Arthur Brand estudou Espanhol e História. Mas a sua verdadeira escola foi o tempo que conviveu com um antigo contrabandista de arte, Michel van Rijn, que o orientou nos meandros do submundo do crime. Graças às lições do mestre, Brand tornou-se detetive de arte, dedicando-se a recuperar obras que muitos pensavam para sempre perdidas. Entre as suas descobertas mais sensacionais encontram-se Retrato de Mulher (Dora Maar), de Picasso, uma pintura de Salvador Dalí e um anel que pertenceu a Oscar Wilde. Estima-se que o valor total das obras que recuperou ascenda a 220 milhões de euros.
Porém, a sua atividade não é tão lucrativa como poderia pensar-se. Por uma das suas mais importantes descobertas o detetive da arte não recebeu um tostão. «Não posso mandar a fatura para alguém que não me contratou», explica ao Nascer do SOL. Tudo começou em Itália, em 2014, com uma visita ao seu antigo mentor, que lhe mostrou uma fotografia de duas grandes esculturas de cavalos em bronze. De início, julgaram tratar-se de cópias, pois esses cavalos, criados em 1938 por Josef Thorak, um dos escultores favoritos de Hitler, encontravam-se junto à entrada da chancelaria do Reich e era mais ou menos consensual que tinham sido destruídos durante o bombardeamento de Berlim, em 1945.
A investigação de Brand, porém, revelou-lhe indícios de que talvez houvesse esperança. Pelo meio, encontrou-se com antigos nazis, incluindo a filha do infame Heinrich Himmler, e foi a locais tão diversos quanto o castelo de Nörvenich, perto de Colónia, e um ferro velho a norte de Berlim.
Mas acabou por compensar, como relata no livro Os Cavalos de Hitler, recentemente publicado pela Porto Editora. Brand não apenas recuperou os monumentais cavalos de Hitler como várias outras esculturas que constituem testemunhos privilegiados daquele período sombrio. O_Nascer do SOL_conversou com o autor por Zoom.
A fotografia do quadro de Picasso foi tirada onde? No seu escritório, em sua casa?
Na minha sala de estar.
A sério? Teve um Picasso na sala?
Sim, andei à procura dele durante cinco anos. E este trabalho de recuperar obras de arte roubadas não é assim tão bem pago. Por isso pensei: ‘Este Picasso vale 70 milhões, se não me pagam muito, pelo menos vou ficar com ele uma noite’. E é um quadro muito especial, porque Picasso ficou com ele até morrer. Nunca o quis vender, gostava demasiado dele. Pendurei-o na parede por uma noite – fiquei a olhar para ele e a fumar um cigarro.
E se os ladrões descobrissem que tinha um Picasso na parede de sua casa?
É engraçado, porque um dos meus melhores amigos é um ladrão de arte reformado. E eu liguei-lhe. ‘Vais sair esta noite?’, perguntou-me. E eu: ‘Não. E se vieres tenho um pau de madeira para te dar uma sova’ [risos]. Não, ninguém vai assaltar a minha casa, especialmente se eu estiver por cá. É mais fácil roubar um museu do que a minha casa, porque eles sabem que se eu for atrás deles vão ter um problema.
Então foi a sua recompensa, o seu pequeno luxo, ter um Picasso na parede por uma noite.
Não apenas o Picasso. Durante duas semanas usei um anel que pertenceu a Oscar Wilde. Sempre que encontro alguma coisa importante, fico com ela uns tempos. Há peças que estão anos e anos, décadas, desaparecidas. Descobri um mosaico romano de Chipre que esteve desaparecido durante cinquenta anos. Toda a gente pensava que tinha sido destruído, quando o encontrei sabia que ninguém me ia pagar. Por isso pensei: ‘Vou ficar com ele duas semanas. É a minha recompensa’.
Não recebe uma comissão?
Cinquenta por cento do meu trabalho é aconselhar colecionadores. Quando compram uma obra de arte aconselho-os acerca do preço, se a obra é autêntica, se não foi roubada. Isso é cinquenta por cento do que faço, e sobre isso não se lê nos jornais. Os outros cinquenta por cento é perseguir estas peças há muito perdidas. Às vezes pagam-me à hora, mas em muitos casos não recebo nada. Pelos cavalos não recebi nada.
Porquê? Porque pertenciam ao Estado Alemão?
Não. O que se passa é que não posso mandar a fatura para alguém que não me contratou. Isso é sempre um problema. Mas escrevo livros sobre isto. E a MGM, de Hollywood, vai fazer um filme a partir deste livro, por isso não me queixo. Só me queixo do tempo – hoje por acaso até está bom, mas às vezes está uma porcaria. [risos]
E tem a certeza de que esse seu amigo que era ladrão de arte está mesmo reformado?
Ele é muito famoso porque roubou dois Van Goghs há vinte anos. Quando lhe perguntei sobre isso deu-me uma resposta muito simples: ‘Se eu não estivesse reformado não podia sentar-me contigo numa esplanada a beber uma cerveja. Os meus amigos iam pensar que eu estava a denunciá-los’. Achei que era uma boa explicação. Da primeira vez que veio a minha casa, olhou para a minha porta: ‘A tua porta é demasiado fácil de arrombar’. E eu disse-lhe: ‘Também não há aqui muita coisa para roubar’. ‘Sim, mas eles não sabem isso’. Então veio e ajudou-me a proteger a porta e as janelas. Ele é o melhor, por isso agora ninguém consegue entrar. Espero eu…
Então ele deve saber muitas coisas, porque ainda conhece pessoas nesse meio.
É verdade. Eu também conheço algumas. Mas só recorro a ele quando tenho uma pista, quando me contam alguma coisa, por exemplo, e preciso de falar com um criminoso. Na maioria dos casos não se consegue encontrar um criminoso, porque está escondido algures, e mesmo que o encontre ele não vai querer falar comigo. É nessas alturas que esse meu amigo pode servir de intermediário. Pode ir ter com o criminoso e dizer-lhe: ‘O Arthur precisa de falar contigo, por favor recebe-o’. Faz a ponte entre mim e essas pessoas.
Uma das áreas a que se tem dedicado é a encontrar arte roubada pelos nazis. Ainda há muitas obras que desapareceram nesse período à espera de serem restituídas aos seus legítimos donos?
Sim. Os nazis foram responsáveis pelo maior roubo de arte da história. Roubaram milhões de obras. A maior parte foi devolvida, mas ainda há muitas obras desaparecidas e outras que foram destruídas em bombardeamentos e incêndios. Tenho ajudado sobretudo famílias judias a recuperar a sua arte. No caso dos cavalos, andei à procura de arte foi o contrário, porque era arte que pertencia aos nazis e foi roubada.
Também houve muitos bens nazis a desaparecer nesses últimos dias dramáticos do Terceiro Reich e durante a ocupação da Alemanha pelo exército vermelho?
Sim. Os nazis roubaram muita arte quando invadiram a União Soviética. Por isso, quando invadiram a Alemanha, os russos roubaram os nazis. O problema é que por vezes roubaram arte que os nazis, por sua vez, tinham roubado a judeus. E na maioria dos casos a Rússia recusa-se a devolver essas obras, o que é muito triste. Porque se foi roubado aos nazis, tudo bem, mas se não se pode roubar as vítimas dos nazis. E ainda há muitas obras de arte que foram roubadas pelos nazis a judeus durante a II Guerra Mundial que hoje estão na Rússia – algumas abertamente, outras em segredo.
Algumas estão em museus e outras nas mãos de colecionadores privados?
Exatamente. As dos museus estão à vista, conhecemo-las. Mas além dessas pensamos que há pinturas importantíssimas que estão dadas como desaparecidas e podem estar escondidas algures na Rússia. A cada dez anos, por aí, uma dessas pinturas aparece e toda a gente fica de boca aberta. ‘Oh, afinal ainda existe?!’.
Como começam as suas investigações? Com alguém a dar-lhe uma pista, a mostrar-lhe uma fotografia, a indicar-lhe um nome, uma morada?
No caso dos cavalos de Hitler começou com uma fotografia, mas na maioria dos casos é assim: uma obra de arte foi roubada há 20 ou 30 anos e toda a gente pensa que foi destruída. E depois oiço um rumor algures, no submundo do crime – pode ser em Portugal, pode ser na Sicília, pode ser em Londres, porque tenho ligações em todo o lado –, e penso que pode dizer respeito à peça de que ando à procura. E começo a perguntar por aí, visito algumas pessoas… Em muitos casos são precisos anos para tornar as coisas tão difíceis [a quem tem as obras ilegalmente] que eles acabam por falar. Mas eu continuo a fazer perguntas, a tocar-lhes à campainha. E às vezes acabam por colaborar. A cada duas semanas recebo um email de alguém que diz: ‘Arthur, sou um criminoso, não quero dizer o meu nome, mas há uma coisa que preciso de confessar. Há dez anos fiz o transporte de uma grande quantidade de droga e pagaram-me metade em dinheiro e metade com uma pintura. E não quero destruí-la mas não a posso devolver à polícia porque vão interrogar-me. Talvez você me possa ajudar’. Algumas pessoas gostam do trabalho que eu faço. Não estou a tentar apanhar ninguém por homicídio ou por tráfico de droga, só quero a pintura de volta. E há pessoas no submundo do crime que dão valor a isso.
E por que não ficam essas pessoas com as obras para si?
Se você tiver juntado muito dinheiro e amanhã comprar um Picasso, vai querer mostrá-lo aos seus amigos. Quer que os seus filhos o herdem. Compra o quadro porque gosta de arte, mas também como investimento. Quando tem uma pintura roubada, ela vale zero, não a pode mostrar a ninguém, se morrer, os seus filhos ficam com um problema, e pode ser preso. Diria que em 70 ou 80% dos casos, os ladrões que roubam a peça passam-na para outros criminosos, usam-na como pagamento em transações de droga ou noutros negócios ilícitos, e ao fim de dez anos vai parar às mãos de alguém que pergunta: ‘ O que é que faço com isto?’. Muitas vezes estas obras acabam por ser destruídas, porque a nível global apenas 8% da arte roubada é recuperada. Se eu sei quem é, tento falar com as pessoas, dizer-lhes: ‘Isso foi há dez anos, você não corre risco porque já prescreveu, você não a roubou, por favor devolva’. E muitas vezes resulta.
E o caso dos cavalos de Hitler? Foi preciso mais do que isso.
Aí foi diferente. Tive de andar mais ou menos sob disfarce, porque estava a lidar com pessoas que queriam vendê-los. Foi perigoso, porque as esculturas tinham estado nas mãos do KGB, os serviços secretos da União Soviética, antigos nazis estavam envolvidos, neonazis estavam envolvidos, e penetrar neste mundo fechado não é fácil. E tudo começou com esta fotografia que me foi mostrada pelo meu velho mestre, Michel van Rijn, que é um tipo louco.
Ele não se importa que o Arthur o descreva assim no livro?
Como sabia que ele ia ler o livro, retratei-o como uma pessoa divertida. Ele é muito engraçado, um bom tipo, mas também pode ser muito perigoso. Nos anos 70 e 80 ele era o maior criminoso da arte do mundo.
E não foi preso?
Sim, foi preso. E, algures nos anos 90, mudou de lado, regenerou-se. Deixou de fazer coisas más e tentou compensar algum do mal que tinha feito.
Acabou por se tornar informador?
Não exatamente informador. Fez um site que toda a gente do mundo da arte acompanhava, onde ele publicava tudo. Dizia: ‘Esta pintura desapareceu naquele sítio. Senhores do FBI, podem encontrá-la acolá’. E punha um mapa para o local. Todos os dias dez mil pessoas visitavam o website. Nos anos 70 e 80 toda a gente sabia o que ele fazia e olhavam para o outro lado, ninguém queria saber. E nos anos 90 as coisas mudaram, e ele pensou: ‘Talvez eu não deva continuar a fazer isto. Está a ficar perigoso’. Foi aí que se tornou o meu mestre, ensinou-me tudo. Foi a melhor escola que eu podia desejar. Ele conhecia toda a gente. Conhecia pessoas na máfia, pessoas na Scotland Yard, pessoas no FBI. Michel van Rijn é James Bond, Indiana Jones e Robert Langdon, do Código da Vinci, todos ao mesmo tempo. É o homem mais inteligente que já conheci.
Como se conheceram?
Eu vivi em Espanha durante um ano, na Andaluzia.
Em Sevilha?
Não, em Granada. À noite íamos beber cervejas para uma varanda, e todas as madrugadas, às quatro em ponto, víamos um grupo de espanhóis a entrarem para um carro com pás e lanternas. Um dia perguntei-lhes onde iam. ‘Temos um detetor de metais e vamos procurar moedas antigas’. ‘Posso ir convosco?’. Encontrámos algumas moedas de prata romanas – na altura não sabia que isso era ilegal – e quando voltei para a Holanda comecei a colecionar – legalmente – moedas romanas e gregas. Comprava-as em leilões, muito baratas, até porque na altura ainda estava a estudar. Um dia descobri que 30% das moedas que circulavam no mercado eram falsas e ninguém queria saber. Só havia um homem em todo o mundo, que por acaso era holandês, e vivia em Londres, que se preocupava. Mandei-lhe um email e ele respondeu: ‘Aparece’. E foi dessa vez que me disse: ‘Devias voltar, idiota. Eu gosto de ter idiotas por perto’. [risos]
É apenas uma coincidência que ele tenha o mesmo apelido que Rembrandt [Van Rijn]?
Ele costumava dizer que era descendente de Rembrandt e de Rubens, o que não é verdade. Um dia, nos anos 80, o Michel viu uma pintura de Rembrandt à venda, o marchand pedia três milhões de dólares. E o Michel disse: ‘Eu tenho um comprador. Se me deixar ficar com o quadro uma semana eu convenço o meu comprador’. Ele ficou com o Rembrandt e foi a um castelo que também estava à venda, e disse: ‘Quero comprar este castelo mas primeiro preciso de ficar aqui a viver uma semana para ter a certeza’. Deram-lhe o castelo por uma semana. Um dos amigos dele fez de mordomo, e ele convidou pessoas de um museu japonês. Mostrou-lhes o passaporte – ‘Van Rijn’ – e disse-lhes que era um descendente de Rembrandt. ‘Vejam o Rembrandt, vejam o meu castelo’ e vendeu o Rembrandt não por três, mas por dez milhões. [risos] O Michel é assim! Foi a primeira pintura de Rembrandt comprada pelo Japão.
E ainda está lá?
Sim, está num museu japonês. Agora, esta é uma história engraçada, mas ele também tem histórias menos agradáveis.
E foi ele que lhe mostrou a fotografia dos cavalos de Hitler, que todos julgavam terem sido destruídos no assalto das tropas russas a Berlim.
Quando viu a fotografia dos cavalos, o Michel pensou que não eram verdadeiros. Mas podia estar enganado e chamou-me. Como ele é judeu, não se queria envolver. ‘Arthur, eu não posso fazer isto, porque não quero lidar com nazis. Mas tu podes’. E foi assim que começou esta aventura.
Os cavalos são obras monumentais, com três metros de altura. Mas podem ser considerados grandes obras de arte, em termos da sua qualidade?
Para os nazis, a arte não era apenas arte. Não havia televisão, por isso a arte funcionava como propaganda. Este cavalos eram as estátuas favoritas de Hitler, estavam mesmo debaixo da varanda do seu gabinete. E viram tudo. A cinquenta metros, à esquerda, foi declarada a guerra; a cinquenta metros, à direita, Hitler suicidou-se. Historicamente são muito importantes. Não sobrou muito do Terceiro Reich, da Alemanha nazi, por isso daqui a mil ou dois mil anos ainda estaremos a olhar para estes cavalos num museu como testemunhos dessa época. Isso no que diz respeito à importância histórica. Em termos artísticos, umas pessoas acham que são fantásticos e outras acham que são… nazis.
Quinquilharia?
Às vezes dou conferências. Tenho 200 pessoas sentadas à minha frente e mostro-lhes uma pintura. E pergunto: ‘Quem gosta desta pintura?’. E as 200 pessoas põem o braço no ar. ‘É uma bonita pintura, está bem feita, com uma casa…’. E depois eu digo-lhes: ‘Foi pintada por Adolf Hitler’ e todos baixam os braços. [risos] É muito engraçado que quando as pessoas ouvem o nome Hitler dizem automaticamente ‘é feio’. Qual é o problema? É uma pintura de uma casa, podem gostar, não têm de ter vergonha. O facto de gostarmos dos cavalos não faz de nós automaticamente nazis. Tenho a certeza de que há judeus que acham os cavalos bonitos e neonazis que os acham feios.
Parece existir uma grande procura por artefactos de arte nazi. O facto de terem sido feitos numa época tão sombria acrescenta-lhes um encanto especial?
Acho que há um par de razões para isso. A primeira é que a maioria dos museus não mostram estas peças. É estranho, porque a Segunda Guerra Mundial é uma das épocas mais importantes da História da humanidade. Não podemos ir a um museu e ver essas peças, porque a maioria está escondida ou foi destruída.
Seria considerado ofensivo exibi-las?
Sim, mas a História é a História. Devemos mostrá-la. Muitas pessoas que colecionam recordações nazis fazem-no, em primeiro lugar, porque esses objetos não estão à vista nos museus, e isso desperta a curiosidade. E depois temos três grupos: os neonazis, claro, que adoram tudo o que diz respeito àquele período; pessoas que gostam de colecionar pedaços da História – conheço uma família em que um irmão coleciona recordações de Napoleão e o outro coleciona artefactos relacionados com Hitler, e não é nazi; e por fim temos colecionadores judeus.
Judeus?
É estranho, mas conheço alguns colecionadores judeus. Dizem-me: ‘Toda a minha família foi assassinada, toda a vida falámos sobre nazis, por isso eu quero tocar, quer ver esses objetos saídos da ideologia que tem ocupado toda a minha vida’. Algumas destas peças nazis estão nas mãos de colecionadores judeus. E começa a haver museus a querer comprar estes objetos. Foi bom recuperarmos os cavalos de Hitler porque suscitou a discussão na Alemanha: ‘Devemos mostrá-los ou não?’. E o ministro da Cultura disse: ‘É altura de mostrar o nosso passado sombrio’. No final deste ano os cavalos vão finalmente ser expostos num museu em Berlim. Não se pode simplesmente fingir que aquela época não existiu. E sejamos honestos: 90% da história é má – assassínios, guerras, doenças, pobreza.
Para lá dos colecionadores que referiu, parece haver também muitos nostálgicos do nazismo. Como se explica que um período tão negro ainda tenha tantos apaniguados?
Quando a Segunda Guerra Mundial terminou, todos disseram – holandeses, portugueses, ingleses, russos, alemães, americanos – ‘nunca mais vamos ter guerra’. E olhe para a Ucrânia. Olhe para o que está a acontecer no Afeganistão, na Síria. Há muitas pessoas que gostam de sangue. Isso faz parte de todos nós. Felizmente, pessoas como você e eu resolvemos isso dando uns tiros num jogo de vídeo. Mas outros têm essa parte maior, e saem à rua com uma arma para matar pessoas. Muitas pessoas acham que os anos do nazismo foram bons tempos. Há neonazis que acham que precisamos de alguém como Hitler, assim como há russos que acham que Putin é um bom líder. Não o veem como ditador.
Por falar em neonazis, durante a sua investigação teve de lidar com alguns. Qual foi o momento em que se sentiu mais ameaçado durante a investigação dos cavalos de Hitler?
Foi ficando cada vez pior. Primeiro, descobri que a Stasi, a antiga polícia secreta da Alemanha de Leste, esteve envolvida no desaparecimento das esculturas. O KGB esteve envolvido. Antigos nazis estavam envolvidos. No fim, estava constantemente a olhar à minha volta, porque era de facto perigoso. Alguém podia não querer que eu encontrasse estes cavalos. Estamos a falar de peças que valem milhões. Mas não me assusto facilmente, e trabalhei com René Allonge, o comissário-chefe da polícia alemã. Imagine: um alto oficial da polícia alemã, um jornalista alemão muito conceituado e um civil dos Países Baixos. Os três a trabalhar juntos. Mas houve vezes em que tivemos algum receio.
Até porque nem sempre sabiam com quem estavam a lidar, não é?
Exatamente. Há pessoas que dizem ser uma coisa e são outra. Tivemos muitos encontros desses. Mas o encontro mais interessante que tive foi sem dúvida com a filha de Himmler, Gudrun Burwitz. Ela é líder da Stille Hilfe, uma organização secreta que ajuda antigos nazis. Foram apenas dois minutos, mas estar ali tão perto desta mulher maldosa – não por ser filha de Himmler, não tem culpa disso, mas porque ainda admira o pai – foi tão perturbador que fiquei dois dias sem dormir.
Enquanto lia o seu livro, por vezes tive a sensação de estar a ler um policial. Um detetive de arte pode aprender aí técnicas úteis?
Sim e não. A verdade é sempre mais estranha do que a ficção. Se vir as minhas histórias, tenho de lidar com serviços secretos, com pessoas da máfia, etc. O que se pode aprender com esses detetives é que não há regras quando se investiga. A única regra é nunca desistir. E prestar atenção aos pormenores. Ouvimos uma coisa aqui, outra coisa ali, e às vezes as peças encaixam. É só ter bom senso e nunca desistir. Se à meia-noite de sábado eu receber uma chamada a dizer ‘Sr. Brand, não posso dizer-lhe quem sou, mas gostava de me encontrar consigo daqui a 20 minutos na rua’ eu vou. Muitas pessoas diriam: ‘É sábado à noite e não sei quem você é’. Eu vou.
Mas imagino que num caso desses tome algumas precauções.
Vou sempre. É claro que se tivermos inimigos pode ser perigoso. Mas eu ando à procura de arte, não de drogas, de armas ou de assassinos. Pode acontecer eu tocar a uma campainha, perguntar ‘Tem um Picasso?’ e ouvir ‘Não, mas tenho uma bala. Vá-se embora’. E assim fico a saber que têm mesmo. Às vezes peço a outro criminoso para ver se essa pessoa fala comigo. E às vezes, ao fim de três dias, recebo uma chamada. ‘O que é que quer de mim?’. E digo: ‘Eu sei que tem esta obra de arte, não pode vendê-la, mas também sei que não a roubou. Se a polícia a encontrar você vai para a prisão. Sei que você a tem, e que isso é um problema para si. Talvez possamos chegar a um acordo para a devolver’.
De qualquer modo está a tirar-lhe uma coisa que ele tem.
Sim, tem, não porque queira, mas porque lhe foi parar às mãos num pagamento de um negócio de drogas, por exemplo. Não vale nada, não o pode vender, só pode trazer-lhe chatices.
Não se pode vender a preço de saldo?
Não, ninguém lhe toca.
Nem a um criminoso, a um chefe da máfia ou assim?
Isso pode acontecer. Nos últimos 20, 30 anos, mafiosos importantes e chefes do crime organizado o que fazem é comprar uma obra de arte roubada, guardam-na num sítio onde ninguém sabe, e quando são apanhados por tráfico de droga ou outro crime qualquer, dizem: ‘Vocês querem-me condenar a 20 anos? Tirem cinco anos à pena e eu devolvo-vos dois Van Goghs’. Isto aconteceu ainda há dois anos aqui na Holanda, um criminoso que tinha comprado um Van Gogh e um Frans Hals roubados e negociou com a justiça. Mas isso agora acabou, já não há acordos com criminosos.
O mercado da arte tanto atrai milionários e filantropos como personagens duvidosas. Isso acontece por haver tanto dinheiro em jogo?
Quando há muito dinheiro, as pessoas vêm de todo o lado. Tens de ver a coisa assim: se assaltares um banco, podes ganhar milhares de euros, porque eles não têm assim tanto dinheiro vivo na agência. Mas se falsificares uma pintura de Picasso, fizeres um trabalho bem feito, e tiveres um perito a confirmar a autenticidade do quadro, com um documento forjado e tudo, podes ganhar vinte milhões. Basta falsificares um Picasso e nunca mais tens de trabalhar. Isso atrai algumas pessoas. Também não é difícil roubar uma pintura de um museu. Isso também atrai criminosos. Roubar uma pintura é fácil. Conseguir vendê-la é que é muito, muito difícil. Mas onde há dinheiro há criminosos. Se de hoje para amanhã as drogas se tornassem legais, todo o mundo do crime desabaria, porque a droga já não valeria nada. Se amanhã a arte deixasse de valer dinheiro os criminosos iam-se todos embora à procura de outra coisa. E os criminosos nem sempre são as pessoas que têm mau aspeto. Às vezes o criminoso é um negociante de arte muito respeitado. Às tantas não sei quem é pior, se o negociante de arte se o criminoso. Porque alguns criminosos têm ética, e alguns negociantes de arte não. Não é a preto e branco.
Já alguma vez apanhou uma falsificação num museu de arte, num leilão, numa feira?
Várias vezes. Há tantas falsificações por aí. Mas às vezes é muito difícil provar.
Ninguém está interessado em que se saiba.
Esse é o problema. E nem sempre é um puro falso. Pode ser uma pintura do século XVII que um perito disse que é um Rembrandt. Mas não é um Rembrandt. Só dizem que é para aumentar o preço. O mundo da arte é 10% sobre beleza, e 90% sobre dinheiro. Não para pessoas como eu ou você. Nós adoramos arte. Mas para estes profissionais trata-se apenas de dinheiro.
Tenho uma última pergunta. Recentemente abriu em Lisboa o Museu das Joias da Coroa. Mas há uma peça que falta, o castão da bengala do Rei D. José, um diamante de 135 quilates que foi roubado de um museu em Haia. O que acha que pode ter-lhe acontecido?
Vou contar-lhe um segredo. Provavelmente desmantelaram tudo. Tiraram as pedras preciosas e derreteram o ouro. Mas um criminoso que eu conheço contou-me que, quando estava na prisão, outro criminoso disse-lhe que tinha sido ele o autor do roubo. O problema é que esse meu amigo não se lembra do nome do outro. Temos uma pista. Um criminoso que eu conheço ouviu na prisão um recluso confessar: ‘Fui eu que roubei as joias da coroa portuguesa’. Mas foi há tanto tempo que ele não se consegue lembrar do nome. Cada vez que o encontro digo-lhe: ‘Lembra-te, por favor’. E ele diz: ‘Eu tento’. Mas infelizmente o mais provável é a peça ter sido desmantelada.
Acha que o diamante foi cortado noutros mais pequenos?
Provavelmente, porque nunca ouvimos falar de um diamante dessas dimensões. Quando as obras, ao fim de 20, 30 anos, não aparecem é porque foram destruídas ou, no caso de um diamante desses, cortado noutros mais pequenos. Se ainda existirem, eu encontro-as. Mas quanto mais tempo passa, mais provável se torna já não existirem.