Saúde. 1,5 milhões sem médico no fim de julho

Novos médicos de família estão a iniciar funções, mas falta de especialistas nos centros de saúde vai piorar antes de melhorar. Novos médicos vão dar resposta a cerca de 400 mil utentes, mas esperam-se mais 200 reformas. 

No final de julho havia quase 1,5 milhões de portugueses sem médico de família, o número mais elevado dos últimos oito anos. Esta segunda-feira, 1 de agosto, os novos especialistas começaram a iniciar funções nos centros de saúde, mas só cerca de 270 foram colocados e esperam-se ainda que cerca de 30 a 40 passagens à aposentação até ao final do mês, pelo que o reforço só deverá permitir atribuir médico a cerca de 400 mil utentes. Uma crise nos centros de saúde que ainda deverá piorar antes de melhorar.

«Estamos em anos de picos de reformas. Este mês temos novas novas entradas mas devem sair 30 a 40 médicos. Até ao final do ano deverão reformar-se ainda mais de 200 médicos de família, pelo que seguramente vamos terminar 2022 com mais utentes sem médico do que no final do ano passado», diz ao Nascer do SOL Jorge Roque da Cunha, médico de família e secretário-geral do Sindicato Independente dos Médicos, que alerta para o cansaço dos médicos mais velhos, que poderá antecipar ainda mais reformas para este ano.

Os dados do Ministério da Saúde atualizados esta semana no Portal do SNS, que o Nascer do SOL analisou, mostram que em julho havia 1.466.197 utentes inscritos nos centros de Saúde sem médico, pelo que a entrada dos novos especialistas que acabaram o internato, que acontece ao longo deste início de agosto, deverá manter o número de utentes sem médico acima de um milhão. 

Há um ano, no final de julho de 2021, havia 1.156.988 portugueses sem médico de família, um ponto de partida mais favorável do que o atual para a grande leva de novos médicos do ano. No final de 2021 havia 1.139.340 utentes se médico, pelo que não deverá ser em 2022 que volta a haver menos de um milhão de utentes sem médico. 

Lisboa é a região onde a situação mais se tem agravado, no final de julho com quase um milhão de utentes sem médico de família atribuído, mostram os dados do Ministério da Saúde. A base de dados que o SOL analisou revela mesmo que havia cinco agrupamentos de centros de saúde com mais de 30% dos utentes sem médico de família atribuído, com o maior défice no Agrupamento de Centros de Saúde do Estuário do Tejo, que abrange os concelhos de Alenquer, Arruda dos Vinhos, Azambuja, Benavente e Vila Franca de Xira e onde 35% da população não tinha médico atribuído no final do mês passado. 

Quase 130 mil sem médico no concelho de Sintra

Em termos absolutos, o Agrupamento de Centros de Saúde de Sintra continua a registar a maior falta de especialistas: no final de julho, havia 129.566 utentes sem médico atribuído (34,65% da população inscrita nos centros de saúde). Com listas de 1900 utentes, seriam precisos só aqui quase 70 médicos para garantir cobertura a 100%, isto não havendo mais reformas. Neste recente concurso para colocação de recém-especialistas abriram no entanto apenas 29 vagas e nem todas foram ocupadas: Lisboa foi de resto a região onde mais vagas ficaram por preencher, com cerca de uma centena de médicos especialistas em Medicina Geral e Familiar a optar por não ficar a trabalhar no SNS como médicos de família. 

Os resultados finais das colocações ainda não são públicos, estando-se na fase em que ainda podem existir recursos em alguns locais. Habitualmente, existem cerca de 5% de desistências, diz ao Nascer do SOL fonte próxima do processo de colocações.

Descongestionar urgências? 'intenção piedosa'

Perante esta realidade, os relatos dos centros de saúde são muito díspares, com casos em que não ter o médico de família disponível não impede conseguir consulta num curto espaço de tempo, até em 24 horas como o SOL confirmou esta semana na Amadora, e outros em que o processo é mais demorado, o que não tem sido até aqui avaliado. Pesquisando, não é possível encontrar qualquer estudo recente sobre o impacto da falta de médico de família na assistência à população.

Este ano, uma das intenções já concretizada numa circular emitida pela Administração Central do Sistema de Saúde é passar a encaminhar utentes com pulseiras azuis e verdes – não urgentes – das urgências para consultas nos centros de saúde, o que um médico de família de um dos centros de saúde mais assoberbados na linha de Sintra admitiu que será um desafio adicional em termos de atividade, além de implicar uma mudança de comportamento. 

Com as urgências a registarem uma afluência acima do normal este verão – marcado ainda pela pandemia e onda de calor, além dos hospitais relatarem também mais doentes complexos e descompensados – no último mês de julho, se todos os utentes tivessem aceitado sair das urgências e ir antes aos seus centros de saúde -o que será uma das condições do novo programa – implicaria mais 200 mil atendimentos nos cuidados primários, revela a monitorização das urgências do SNS, que o SOL consultou. Isto porque houve quase meio milhão de idas às urgências ao longo do mês, dos quais 208 117 triados como não urgentes, os que passarão a ser encaminhados para os cuidados primários. 

Tendo em conta que por exemplo em junho, dados oficiais das bases de dados do ministério que o SOL analisou, foram feitas 1.376.362 consultas presenciais nos centros de saúde (ainda em recuperação da pandemia), implicaria um reforço adicional de atividade na casa dos 15%. Só que distribuição das idas às urgências e consultas também não é igual em todo o país.

Região de Lisboa é onde há mais idas evitáveis às urgências

Analisando mais uma vez os dados de julho constata-se que a região de Lisboa e Vale do Tejo, onde há mais população sem médico de família atribuído, continua a ser aquela em que há mais idas evitáveis às urgências. 

No mês passado foram 81 247 utentes triados nos diferentes hospitais da região com pulseiras verdes ou azuis. Confrontando com o volume de consultas presenciais nos centros de saúde e usando como referência o último mês com dados, junho, em Lisboa no limite o envio de todos estes utentes para os cuidados primários implicaria um reforço de 18% nas consultas presenciais, que em junho foram cerca de 435 mil. Um esforço muito maior do que aquele que seria, em teoria, exigido no Norte, onde a cobertura de médico de família é, em muitas unidades, quase total – embora já não tanto como chegou a ser nos últimos anos. Voltando ao exemplo de julho, no mês passado houve 69.991 idas evitáveis às urgências nos hospitais do Norte. Os centros de saúde e unidades de saúde familiar nortenhas estão a fazer cerca de 550 mil consultas presenciais/mês (dados de junho), pelo que o desvio de doentes das urgências implica um reforço de atividade na casa dos 13%. 

Perante o atual contexto de falta de médicos, Jorge Roque da Cunha considera que a intenção de descongestionar as urgências é «piedosa» mas que deverá ainda demorar a concretizar-se, insistindo na necessidade de reter médicos no SNS e rever as atuais condições de carreira. A negociação que vai marcar os próximos meses nos bastidores da Saúde, depois de o Governo ter aceite negociar novas grelhas salariais e a pretender avançar com o regime de dedicação plena. Há um ano, a ministra da Saúde admitiu ao SOL que pudesse entrar em vigor nos concursos deste ano para recém-especialistas, nomeadamente para atrair novos médicos de família para o SNS, o que se desenha cada vez mais como um cenário só para 2023.