A gota de água

Um ministro da Saúde tem de ter em conta todos os recursos públicos e privados que existem no país – sendo capaz de os articular para tirar deles o máximo rendimento. E isso Marta Temido nunca fez. 

Na altura em que começaram os problemas nas urgências hospitalares, no início do Verão, escrevi que Marta Temido só tinha um caminho a seguir: a demissão. Raramente advogo a demissão de um membro do Governo, e nunca o faço leviana nem gratuitamente; a renúncia de Marta Temido veio, agora, dar-me razão. 

Na altura, o Presidente da República pôs-lhe a mão por baixo, dizendo que era um problema «estrutural»; mas equivocou-se: se era um problema estrutural, por maioria de razão a ministra deveria ser responsabilizada – pois estava no cargo há quase quatro anos. Se se tratasse de um problema conjuntural é que não faria sentido culpabilizá-la.

Desde essa altura, Temido estava ferida de morte – e fez mal em agarrar-se ao lugar. Talvez este caso não justificasse a sua demissão – mas foi a gota de água que fez transbordar o copo.

Quando dentro de uns anos se compararem as gestões de Marta Temido e de Paulo Macedo (o ministro da Saúde do Governo de Passos Coelho), o contraste será flagrante. Macedo governou em tempo de troika, teve de poupar muito dinheiro, e mesmo assim as queixas que se ouviram ao SNS foram mínimas.

A esquerda e a extrema-esquerda, que nessa época protestavam por tudo e por nada, nunca encontraram razões para pôr Macedo debaixo de fogo. Inversamente, Marta Temido, que começou a governar em tempo de vacas gordas, que a toda a hora anunciava mais contratações de médicos e enfermeiros, mais dinheiro deitado em cima do SNS, acumulou casos sobre casos. Curiosamente, o tempo da pandemia ainda foi aquele que correu melhor à ministra. Já lá iremos. Agora tudo acabou.

Os problemas na Saúde começaram com Mário Centeno, quando – certamente por pressão das esquerdas – reverteu as 40 horas de trabalho na Função Pública, voltando à semana de 35 horas.

Passaram a faltar médicos – chegando-se ao ponto de, para os aliciar, se terem planeado recentemente contratos em que jovens recém-entrados no SNS ganhavam mais do que os seus chefes, com muitos anos de exercício. Um verdadeiro desnorte. A ministra foi obrigada a recuar, perdendo margem de manobra e autoridade na classe.

É certo que a gestão da pandemia lhe correu bem de uma forma geral. Mas o maior mérito nessa tarefa pertenceu às Forças Armadas e à liderança do almirante Gouveia e Melo, que planeou as ações de vacinação e destacou equipas militares que enquadraram o pessoal civil e fizeram andar o processo sobre rodas.

E o resto foram as medidas decretadas pelo Governo, em geral bem aceites pela população, mas que não podem ser creditadas à ministra. Sem esquecer o apoio dado pelos hospitais privados, que receberam os doentes que o SNS não podia receber por estar focalizado na covid. Só por si, o SNS não tinha dado conta do recado, ao contrário do que se fez crer. Adiante-se que o Estado acabou por pagar por esses atos clínicos verbas muito superiores às que pagaria se existisse um acordo global com os privados, que Temido sempre rejeitou.

E este foi um dos grandes problemas de Marta Temido. Ela não foi verdadeiramente uma ministra da Saúde – foi a ministra do SNS; e a Saúde é muito mais do que o SNS.

Um ministro da Saúde tem de ter em conta todos os recursos públicos e privados que existem no país – sendo capaz de os articular para tirar deles o máximo rendimento. E isso Marta Temido nunca fez. 

Por preconceito ideológico, certamente herdado do tempo em que militava na Juventude Comunista, sempre viu os hospitais privados como adversários ou mesmo como inimigos. Isso levou-a a acabar com as PPP, que eram vantajosas para o Estado… e para os doentes. E limitou enormemente a sua ação. 

Num balanço geral, pode dizer-se que Marta Temido era uma ministra esforçada, bem intencionada, certamente competente nas questões que dominava – mas que em muitas situações, por erro de avaliação ou por teimosia ideológica, tomou decisões erradas. 

Em política, pode falhar-se nos pormenores; o grande problema é quando se falha em opções estratégicas. Ora, julgo que Temido falhou demasiado nas opções estratégicas que fez. Poderá dizer-se que, a esse nível, a responsabilidade era de António Costa. Mas já se sabe que, quando as coisas correm mal, Costa se esconde atrás dos ministros, que funcionam para ele como biombos.

Se calhar é o que se passa na maior parte dos governos. Mas Costa, com a sua manha, faz admiravelmente esse jogo de escondidas. Desde os fogos de Pedrógão até ao roubo de Tancos, sempre foi assim. Temido caiu como caíram Constança Urbano de Sousa e Azeredo Lopes.