundação Francisco Manuel dos Santos: dado do défice face às necessidades de recrutamento, no próximo ano poderá haver já mais de 100 mil alunos com falta de professores a pelo menos uma disciplina e, em 2025, 250 mil, ou seja, «mais de metade dos alunos que hoje frequentam o ensino do 7º ao 12º ano».  

E se no ano passado a ideia do Governo de recrutar para professores diplomados de outras áreas gerou críticas dos sindicatos e não só (foi a solução no 25 de Abril e o Governo mantém o objetivo no novo programa), a ex-dirigente do Ministério da Educação afirmava que não resta alternativa a não ser seguir essa via, a par de medidas como o aumento do número de alunos por turma.

Ao Nascer do SOL, Luísa Loura reforça que nos próximos quatro anos deverão chegar à idade de reforma 16 mil e 100 professores, na maior vaga de reformas no setor depois da corrida a aposentações de 2013. O exercício que fez visou chamar a atenção para o défice de professores para preencher os números apresentados pelo estudo da Nova: «Confrontando esses números com os dos diplomados pelo ensino superior nos cursos de mestrado que atribuem a habilitação profissional para se ser educador de infância ou professor do ensino básico e secundário, a primeira constatação é de que não se antevê que haja, nos próximos anos, um défice nos grupos de recrutamento que vão do pré-escolar ao 2.º Ciclo. Já no que refere às áreas disciplinares específicas do 3.º ciclo e secundário há evidência de que, excetuando na Educação Física, irá haver défice em todas». 

Se todos os alunos terão Educação Física, até 2025/2026 Luísa Loura aponta para um défice anual de 212 professores de português ou 128 de matemática, na casa dos 60% dos que seriam necessários. Entre 2026/27 e 2030/31, a situação agrava-se, alerta (ver caixa). Como se chegou aqui? Luísa Loura sublinha a importância do estudo da Nova SBE, que interligou pela primeira vez o movimento de professores e de alunos.

E depois outro fator que criou má ilusão no setor: o excedente na formação de educadores de infância e professores do 1.º e 2º ciclo. «Levou a uma leitura, em termos globais, de que a falta de professores seria menos problemática do que, de facto, é», diz. E foi isso que procurou quantificar: faltarem 212 professores de português por ano para o 3º ciclo e secundário, implicará que mil turmas de escolas publicas não tenham professor a esta disciplina, ou seja 25 mil alunos, avança. A matemática, serão 13 mil alunos. Numa altura que os sindicatos defendem que a solução é tornar as carreiras atrativas e menos precárias, permitindo que professores regressem ao ensino, Luísa Loura admite que não o considerou por a carreira não estar de facto atrativa. Mais: «Os incentivos para regressarem podem não ser viáveis sem que haja uma revisão também para todos os que permaneceram», alerta. 

Para a especialista, o passo urgente é a da revisão da lista de cursos que dão habilitação própria para a docência no 3.º ciclo e secundário. «A lista em vigor considera apenas licenciaturas e bacharelatos pré-Bolonha, que terminaram em 2006 e cujo universo de potenciais candidatos terá atualmente mais de 40 anos» e uma alteração da lei que determina que a habilitação para a docência é exclusivamente profissional, o que hoje acaba por ser feito pelas escolas em último recurso e não está regulamentado. «Considero que há um risco real de se vir a ter nas escolas um grande número de professores sem a preparação científica e pedagógica adequada e aí as implicações na qualidade do ensino serão graves e globais».

‘Está a olhar-se para o Titanic’

Na Saúde, o problema já foi o défice de formação, mas apontam-se os défices de recrutamento e dificuldades de contratação, com a crescente concorrência do privad e, do outro lado, a baixa atratividade da carreira no SNS. 

«Se não for feito nada de diferente, não se podem esperar resultados diferentes», disse esta semana ao i Nuno Jacinto, presidente da Associação Nacional de Medicina Geral e Familiar, considerando que a forma como os médicos de família foram «maltratados» durante a pandemia e a desestruturação da resposta dos cuidados primários levou mais velhos a querer sair e mais novos a não querer ficar. Em março, foi atingido o número mais elevado de utentes sem médico de família desde 2014: um milhão e 235 mil.

Por ano formam-se 500 médicos de família, no último concurso 30% das vagas ficaram desertas e alguns acabam por sair ao fim de uns anos. «Hoje já temos um défice de 800 médicos. Significa que os próximos dois anos de formação serviriam apenas para colmatar as necessidades atuais, fora todos os médicos que vão sair entretanto. Nestes três anos teremos 1700 médicos de família em condições de se reformar por idade, o que se se confirmar sem alterações na retenção de profissionais será uma catástrofe para a Saúde», sublinha o médico. 

Revisão das grelhas salariais, flexibilidade de horários, oportunidades de formação, incentivos ao desempenho são os pedidos dos sindicatos, que vão agora reunir-se com a ministra da Saúde . «Temos agora mais 400 médicos acabar a especialidade de Medicina Geral e Familiar e dois sei que irão para a Irlanda», critica Jorge Roque da Cunha, secretário-geral do Sindicato Independente dos Médicos: «Perante isto, está-se a olhar para o Titanic. Como são as pessoas mais desfavorecidas as mais afetadas e essas não chegam aos decisores políticos, é um não problema. A situação é calamitosa e nos hospitais para lá caminha».

Também entre os médicos de especialidades hospitalares se projeta um pico de aposentações nos próximos anos, atingindo um pico de 560 possíveis saídas em função da idade em 2025. Do lado do Governo, uma das questões pendentes é a regulamentação da dedicação plena, com objetivos e aumento salarial. «A exclusividade ou o nome que vier a ter, isolada, não resolve tudo. Se um médico for para uma unidade que devia ter quatro médicos e tem dois, que tem falta de meios técnicos, que não tem acessos, que não funciona, não fica lá muito tempo», alerta Nuno Jacinto.