O que pode mudar com o Estatuto do SNS?

Esta Lei de Bases, a meu ver, constitui um retrocesso em relação à anterior Lei, fundamentalmente por não continuar e aprofundar a coexistência e cooperação do SNS com os setores privado e social e instituindo uma visão estatizante e de monopólio público.

por Luís Filipe Pereira
Gestor e ex-ministro da Saúde

O Estatuto do SNS que acabou de ser promulgado pelo Presidente da República (com dúvidas importantes) pretende dar resposta aos problemas graves e estruturais do nosso serviço de saúde.

Este Estatuto tem o seu enquadramento na Lei de Bases da Saúde, aprovada há cerca de 3 anos, no período da ‘geringonça’ do 1.º Governo do PS, supondo a concretização dos princípios fundamentais nela instituídos.

Esta Lei de Bases, a meu ver, constitui um retrocesso em relação à anterior Lei, fundamentalmente por não continuar e aprofundar a coexistência e cooperação do SNS com os setores privado e social e instituindo uma visão estatizante e de monopólio público.

Esta visão estatizante levou à quase extinção das PPP – Parcerias Público Privadas que entidades credíveis, oficiais, como o Tribunal de Contas e a Entidade Reguladora da Saúde, asseguram terem vantagem, face à gestão pública.

A concentração exclusiva no Estado da realização direta de todas as prestações públicas de saúde, que podem ser também realizadas, com vantagem, por contratualização com as iniciativas social e privada (como nas PPP’s), é um retrocesso que tem efeitos nocivos na prestação de cuidados de saúde à população, nomeadamente nas camadas mais desfavorecidas.

 

Esta visão estatizante revela ainda uma contradição das forças políticas que a defendem (o Governo do PS e os então seus aliados, os partidos de extrema esquerda) quando estão de acordo com a existência da ADSE cujos beneficiários, ou seja os funcionários públicos e suas famílias, utilizam generalizadamente (e a meu ver bem) o setor privado dos cuidados de saúde. Isto é, defende-se (ou aceita-se implicitamente) esta posição para cerca de 1,3 milhões de pessoas e recusa-se para os restantes, cerca de 9 milhões de portugueses.

Neste contexto, o Estatuto, centrando o seu âmbito e ação na gestão pública do SNS, pretende introduzir medidas de melhoria de funcionamento, através de maior autonomia dos ACES (Agrupamentos de Centros de Saúde) e dos Hospitais e uma maior motivação dos profissionais de saúde.

O destaque nas medidas contempladas no Estatuto vai, no entanto, para a criação de uma Direção Executiva, órgão novo a criar na organização do SNS.

Não se conhecem, porque falta ainda a regulamentação do Estatuto, quais as exatas competência desta Direção Executiva que tomará sob a sua gestão as responsabilidades que hoje estão atribuídas a diversos órgãos da Administração Central da Saúde e aos diversos gestores das Unidades Saúde.

O Presidente da República nas notas (dúvidas) que acompanharam a promulgação do Estatuto considera que o Governo escolheu uma solução de compromisso entre o que existe hoje e a criação de uma entidade pública com efetiva autonomia de gestão «que executasse as linhas políticas alternativas, mas não se somasse às estruturas existentes do Ministério da Saúde».

Já há muito que defendo que, em termos de gestão global, a definição e negociação de objetivos a atingir por cada unidade prestadora (ACES, USF’s-Unidades de Saúde Familiares e Hospitais), o controlo dos resultados obtidos para a população (no acesso, na qualidade e nos custos) e o financiamento destas unidades (que deverão depender dos resultados), impõe que o SNS deverá ser gerido operacional e tecnicamente por um novo organismo/instituto público com a nomeação de um CEO (presidente executivo) que responderá perante o máximo decisor político-ministro(a) da Saúde – mas que terá garantias de independência técnica e operacional espelhadas na legislação.

E isto porque é crítico assegurar, de forma permanente e alheia a ciclos políticos, uma gestão operacional, técnica, competente e focalizada, responsável pela gestão global do SNS. Esta responsabilidade pertence, hoje, ao máximo decisor político que, por vezes, nem sequer tem sensibilidade e capacidade quanto aos aspetos de gestão de organizações.

A criação deste instituto público que proponho e a nomeação de um CEO, com autonomia real e efetiva, seria um passo importante e fundamental para uma reforma estrutural do SNS (e não a criação de uma Direcção Executiva). Ainda, assim, no entanto, seria fundamental alargar esta reforma estrutural pois continuaria a verificar-se neste instituto uma gestão do tipo ‘comando e controle’ sem impulsos e estímulos ‘vindos do exterior’ que induzam permanentemente uma maior eficiência e melhores resultados para a população.

A evolução do SNS para Sistema de Saúde que tenho vindo a defender, com a inclusão das iniciativas privada e social (o que está rejeitado, na prática, na atual Lei de Bases) permite a criação desses estímulos ‘vindos do exterior’ através da contratualização, com essas iniciativas, de cuidados de saúde para a população.

De facto, na contratualização com as outras iniciativas, o Estado para além de pagar a estas apenas por resultados obtidos para a população, com aumento do acesso e da qualidade dos cuidados prestados e com diminuição de custos, como se verificou nas PPP’s, pode ainda criar mecanismos de concorrência/competição (também rejeitadas na prática na atual Lei de Bases) introduzindo progressivamente a liberdade de escolha dos utentes e comparando e divulgando publicamente, de forma sistemática, os resultados atingidos (clínicos, de custos) entre todas as iniciativas: pública, privada e social.