‘Professores sem habilitações para ensinar são um retrocesso’

Santana Castilho antecipa um ano letivo mau e critica soluções do Governo. A última é o despacho publicado esta semana que baixa a fasquia quando faltam professores. Se fosse ministro, não poria um secretário de Estado a assiná-lo como fez João Costa: ‘É uma cobardia’. 

Especializou-se em organização e gestão do ensino, teve uma curta passagem pelo Governo de Balsemão no início dos anos 80 – está a fazer agora 40 anos. Professor no Ensino Superior há mais de quatro décadas, trabalhou como consultor do Banco Mundial, União Europeia e UNESCO e, como nos tempos de juventude, gosta de escrever, pensar e não esconde o que pensa: escreve a metro, como costuma dizer, e é dos colunistas mais antigos do Público (chegou a ser diretor do diário  Globo e mesmo quando foi subsecretário de Estado escrevia para os jornais sob pseudónimo). É das vozes mais críticas do estado da Educação e seus titulares. No arranque de mais um ano letivo, arrasa a estratégia que está a ser seguida pelo Governo para lidar com a falta de professores e não lhe faltam questões e medidas que gostava de ver debatidas. Mostra-nos uma lista, uma organização metódica que lhe está entranhada, do arquivo pessoal pré-computadores, dossiês classificados como biblioteca nos armários de casa, onde nada está fora do sítio. Uma ‘obsessão’ que encara com disciplina: uma forma de tirar mais partido da vida, da energia e do cérebro, explica.

Nesta primeira parte de uma conversa com o Nascer do SOL, Santana Castilho, de 78 anos, uma «pedra diferente das outras», como lhe disseram um dia, fala das «ilusões» deste regresso às aulas, do despacho que vem permitir a licenciados sem habilitações para a docência dar aulas e da polémica em torno da ideologia de género nas escolas.

Além do pacote de apoio às famílias, a semana fica marcada pela garantia do ministro da Educação de um regresso às aulas tranquilo, mas sem ilusões. É tranquilizador?
Os Costas são dois artistas. O Costa chefe, manipulador, prestidigitador exímio, e o Costa ministro da Educação, menos do que ele, mas que tem a mesma atitude perante os problemas. Portanto as palavras de João Costa não me surpreendem. Se formos analisar em detalhe, a atuação política do ministro tem sido de ignorância dos problemas da educação e procura de soluções, umas mais escabrosas do que outras, para gerir o dia a dia. Deu uma conferência de imprensa em agosto onde disse que 97% dos horários pedidos já estavam preenchidos.

Foi o princípio da ilusão?
O problema não é ilusão, é mentira com consciência. O ministro não é mentecapto. Sete anos depois de estar no Ministério não pode dizer o que disse a não ser por má fé. As escolas tinham instruções para pedir esses horários e uma das instruções era não considerarem professores que já sabiam que iam ser reformados em setembro.

Foi sempre assim?
Se vamos falar de como foi ao longo dos tempos, temos de falar da história da Educação e das políticas a partir de Maria de Lurdes Rodrigues, que foi a grande coveira do ensino. A partir daí tem sido um crescendo de medidas erradas.

Quem está no setor pode até perceber o funcionamento dos concursos. Para as famílias a pergunta é: não é possível o ano começar com tudo resolvido, tirando baixas imprevistas naturalmente?
Nem as pessoas percebem nem muitas vezes quem está no sistema, porque é um caldo de legislação, decisões umas sobre as outras. Mas deixe-me voltar à questão anterior: houve esse problema de as escolas não pedirem horários de professores que já se sabia que iam sair para a reforma e não se considerar que, só por mobilidade por doença, teríamos sempre pelo menos três mil baixas médicas imediatas de professores a quem foi atribuído horário.

O número de baixas médicas nas escolas tem a ver com o envelhecimento dos professores ou, como sugeriu o pedido de 7500 juntas médicas por parte do Governo, há um aproveitamento indevido desse mecanismo, até para resolver por exemplo a instabilidade das colocações?
Não há só uma causa certamente. A maior será o envelhecimento dos professores, mas por cima dessa está sempre o quão difícil e causticante se tornou a profissão de professor. No último concurso tivemos casos em que os professores finalmente entraram no quadro para se ir reformar na semana a seguir ou no mês a seguir. Imagina o que é, com a sua família, viver 27 anos, como eu conheço alguns docentes, com a mulher num sítio, o marido noutro, a terem de alugar duas casas, não poderem estar com os filhos? No ano passado tive conhecimento do caso de uma colega que vivia aqui em Lisboa, dormia num sofá numa sala pelo qual pagava 10 euros diários. Não tinha dinheiro sequer para alugar um quarto. Todas estas coisas se acumulam e dão um desgaste enorme aos professores.

O que está a dizer é que sugerir que há uma fraude generalizada passa por cima desse contexto, que por isso só pode contribuir para maior mau estar.
Obviamente que esse é um discurso demagógico. Os professores que metem baixa médica e que fruíam deste estatuto de mobilidade por doença são pessoas com doença grave ou que prestam assistência a familiares com esses problemas. Para fazerem isso passam um processo complexo de apresentar testemunho para a situação em que estão. O que fazem é usar um mecanismo legal e que está vigiado medicamente. Se há fraude, então tenha-se a coragem de dizer quem comete a fraude e a lei previu desde sempre mecanismos para isso. Estas 7500 juntas médicas que o ministro agora apregoa são um ato de má fé: lança um anátema sobre todos os professores. Já escrevi sobre muitos casos verdadeiramente macabros, pessoas com cancros em fase terminal que morreram na escola porque foram obrigadas a regressar por juntas médicas, essas sim fraudulentas.

Em que sentido?
Dou um exemplo. No tempo do ministro Nuno Crato tive intervenção pessoal num caso de uma professora que estava visivelmente doente, com uma depressão profunda e tentativas de suicídio. Vai a uma junta médica por atingir limite de faltas com atestado. A decisão estava assinada previamente por alguém que não estava sequer na junta médica! A senhora telefonou-me desesperada por nem lhe permitirem que apresentasse os atestados do psiquiatra que a assistia. Isto tem alguma credibilidade? Agora 7500 juntas médicas, quando os próprios médicos dizem que é impossível, quem é que acredita nisto? É uma farsa. Pergunta-me se há fraudes. Eu não sei, o que sei é que há milhares de professores a quem não foi concedido o que a lei prevê e o respeito pela doença está a ser transformado em mais um concurso com critérios risíveis e que desprezam as pessoas. Recuando um pouco, quando me perguntava sobre se o início do ano letivo não podia ser normal, devo recordar que houve uma altura em que os concursos estavam estabilizados. Foi na altura do ministro David Justino que surgiram os primeiros problemas, até aí os concursos eram simples e não faltavam professores nas escolas. Portanto é olhar para como as coisas eram feitas.

Os concursos eram menos complicados ou também havia mais professores do que há hoje?
Não há falta de professores. Há falta é de pessoas com formação profissional que queiram permanecer nas escolas.

Tem consciência de quanto ganha um professor?
Mil euros em início de carreira?
Mil e pouco, durante anos. Faltam professores de informática? Claro que faltam. Estamos a falar de professores que têm no mínimo um mestrado. Que têm 35 horas como qualquer funcionário público mas isso é só na teoria, porque basta ver o trabalho que fazem em casa, os pais com que têm de lidar, a indisciplina, a burocracia. Tudo isto tem levado a que muitos abandonem a profissão. Sem este abandono, não teríamos falta de professores. 

Mesmo com menos pessoas a quererem ser professores?
Vai diminuir muito mais, mas há uma analogia entre a falta de médicos e a falta de professores: temos a Ordem dos Médicos a dizer que forma médicos suficientes para as necessidades do país, com estatísticas indesmentíveis nos rácios de médico por cidadão, mas temos uma falta enorme de médicos no SNS. E é o que se passa com os docentes.
Ainda assim, nas escolas vê-se o movimento contrário: os colégios a terem uma fuga de professores para a escola pública. Sim, porque o público tem sido indexante dos salários. Mas há uma grande degradação das condições de ensino. As pessoas encaram a escola como um local onde se depositam os filhos, com o conceito terrível da escola a tempo inteiro, sem que haja condições para o fazer. Esta recente medida da creche gratuita no primeiro ano continua a alimentar isto – e é mais outra medida falsa porque a rede instalada é insuficiente para toda a gente.

A escola não é a tempo inteiro: muitas famílias têm de pagar do seu bolso ATL.
É verdade e se continuarmos assim será sempre insuficiente. Vai-me dizer que é uma utopia da minha parte mas penso que isto não se resolve assim. O que eu gostaria era de não ter nenhuma criança até aos dois anos separada dos pais ou pelo menos da mãe. Nestas coisas sou muito claro e sujeito-me a todo o tipo de críticas.

Não segue o politicamente correto.
Não. Se puder ser o pai e a mãe, ótimo, mas não separem bebés pelo menos da mãe até aos dois anos de idade. Estudei na Suécia nos anos 70 onde os casais com filhos nesta faixa etária tinham a possibilidade de um deles ficar em casa, com o Estado a garantir o salário. Tenho boa consciência de que não estamos em condições de fazer isso, mas era para aí que devíamos caminhar e nada nisto se discute.

Culturalmente, o mundo laboral ainda o penaliza.
Também é verdade. Dizia muitas vezes aos meus alunos quando discutíamos estas questões de igualdade de género que tenho uma tristeza enorme de não poder ficar grávido. Homem é homem, mulher é mulher, diferentes mas com a mesma dignidade ou até mais: há papel mais fabuloso da mulher do que a maternidade? Gostava muito que,  em vez de pensarmos que a sociedade está a desenvolver-se porque consegue pôr as desgraçadas das crianças numa creche gratuita, sem estabelecimento de nenhum vínculo psicológico/emocional, pensássemos no que isso significa para as famílias e pudéssemos olhar para as coisas de outra forma.

O que vê quando se anuncia creche gratuita?
Que o Governo avança para as creches gratuitas porque se calhar está muito mais interessado em criar condições para que os pais e as mães sejam escravizados pelo mercado do trabalho, trabalharem ganhando pouco, com ordenados que não chegam para pagar a creche e sem terem a possibilidade de fazerem aquilo que é a missão fundamental das famílias.

A creche gratuita pode mudar-se num Orçamento do Estado. 
Tem razão, mas como dizia há pouco da Educação, um dos nossos problemas fundamentais no país e na política é que gerimos o dia a dia, o curto prazo. Não pensamos o país nem a médio, quanto mais a longo prazo. Pode ser tudo utópico, mas na minha opinião tudo isto implicaria uma melhor divisão de riqueza e o país produzir mais riqueza e uma estratégia para isso. De outra forma continuaremos a alimentar o problema. Temos uma economia estagnada, diga-se o que se disser.

Apesar do crescimento de 7% do PIB em relação ao ano passado.
Se começamos do zero. Alguém dizia que há três tipos de mentiras: as mentiras criminosas, as mentiras piedosas e a estatística. Temos isso constantemente no país. Veja-se o truque com estas oito medidas que o primeiro-ministro anunciou ao país esta semana, desde logo nos pensionistas. As leis podem ser mudadas, mas enquanto não forem mudadas existem. A lei que regula o aumento das pensões está vigente e o primeiro-ministro ludibria os portugueses. Agarra no que iria acontecer em janeiro de 2023 e antecipa parte, não explicando às pessoas que iria roubá-las face ao que é a lei vigente e que determina o que receberiam em 2023, o que era o mínimo. Que dissesse que a sustentabilidade das pensões fica em causa, era uma coisa, mas assim não. A Educação está cheia de manipulações deste género. Um exemplo são as estatísticas sobre abandono precoce. 

O Governo anunciou que se fixou nos 5,1%, um mínimo histórico.
Ninguém sabe qual é. Vão ver os jovens portugueses inscritos no fundo de desemprego e desses, que são poucos, retiram os que não concluíram o ensino obrigatório e extrapolam daí as taxas que apregoam, mas quantos não terminam e não estão inscritos no centro de emprego? Ninguém sabe. Não sou eu que digo, é o Tribunal de Contas, que reconheceu numa auditoria de 2020 que não existem, no sistema educativo nacional, indicadores para medir este fenómeno. Uma das características destes Governos PS foi acabarem com tudo aquilo que eram instrumentos de avaliação que permitissem comparar resultados. Sou um defensor dos exames, apenas me parecia precoce o exame no quarto ano de escolaridade, mas é essencial avaliar resultados e isso não é feito.

As provas de aferição voltaram no último ano letivo.
Voltaram mas não contam para a nota. Nem lhe digo o que vi escrito nas provas por ser indecoroso, mas foram várias as respostas de alunos a gozar com o teste. Foi já em junho, com o ano resolvido, que decidiram chamar os alunos de 9º ano à escola para fazer a prova que não ia contar para nada. Isto entra na cabeça de alguém? Há dois documentos recentes do IAVE, que não sendo independente tem credibilidade e faz esse trabalho, que o que nos dizem é que muitas crianças terminam o primeiro ciclo do ensino básico sem saber ler e escrever, que quase 50% são uma desgraça a matemática e passados uns dias o ministro vem dizer que temos de taxa de sucesso escolar de 90 e tal por centro. E quando falava de crianças com necessidades educativas especiais ufanava-se de serem taxas idênticas à das crianças ditas normais. Eu vejo isto e sinto vergonha. Pois pudera, é tudo passagem administrativas. Felizmente não temos aqueles problemas dos censos em que o morto também vota, se não alguma criança morta ainda contaria para a taxa. É insustentável. 
Sente esse relato da parte dos professores, que para lá daquilo que as estatísticas captam, há piores resultados?  
Absolutamente. Sei que isto também não é politicamente correto de dizer, mas toda esta ideia de que todas as disciplinas têm a mesma relevância, esta treta que é muito do discurso dos pedabobos de que a Matemática ou a História não vale mais do que não sei quê, não é bem assim. Há disciplinas que têm um impacto maior na preparação das crianças para adquirir conhecimento ao longo da vida do que outras e isso varia consoante a faixa etária. Há exigências tontas, mas estamos a abrir mão de outras. Como a preparação científica dos professores é essencial e choca-me que não tenham hoje quaisquer bases de neurociências para perceber como funciona o cérebro das crianças. Por cima disto, veja-se o que está a passar com esta revisão dos requisitos para dar aulas. O ministro João Costa acaba de dar um pontapé no decreto-lei 79/2014, que no seu artigo 3º diz que é indispensável a habilitação profissional para se exercer a atividade docente. Através de um simples despacho, assinado pelo secretário de Estado, suspende a lei. Para mim isto é desde já uma cobardia: se fosse eu ministro, assumia esta posição. Agora temos um despacho a sobrepor-se a uma decreto-lei, assinado por um secretário de Estado, e que vem permitir que alguém sem formação específica para a docência, porque tem os créditos definidos neste despacho, pode dar aulas. Um licenciado com créditos a Português, a História, etc.  

Despacho que saiu esta semana e que abre essa hipótese para quando faltem professores com habitações. O que antecipa?
É um enorme retrocesso até de pensamento. Nos anos 80 admitia-se que qualquer pessoa pudesse dar aulas, depois percebeu-se que a formação pedagógica era essencial e também era científica e agora recuamos, por despacho. Não é só nunca ter dado aulas na vida, é não ter tido o mínimo de formação científica no ensino da matéria que vai dar.

Admite que possa haver casos em que licenciados de outras áreas darão bons professores?
Admito, como em tudo na vida, mas devia assumir-se o que está a ser feito, e tal como nas pensões isso não é feito. Tivemos o Eurico da Fonseca, um português conselheiro da NASA, que não tinha formação científica universitária e sabia imenso de engenharia espacial. Mas não é essa a norma. O que temos é um retrocesso aos anos 80 feito por via de um despacho. Quando eu estive no Governo era assim: havia vários tipos de habilitações. Na altura a falta era tanta que até tínhamos professores sem o 12º a dar aulas. Evoluímos e gostava que esse tempo estivesse ultrapassado. Sobretudo porque não temos falta de pessoas sem formação. Se déssemos dignidade aos professores, se limpássemos o sistema da carga burocrática que existe, não tínhamos este problema. E os problemas mantêm-se: o estatuto da carreira docente, que vem do tempo de Maria de Lurdes Rodrigues, mostra-nos que, grosso modo, 80% das obrigações dos professores não têm que ver com o ensino. Quem é que aceita isto? A quantidade de papéis completamente inúteis que os professores preenchem, informações repetidas que têm de colocar nas plataformas informáticas…

Mais uma analogia com as queixas dos médicos. É um problema da administração pública?
É o resultado de não se fazerem as reformas necessárias. Que reforma é que o primeiro-ministro fez em sete anos? Zero. São malabarismos. É um homem espertíssimo, inteligente sem dúvida nenhuma, mas é um produtor de truques e não é disso que precisávamos, mas de pensar o país e estabelecer estratégias para resolver problemas. E claramente a nível dos professores, não é possível um país crescer e resolver-se como queremos que Portugal faça com a trajetória que está a ser seguida na Educação.

Este ano preveem-se 2800 reformas de professores, em 2023 ainda serão mais: 3500. As dificuldades do início do ano vão agravar-se?
Em primeiro lugar não vai começar como diz o ministro. Pelo  menos teremos 30 mil alunos sem professores, como terminou o ano passado e o problema vai agudizar-se rapidamente. Vai ser um ano letivo mau. E é perante isto que penso que há um conjunto de questões de fundo que deviam estar a ser feitas: a estrutura orgânica do ministério da Educação é adequada? As escolas têm suficiente autonomia? O que fazer para proteger o sistema da volatilidade política? Temos uma estrutura de gestão do sistema de ensino em que, cada vez que muda o político, tudo aquilo abala. Precisamos de dar estratégia, coerência e estabilidade ao sistema. Por exemplo: temos um plano de estudos, um currículo nacional, que muda cada vez que muda o ministro e hoje é uma manta de retalhos em que ninguém se entende. Defendo há muito que devia haver no Ministério da Educação um instituto de desenvolvimento curricular, uma estrutura profissionalizada. Que em vez de termos sempre grupos ad hoc como agora existiu na matemática cuja constituição é ditada pela simpatia ou escolha política do ministro – independentemente da qualidade do professor que o dirigiu, é sabido que há uma luta intestina entre a Sociedade Portuguesa de Matemática e a Associação dos Professores de Matemática. Uma revisão só devia ser proposta por uma entidade que fosse superior a tudo isto. 

Lá fora não é assim?
O currículo dinamarquês, da última vez que estudei, estava praticamente imutável há 27 anos. Passamos a vida a ouvir: a sociedade evolui, mas a educação não muda. É uma falácia. Em milhões de anos a espécie perdeu duas vértebras. O que se passa no cérebro de uma criança para aprender não muda todos os anos, nem com os computadores e essa é outra falácia. O que mudou com os computadores, e já há estudos nesse sentido, é que pela primeira vez temos uma diminuição dos níveis de inteligência em todos os países. Por alguma razão os gurus de Silicon Valley proíbem os filhos pequenos de usarem smartphones, terem tablets, etc. O que fazemos cá? Apostamos na escola digital sem avaliação. Já há trabalhos hoje no âmbito da neurociência que mostram que o desenvolvimento de crianças com 11 anos que foram submetidas a grandes imersões nestas parafernálias está, do ponto de vista cognitivo, ao nível do das crianças com oito anos que não tiveram essa exposição. Aquilo que um ensino obrigatório tem de fazer é ensinar. Não é nada pôr as crianças a ‘aprender a aprender’, é ensinar.  É ensino direto. Tal como estou a falar consigo, olho nos olhos. Em que estamos a interpretar a variação dos nossos músculos oculares. Isso é fundamental numa criança.

Há bocado usou a expressão pedabobos. É muito crítico?
Das tretas da escola moderna, sim.

Não concorda com nenhuma abordagem? O aprender fazendo, o projeto?
O aprender fazendo é ‘excelótimo’, excelente e ótimo [risos]. O problema é que isso não é compatível com ensino de massas. Não é que não concorde com nada, não sou contra a experiência, agora isso da escola sem professor, sem aulas, acho uma treta. A experimentação é excelente, mas não faz sentido estar a pôr uma criança a bater em duas pedras de sílex para descobrir o fogo. Ela antes de poder experimentar tem de ter um conhecimento básico.

A maior flexibilidade, maior contacto com a natureza, muitas vezes elogiado nos países nórdicos…
A escola perto da natureza e os miúdos a apanhar com neve é excelente, agora não se pode pensar que isso é implementável numa escola de massas sem meios e sem dinheiro em que o ensino tem chegar a todos. Muitas das nossas escolas nem têm meios para levar miúdos a visitar uma exposição ou têm falta de condições nas casas de banho. Uma coisa é defender na teoria, mas o ensino personalizado e a felicidade a brotar dos bebedouros públicos das escolas, gostava que tudo isso fosse possível mas a realidade não é essa, por isso não posso querer importar esse tipo de pedagogias para uma realidade que torna tudo isto completamente lírico. E falava dos países nórdicos, o que muitas vezes é outro mito. Na Finlândia, as coisas não assim tão livres e quando começaram a ser, os resultados vieram por ali abaixo e emendou-se. Agora têm de facto coisas de topo. Fiz uma pós-graduação em ensino de crianças deficientes na Suécia. O meu estágio foi acompanhar uma criança com 20 anos e que ia pela primeira vez à escola. Nasceu vítima da talidomida, era cega, tinha as mãos, uns coutozinhos, nos ombros e até aos 20 anos esteve em estabelecimentos de ensino apartados. Só teve autorização para uma escola com outras crianças naquela altura, quando tinha autonomia. Os cegos naquela altura não eram integrados em turmas normais antes de fazerem todo um programa que lhes permitisse serem autónomos. Já nessa altura o Estado sueco dava a cada criança cega, e a maioria eram refugiados, um aparelho Optacom, que custava uma fortuna, que traduzia instantaneamente a escrita a preto e branco em impressões táteis. Assisti a isto em liceus na Suécia: em aulas experimentais de Química, as crianças chamavam o colega cego para saber qual era a cor que tinha resultado da aplicação de dois reagentes. Todos os cegos tinham uma célula fotoelétrica que lhes permitia apontar e saber a cor. Já nessa altura deslocavam-se com uma bengala laser. Aqui em Portugal marravam com os candeeiros.

Continuamos a ter falhas na política de inclusão nas escolas?
Regredimos. Dirigi o CREI – Centro de Recursos do Ensino Integrado. Ninguém sabe o que é porque acabaram com ele. Portugal já foi um país pioneiro na integração de crianças, no tempo da Ana Maria Bénard da Costa, chefe da Divisão de Educação Especial, uma mulher pioneira no final dos anos 70. A divisão  na Direção-Geral do Ensino Básico estava ao nível do melhor que se fazia no mundo e o CREI desenvolvia ajudas técnicas. A integração que se faz hoje é uma farsa completa, com apoios terrivelmente insuficientes e sem aceitar que há situações em que as crianças não podem estar no ambiente normal. Sou a favor do ensino integrado, mas antes de a integrar é preciso dar-lhe condições para que possa integrar-se, não pô-la numa aula em que não percebe o que se está a dizer, sem poder aproveitar nada, com necessidades que deviam estar a ser respondidas noutros ambientes. 

Há pouco falava das questões de igualdade de género. É esperada nesta rentrée a decisão do tribunal sobre o caso das crianças de Famalicão chumbadas por não irem às aulas de cidadania. Como vê esta querela?
Acho que tem havido disparates a vários níveis. Como é evidente, uma sociedade organizada democraticamente, se tem um ensino obrigatório e um plano de ensino, não pode ser o cidadão comum a dizer ‘o meu filho frequenta esta disciplina e não frequenta aquela’. Isto para mim é ponto assente e aqueles pais não o percebem. E este sistema de ensino até lhes dá uma opção, o ensino doméstico, podem tirar as crianças da escola e ensiná-las em casa. Tem regras, supervisão, mas era uma opção. Dito isto, se concordo com a displina de Cidadania e Desenvolvimento, não. Se concordo com o programa, não. Se concordo com a rebaldaria que se instalou, também não. Conheço casos de crianças pequeninas, de tenra idade – até ao nível do jardim de infância –, que chegaram a casa traumatizadas com receio de mudarem de meninos para meninas ou de meninas para meninos.

Não é uma caricatura? Por vezes esta discussão parece excessivamente polarizada entre quem é contra e a favor sem se perceber muito bem o que se passa nas aulas.
Há as duas coisas. Há um excesso de uma determinada intelectualidade dita de esquerda que quer introduzir nas escolas discussões complexas e que fazem falta, mas não são problemas para ser tratados ao nível das crianças com a ligeireza que se têm introduzido no sistema. Mas depois também há facciosos de direita que se arrogam no direito de usar a objeção de consciência para pôr tudo em questão. Portanto acho que a única solução para isto é bom senso. A minha visão é que a responsabilidade de cada professor é sempre ajudar os alunos a tomar consciência cívica, aproveitando todas as oportunidades para isso, mas esta disciplina autónoma não faz sentido.

Neste caso não parece haver grande margem para bom senso: o MP pede que as crianças fiquem à guarda da escola em tempo letivo. Não se abre um precedente?
É de loucos. Penso que é preciso refletir, no meu entender aquela disciplina, sem formação adequada, dá azo a este tipo de situações, generalizações e excessos. Tem havido uma inadequação da discussão do tema da igualdade de género na escola. Há uma fabricação de problemas que não existem nos locais onde são postos e um uso de metodologias incorretas. Isto resolve-se com os pais a perderem a guarda das crianças? Acho que chegamos a um ponto louco porque não houve o bom senso de olhar para o problema. Como pano de fundo há iliteracia educacional, desinformação e falta de preparação. Houve há uns tempos um debate na televisão em que estava o Sérgio Sousa Pinto e o Daniel Oliveira e o Sérgio Sousa Pinto puxa de um guião, que não é oficial, e por alguma falta de rigor ou incúria diz que é do Ministério da Educação. É falso e leva a um empolar mediático dos problemas. Por outro lado temos de assumir que nem todos os professores têm capacidade para tratar todo o tipo de temas ou mesmo que nem todos estão informados e que alguns seguiram mesmo aquele guião de que se falou, que a mim também me arrepia, e não se deram conta que não são guiões oficiais do Ministério da Educação. Há professores que são pouco cultos, têm poucas leituras. Tudo isto tem de ser abordado.

O facilitismo de que falava.
Nisso tenho uma vaidade enorme, dificilmente encontra um aluno que diga mal de mim, mas era exigente. Os meus melhores alunos tinham 14.

É um tema de partilhado por professores, a pressão para dar melhores notas, até por parte dos pais.
Todo o ensino hoje está orientado para que passe toda a gente, passa-se com seis negativas. E no meio disto os alunos cada vez leem menos, têm mais dificuldade em interpretar aquilo que leem, mas também há muitos professores a dar erros crassos. Sou do tempo em que para a admissão ao liceu era permitido um erro e meio. O meio erro era um acento grave ao contrário. 
Já disse que a falta de professores vai ser a grande pandemia académica desta década. Não confia na atual estratégia, o que fazia de diferente? 
Mudava de políticas, dava condições às escolas para trabalhar com autonomia, condições aos professores para ensinar, turmas mais pequenas. Quem sabe iniciar a escola aos sete anos, para haver mais maturidade. Defendo há muito a existência de um currículo nacional e de uma faixa curricular que possa variar de região para região em vez deste sistema em que cada um faz o que quer sem que ninguém se entenda. E penso que é essencial um debate e uma definição do que deve ser o ensino obrigatório, de qual deve ser a missão da escola. Na minha visão, deve ensinar às gerações que vão nascendo aquilo que as gerações com cidadania decidem que é o mínimo para os mais novos se lançarem na vida e crescerem autonomamente. Educação é tudo aquilo que se acrescenta à simples natureza humana. É duro, mas todos nascemos com uma marca genética, condenados pelos nossos cromossomas e nem sempre somos salvos pela nossa marca genética. Numa criança com trissomia 21, jamais consigo tirar um prémio Nobel da matemática. Mas de uma criança genial se não lhe der condições de vida e educação, posso nunca permitir que desenvolva a potencialidade. O papel da escola é ensinar todos, nas suas diferenças, contribuindo para a educação inteira da criança ensinando-a no que a sociedade considera necessário, porque depois sabemos que cada um vai ser o resultado de acontecimentos inesperados ou menos inesperados da vida, decisões eticamente boas ou más.
Um dos debates que se vê muito é se a escola está a ensinar as crianças de hoje para um futuro em mudança, novas profissões, o que tem trazido disciplinas como a codificação.
Não sou um entusiasta disso e tenho dois computadores em casa, um tablet, uso tecnologia – aliás tenho tudo organizado e o meu cérebro funciona como o de um programador nos meus arquivos. Em 1982 comprei o meu primeiro computador que me custou 1200 contos. Não sou bota de elástico, agora a tecnologia é para usar e tirar dela partido. A complexidade hoje da programação não se resolve aprendendo a codificar aos cinco anos. Aos cinco anos preciso de um desenvolvimento neuronal que é prejudicado por estas coisas. Como é que preparamos as crianças para profissões que vão ser diferentes? Repare que quem lança essas ideias acaba por assumir que nem sabe que profissões vão aparecer. Uma coisa é certa: as crianças têm limitações, não lhes posso ensinar tudo, tenho de fazer escolhas.
Os currículos são demasiado grandes?
Sim, é um dos problemas que se mantém. Precisávamos de um debate sério, ouvindo quem estudou estas matérias e quem está no terreno. Um dos problemas é que os professores não pintam nada. A maior parte das decisões são tomadas por pessoas que não têm experiência de sala de aula, que não estão na escola. Não é preciso ir mais longe, veja o anterior ministro: nunca deu uma aula.
Chegou a recomendar num jornal a Tiago Brandão Rodrigues que procurasse os cuidados do irmão, veterinário especialista em burros. De onde vem o seu lado provocador?
Desde muito pequenino, talvez seja marca genética. Tenho muitas histórias de irreverência.
Era um aluno indisciplinado?
Não era indisciplinado, mas sempre fui frontal. Era capaz de dizer na cara a um professor que tinha consciência do que ele me estava a mandar fazer mas que não ia cumprir e desde cedo defendi aquilo em que acreditava. Os meus pais eram pouco mais do que alfabetizados e a minha mãe citava ao longo da vida uma resposta que dei a um professor quando fiz o exame de admissão ao liceu. O professor perguntou qualquer coisa, eu respondi e ele diz: ‘tem a certeza do que acaba de dizer, eu penso que não é assim’. E este catraio com dez anos de idade responde: “tenho a certeza absoluta senhor doutor, pense o senhor o que pensar”. Tive um grande amigo na vida que foi o meu professor de Educação Física.
A sua primeira opção. Influenciado por ele para o ensino?
Licenciei-me em Educação Física mas praticamente não exerci, abandonei muito cedo. Fiz o doutoramento em Bruxelas e toda a carreira foi na gestão educacional, comecei a dar aulas no ensino superior, a ensinar organização do ensino. Mas ao longo dos anos mantive sempre a ligação ao Prista Caetano, meu professor de Educação Física no Liceu de Beja. Nunca tínhamos tido um professor de Educação Física, um professor a sério, que sabia o que fazia. Tínhamos a Mocidade Portuguesa, todas as quartas e sábados eram passados a fazer desporto e nesse aspeto eram uns privilegiados porque hoje o desporto escolar é uma farsa, mas as aulas eram dadas por militares e a certa altura aparece o Prista Caetano, formado pelo INEF (Instituto Nacional de Educação Física), que estabelece uma relação fabulosa connosco. Passados uns anos anunciou que ia embora. Estava no meu 6º ano. Naquela altura os saraus eram o ponto alto do ano, todos impecavelmente vestidos, toda a gente importante da cidade, do bispo ao reitor. Eu fazia parte de uma classe de saltos de trampolim e éramos os últimos a entrar. Era a apoteose –  hoje é difícil perceber, mas era a coisa mais importante que acontecia em Beja. Atrasei-me de propósito para aparecer a saltar descalço, uma afronta terrível. Ele ficou furioso comigo. Ainda agora me comovo. No fim perguntou-me: ‘porque é que estás descalço?’. E eu disse-lhe: ‘o professor vai embora e nós vamos ficar descalços’. Era um bom professor e eu fui sempre irreverente.