‘Orgulho-me do meu currículo invisível de nãos’

Com um percurso de 20 anos e 40 títulos publicados, Gonçalo M. Tavares manteve sempre o centro: o livro. Para isso, teve de dizer não muitas vezes: a ‘convites para cargos, para coisas políticas’ e outros que não pode revelar. ‘Há uma coisa de que me orgulho: não me vendi’.

Por Teresa Carvalho

Foi há exactos 20 anos que Gonçalo M. Tavares lançou a primeira pedra do conhecido Bairro que homenageou senhores ilustres da literatura, trocando a habitual reverência pela ousadia da construção significativa. É um mundo literário em obras, com aberturas constantes, remodulações, decidido a escavacar géneros literários. Houvesse um coveiro de géneros literários e para Gonçalo M. Tavares estariam há muito enterrados: morte por irrelevância, desvalia, insuficiência literária. Enquanto esse técnico de profundidade (como agora se diz) não chega, Gonçalo M. Tavares vai-se metamorfoseando para longe de canónicas classificações. O Diabo faz-nos regressar ao mundo do ‘era uma vez’ – conta, adverte e diverte.

Acabas de regressar da Turquia, onde entretanto saiu ‘Uma Menina Está Perdida no Seu Século…’. Por cá, acaba de ser publicado ‘O Diabo’. Este desfasamento de publicações não te causa algum desnorte?
Sim, num país sai uma coisa, noutro país sai outra… mas é engraçado. Na Turquia, por exemplo, há uma bibliografia diferente da que existe em Portugal ou noutro país. É como se existisse um percurso individual em cada sítio. E eu gosto disso porque não interessa se um livro vem antes ou depois, se vem mais tarde ou mais cedo: os livros não têm tempo, é como se perdessem as datas. E isso é óptimo.

Já te imaginaste outra coisa, que não escritor?
Cresci numa biblioteca de dois pisos, mas poderia ter sido bem diferente. O meu pai nasceu de uma família pobre, bastante pobre até. E aos dez anos, apesar de ser muito bom aluno, o meu avô queria pô-lo a trabalhar no campo. E foram os professores – e é por causa destes professores que verdadeiramente hoje sou escritor – que se bateram contra a teimosia do meu avô. Estou-lhes muito grato. Houve um, a certa altura, que se ofereceu para pagar livros, coisas que a nós nos podem agora parecer mínimas mas que para uma família pobre eram importantes. E este momento acabou por ser, também para mim, para a minha geração, e para a geração seguinte, um momento decisivo. É o momento da quebra do ciclo da pobreza, que é fundamental.

E difícil…
O que é terrível é que é cada vez mais difícil neste país quebrar este ciclo, esta espécie de enguiço. Estudar em Lisboa começa a ser uma coisa de milionários. Cada vez mais os filhos de pessoas com baixos rendimentos têm dificuldade em chegar à universidade, ter acesso a melhores empregos. E este ano de 2022 é o ano em que estas questões estão a explodir. Estamos a regredir, a voltar ao tempo em que as pessoas pobres não podem estudar. A ideia do ensino gratuito, do acesso à universidade, está a ser barrada.

Para falar do universo dos teus livros, das relações que eles estabelecem entre si, usas a imagem da cidade em obras, com aberturas constantes, reparações… Praticamente não há cercanias: preâmbulos, prefácios, posfácios. Vai nisto alguma sobriedade orgulhosa? 
Em Matteo Perdeu o Emprego, a primeira parte é narrativa e a segunda parte é uma espécie de grande posfácio ou reflexão sobre a narrativa. Não gosto de grandes orquestras, gosto de pequenas variações, pequenos sobressaltos. E é importante que o leitor entre nesse mundo diferente sem aviso, que se sinta meio perdido e que tente de algum modo localizar-se. À ideia da familiaridade e do que é doméstico prefiro a da estranheza, do sobressalto no mundo. Das sensações mais extraordinárias que podemos experimentar quando nos perdemos numa cidade é encontramos um sítio que conhecemos. Há uma sensação de uma potência enorme que vem da angústia anterior. O mesmo acontece no campo da música, quando descobrimos a harmonia na estranheza.

Este ‘Diabo’ que a Bertrand acaba de publicar é, dos teus livros, talvez o mais habitado. As figuras quase se acotovelam: são mais que muitas… 
O Diabo é muito concentrado. As mitologias sempre foram pensadas por mim como algo que se situa no presente, alguma coisa que está a acontecer agora, e isso coloca em movimento personagens que aparecem e desaparecem. Não há obediência a uma lógica narrativa, de continuidade. Há um alto grau de liberdade, associada ao próprio conceito de mitologia: a mesma história pode ser narrada por diferentes narradores, de maneira completamente diferente. Há muitas personagens que fazem a sua aparição e esta aparição tem a ver também com a questão das funções, que está muito presente no diabo. As pessoas são muitas vezes reduzidas à sua aparência física, ao seu exterior, ao seu rosto e à sua função. Excluindo os Cinco Meninos, que têm os nomes dos filhos dos Romanov, todos têm um nome que tem a ver ou com uma característica disforme ou com um acto. Isto relaciona-se com o mundo popular. Ainda hoje, nas aldeias, há pessoas que são conhecidas por ‘O Coxo’, ‘O Ceguinho’, ‘O Carpinteiro’. E há nomes que são quase juízos de valor: ‘A Solteira’, ‘O Enganado’, ‘O Burro’. Como se um determinado momento de uma vida fosse determinante.

Mas os mitos clássicos mantêm-se. 
O primeiro livro das Mitologias começa logo com a Mulher-Sem-Cabeça…, que vai tirando sangue do seu pescoço e o vai deixando no chão para saber o caminho de volta, numa referência ao Hansel e Gretel, que deixam cair migalhas de pão. E é o próprio sangue que permite que a mulher saia do seu labirinto. Há aqui uma mistura entre os mitos clássicos, referências a histórias tradicionais, lenga-lengas, adágios, repetições, mas também a estas figuras da aldeia, a maldade sem muito objectivo, que é talvez a maldade mais pura, é aquela não quer ganhar metro quadrado, não quer ganhar dólar.

E que está presente também no mundo infantil. É um campo que continuar a interessar-te?
Sim, a maldade, a perversidade infantil. E por vezes não temos a noção de como alguns jogos de crianças são altamente perversos. Por exemplo, o jogo das cadeiras: quatro cadeiras para cinco pessoas. A música está a tocar, de repente pára e o último a chegar às cadeiras fica em pé, sem cadeira. Parece uma brincadeira bastante lúdica, divertida, inocente até, mas basta pensar na presidente da Comunidade Europeia, quando foi à Turquia. De repente, havia duas cadeiras para três pessoas, parecia um jogo de crianças. Ela, como mulher, foi expulsa, não havia lugar para ela, estavam a recusar-lhe a hospitalidade. E isso é de uma violência que pode só ser percebida quando estamos diante de adultos. Foi o caso. De repente, a senhora estava ali de pé, com o seu rosto firme, a mostrar que estava a ser excluída e que isso era inaceitável.

Este é um livro terrível, com lances violentíssimos, como o do forno onde alguém está prestes a ser cozinhado para alimentar o diabo. Mas é um terrível que algumas vezes se abeira do cómico. Interessa-te explorar também este campo?
Interessa-me um ponto em que a tragédia se toca com o lúdico. A maldade infantil é uma maldade muito divertida, a lógica infantil é de uma maldade feita jogo. N’A Mulher-Sem-Cabeça… há uma situação em que os três filhos perguntam à mãe porque é que ela está sem cabeça, quem fez aquilo. Ela responde que foi o pai, porque ele queria mais espaço na cama. E isto pode ser divertido ou pode ser trágico; pode remeter para a violência doméstica ou para uma dimensão irónica, cómica até. Há aqui no Diabo também uma maldade absolutamente má e histórica, há variações, espécie de passagens que são possibilidades narrativas, com explicações possíveis.

E por isso o teu desapego pelo que está fixo? 
As mitologias são um espaço de liberdade absoluta. O grande clássico as Metamorfoses, do Ovídio, e a ideia de nada estar fixo é importante. Quando pensamos num romance mais do século XIX, é um romance em que as posições estão fixas, e o romance trata precisamente de uma pequena ou grande mudança de uma ou mais personagens. Nas Mitologias, há um mundo que nada tem a ver com a ideia do romance clássico. São pequenos fragmentos, pequenas histórias contadas e as personagens são móveis. Depois, há questões muito visuais. Se o diabo tem duas mãos esquerdas, não tem mão direita. Tem de haver uma mão direita do diabo. E o menino Alexandre, humano, faz de mão direita do diabo. Em princípio, se a mão direita for a menos hábil, é como se o diabo, tendo duas mãos esquerdas, fosse muito inábil para a maldade. Se é tão inábil, precisa da tal mão direita. Caso contrário, seria um trapalhão a exercer a maldade. O que me agrada aqui, e ao contrário do que acontece n’O Reino e no Aprender a Rezar…, em que há reflexão, é só contar episódios. Poderia fazer um ensaio sobre esta questão de o diabo não ter mão direita, mas conto como um narrador que quer deixar toda a reflexão para o leitor. Como um contador de histórias que não faz juízos de valor, conta uma história, depois outra…

A figura do santo não é atraente?
O diabo é uma figura muito mais atraente. Já o santo é uma figura apaziguada e localizada no espaço, e que conseguimos de certo modo compreender. O diabo é o que tem duas mãos esquerdas e pode fazer o imprevisível. É uma figura muito interessante, até em termos clássicos, porque era a configuração do mal. Em alguns nomes colocamos a questão do diabo, localizando-se em Hitler, eventualmente Estaline. Se o diabo é a fonte do mal, sabemos localizá-lo, quase como num eixo de ordenadas e abcissas, o XY. Se localizamos o mal num espaço, tudo à volta é o bem. Ora, para mim é muito claro que o mal não está localizado num ponto, é uma coisa que se dilui. Se há diabo, já andou por todo o lado, já se sentou em todas as cadeiras, já deixou os seus vestígios. Já não é possível fazer pontaria, tentar acertar-lhe. Se fosse no primeiro instante, quando o diabo caiu na terra, se pudéssemos tê-lo matado naquele momento … já não há essa possibilidade. Este livro também é muito sobre esta questão do mal.

Em contraponto com os apóstolos do livro, que nos surgem montados em bicicleta?
[risos] Esses tentam trazer algo de novo. Há aqui questões históricas muito claras: o homem de 1917. A ideia de criar um novo homem que, de alguma maneira, tenha já esquecido o diabo e as actividades diabólicas e possa começar a partir de uma nova bondade. A ideia destes novos homens era algo que estava muito claro no início do século XX, na Rússia, não apenas em termos geográficos mas também em termos científicos. Havia muito uma obsessão de criar um novo homem, mesmo geneticamente. Cem anos antes da clonagem, e todas estas técnicas, já se falava em fazer milhões de lenines, não politicamente. Na Rússia, já se investigava a possibilidade de multiplicar um homem de referência.

Sempre com a ideia de fundação por base?
Sim, a ideia de começar do zero, um pouco como na revolução francesa. Tentar que o calendário começasse do zero e, de repente, eliminar a contagem a partir de Cristo. Parece-me que o homem de 1917 também tentava isso. E de alguma maneira, também no século XXI, quando pensávamos que a grande maldade do século XX, a grande expressão diabólica, que podemos localizar de uma forma mais espacial e temporal no grande apogeu terrível do holocausto, começamos a perceber que não.

E estamos apenas no ano 22…
Sim, e o século XXI já está a parecer uma espécie de cópia não exacta, uma imitação meio fake do século XX: a pandemia, quase cem anos depois da gripe espanhola; agora o começo de uma guerra, uma espécie de primeira guerra mundial. E se pensarmos que em 1929 houve o grande crash bolsista, que levou ao crescimento do partido nazi… Faz-nos pensar no que virá aí, se a bolsa vai rebentar antes ou depois de 2029. Há algo aqui de muito terrível, e é um terrível que já vimos e julgávamos ultrapassado. É sempre arriscado falarmos sobre a notícia de hoje ou de ontem, mas a notícia de que a Rússia estava a deslocar dezenas de milhares de ucranianos para a Rússia, esta deslocação massiva é qualquer coisa que nos parecia impensável. Há no Diabo a questão do Grande Armazém, um povo que é armazenado, como se fosse um stock de objectos. Este Diabo é em parte um livro sobre o século XX e de repente percebemos que esta questão do povo armazenado continua aí. Estão a ser encaminhados para uma espécie de armazém que vai guardar aquelas pessoas-objecto para mais tarde, se forem necessárias, serem utilizadas. É terrível estar a contar uma história do século passado e de repente ela parecer-nos a história do presente.

Paradoxalmente, ou talvez não, não faltam lances no livro que nos fazem rir, quase que envergonhadamente. Que tipo de riso é este?
Um riso nervoso, que nos parece vergonhoso, sim. Há no humano um riso involuntário que nasce diante do terror imprevisto. Quando a segunda torre gémea caiu, lembro-me de ver uma pessoa próxima a rir-se; era um riso de susto. Como se, diante de algo verdadeiramente surpreendente, o corpo precisasse de fazer alguma coisa. É um riso que quase substitui o grito. É uma espécie de convulsão. Como se o riso rapidamente pudesse ser transformado em vómito horrorizado.

São algumas as estruturas que neste livro se repetem ritmicamente, como se estivéssemos diante de uma pauta. Uma delas é a janela, nas suas variações: janelas de aviões, de comboio, a janela do forno.. É uma inclinação?
A do forno é terrível. As crianças diante de um jogo, mesmo se macabro, alinham. Não querem fugir, querem jogar. E isto é das coisas mais assustadoras: como as pessoas podem ser enganadas, como se lhes fosse dada a hipótese da fuga, e essa hipótese é recusada pela atracção pelo jogo. Essa janela do forno do fogão, onde aparentemente tudo indica que alguém vai ser cozinhado para alimento do diabo, transforma-se num ponto de atracção. E é esse tipo de leitura que me agrada. Agora essa questão das janelas é bastante interessante e não tinha dado conta. A janela do forno quase se transforma na janela de um comboio e faz-nos pensar em imagens trágicas do século XX, como o adeus de absoluta despedida.

Curiosamente, é uma boneca que reverte aquela situação horrenda.
Uma das coisas que mais me marcou nos objectos que ficavam à entrada dos campos de concentração, que eram inúteis, era ver, entre pentes e coisas muito pessoais, algumas bonecas. A boneca como marca de infância, deixada para trás. Ainda hoje, nesta guerra da Ucrânia, temos essa imagem forte, terrível. Uma boneca, um pedaço de carrinho… indícios de alguém que foi atingido pela boca do diabo. Neste livro, a boneca é uma espécie de salvação: enquanto a menina a segura, tem nas mãos a sua infância protegida. Retirarem-lha é entrar num espaço de violência, porque é o seu espaço mais íntimo. Gosto muito de ir por diferentes caminhos. E este mundo das mitologias é um mundo que não poderia ser apresentado com outro tipo de escrita – a do Bairro, do Reino ou da Enciclopédia. É um mundo autónomo que vai, a cada passo, ganhando mais personagens. E nessa medida gosto do que se fez na contracapa do livro: percebemos que são dezenas e dezenas de personagens, que muitas vezes são espaços. Por exemplo, o Grande-Armazém é uma personagem, a Casa das Máquinas é uma personagem, o próprio chão (que provoca entorses nos tornozelos) é uma personagem.

O que é para ti uma personagem, afinal?
Personagem é aquilo que pode influenciar os acontecimentos: um objecto, um determinado tipo de solo, um animal, uma máquina. Esta ideia de reduzirmos as personagens a pessoas é característica de um romance do século XIX. A mitologia grega já tem isso, a ideia de que as personagens são todo o universo. Há aqui é a introdução da questão da máquina, o grande convidado das mitologias contemporâneas, porque nas mitologias clássicas a máquina aparece mas é ainda muito secundária, não é algo autónomo. O que aparece é o instrumento, que pode falar.

A maldade não é separável da ideia de metamorfose…
O mal seria fácil de eliminar se aparecesse sempre com o mesmo rosto, com o mesmo passo e com a mesma música. Se fosse anunciada como nos maus filmes: sabemos da chegada do mal pela banda sonora. Era óptimo que o mundo fosse assim. Sucede que não há essa música. Há algo também de perturbadoramente fascinante no diabo, no mal. O bem tem um caminho: o caminho recto. E a aprendizagem do recto é também uma aprendizagem ética. Etimologicamente, ‘correcto’ significa com a recta, o que acompanha a recta. O pequenino Alexandre vai aprendendo numa escola em que o diabo está presente. Há sempre na eficácia e na funcionalidade uma espécie de duelo com os outros. Esta competência / competição, no limite, é uma competição que devora o outro. Não por acaso, o diabo tem fome. Há uma outra personagem, nas Mitologias, que é o Come-sem-Fome, que é um nome perturbador e uma imagem fortíssima. Comermos quando temos fome já é qualquer coisa de terrível; alguém que come sem fome, entra no horror. Eu diria que o diabo é um come-sem-fome, insaciável.

Passados estes 20 de livros publicados, como é que vês o percurso dos teus livros, a sua irradiação internacional? 
Para mim próprio, continua a ser algo de surpreendente, porque os livros não são best sellers, não são romances (em quarenta e tal livros, tenho uns cinco romances). Boa parte dos livros não sei bem o que são, serão uns animais quaisquer, híbridos, estranhos, nem me interessa muito saber o que são. Quem os vai publicando são editoras literárias, por vezes pequeninas. O importante é que, de repente, alguém no mundo se interessa por eles. E isso deixa-me perplexo mas também esperançoso. A ideia de que é preciso escrever romances não faz muito sentido. Eu escrevo o que preciso escrever, o que quero escrever, nunca fiz nada para ter leitores, embora os respeite muito. E tenho leitores muito bons, atentos, que me fazem perguntas incríveis. Alguns dos meus leitores são grandes escritores. Mas sigo apenas o meu caminho, independentemente do que acontece.

Não te parece que boa parte dos romances que hoje se publicam poderiam facilmente ser atirados para as margens da irrelevância?
Eu acho muito triste esta ideia de se reduzir a literatura a romance. E não só a literatura, também o cinema. Porque é que nós vimos um filme do Tarkovsky e ficamos absolutamente destruídos, avassalados com aquela potência? Para ele, o cinema vinha da fotografia, cada fotograma pode ser parado, exibido e era uma imagem incrível. Para ele era muito claro que o cinema pode contar uma história, mas não é para contar histórias. A grande essência do cinema é a imagem, a do teatro é a presença. E a da literatura é a potência da linguagem. E portanto o que é terrível é que quase tudo está rendido a contar histórias, muitas vezes para adormecer, quase como se faz aos meninos. Há muito a tradição de se lerem histórias para as crianças adormecerem. Sinto que agora se contam histórias para os adultos dormirem, o que me parece um absurdo. 

Continuas a ler o Cebolinha para adormecer?
Nem por isso [risos]. De manhã, e por norma, como a minha cabeça está excitada, atenta, leio ensaio. É-me muito difícil ler poesia ou ficção de manhã, em que preciso de uma carga dura. Da mesma forma, à tarde e à noite não consigo ler filosofia ou ensaio porque o meu cérebro já está noutro estado, mais relaxado. A leitura não é uma distracção, é uma acção. E só podemos agir se na leitura houver estímulos. E é interessante ver que tenho uma categoria de leitores-activos, que fazem coisas com o que leram: dança, peças de teatro, objectos de artes plásticas, etc.

A não-reverência tem sido fundamental no teu sucesso literário?
Odeio a palavra sucesso. Em termos literários, acho que os livros são corajosos, mas não aprecio aquela coragem que se anuncia com trompete e com grandes festas. E creio que essa não-reverência acompanha com a delicadeza e com o respeito. Acho que Os Lusíadas é um livro incrível, é um portento de linguagem, consegue dizer, soando. Houve alturas em que os lia alto, como um louco. Se a reverência for vista como um baixar a cabeça, deixar de lado ou intocável no museu, isso não me interessa absolutamente. Interessa-me a delicadeza que pega no antigo e no clássico, no admirável e tenta voltar a ele de uma forma diferente. É muito a etimologia da palavra ‘original’. Ser original parece uma coisa que atira para o futuro, algo que ainda não foi feito, mas que nada verdade significa voltar à origem – de outra maneira. Eu não olho para os clássicos como qualquer coisa que está numa vitrine. Como criador, diante de um clássico o que peço é a energia que me transmite. Uma das linhas que surge nas minhas séries é precisamente ‘Estudos Clássicos’, um tanto irónica, e que integra Os Velhos Também Querem Viver e Histórias Falsas. Como é que eu estudo, enquanto escritor? Fazendo um livro, a minha investigação é escrever. Não sou como aqueles adolescentes que querem matar o pai, o avô… eu quero conservá-los. Só um tonto é que olha para um livro como, por exemplo, as Cartas a Lucílio, do Séneca, que continua a ser republicado, e acha que aquilo está ultrapassado. 

Foi pelos clássicos que começaste as tuas leituras?
Sim, quer os clássicos gregos e latinos, quer os clássicos recentes. O olhar sobre aquilo que resistiu a muitas gerações é um olhar com muito respeito. Não me agrada aquela ideia arrogante do começar de novo. Tudo o que está para trás e resiste é porque é impressionantemente forte. Diante de qualquer livro, quero localizar o que é forte. E nesse sentido, o que não me estimula não me deve fazer perder tempo. Sou um leitor caótico. Na minha própria forma de ler há também uma leitura saltitante. É por isso que a divisão em géneros é estranha. Estamos sempre a ser bombardeados com classificações canónicas. De cada vez que dizemos ‘isto é um ensaio’ ou ‘isto é poesia’, estamos a retirar possibilidades à linguagem. Os géneros literários são muitas vezes palas de cavalo. O meu material de trabalho é o alfabeto, que tem uma potência gigantesca. O Roland Barthes diz uma coisa bastante simples mas interessante: escrever é um verbo intransitivo, que é aquele verbo que não precisa de ‘o quê’? Eu estou a escrever, ponto final. Quando alguém pergunta ‘o quê’ já esta a limitar as possibilidades da linguagem. E o que vou tentando é explorar estas possibilidades da linguagem de diferentes maneiras. 

Em duas décadas, publicaste já mais de 40 títulos. Que balanço fazes destes anos?
Passaram muitos anos… há uma coisa de que me orgulho: não me vendi. Continuo a fazer o que quero, a seguir o meu caminho. Quando penso nos meus 18 anos, antes daqueles trinta, quando publiquei, e que é de longe o meu período mais importante – li muito e grandes livros, li como um animal… Esse período de formação, que é o período do bunker, do isolamento, é decisivo. Há em mim um instinto de bunker, que se mantém, de concentração – etimologicamente, um centro. Mantém-se o mesmo centro: o livro. Fui dizendo não a uma série de coisas: convites para cargos, para coisas políticas, coisas que não posso dizer… Há um currículo de nãos e eu orgulho-me desse meu currículo invisível de nãos. O diabo vai encontrando sempre muitas formas de aparecer…. é fácil ser convicto aos 18 anos. À medida que o tempo passa, o diabo vai aparecendo em cada cruzamento. Acho que tenho sabido fintá-lo. A necessidade de escrever e de isolamento é quase orgânica. É raro, mas se há um dia em que sou só exterior, ao final desse dia fico irritado, apetece-me gritar, sinto-me maltratado.