por João Sena
Há 12 anos ninguém percebeu, ou não quis perceber, como é que o Mundial de futebol de 2022 foi parar às mãos de uns sheiks de um minúsculo país do Médio Oriente. Alguma imprensa, sobretudo francesa – mais tarde viria a saber-se porquê – questionou a escolha e deu pistas, só que ninguém deu grande importância a mais uma manobra de bastidores de Joseph Blatter (então presidente da FIFA) e dos seus acólitos. O tempo foi passando, as acusações de corrupção, de condições indignas de trabalho e de violação dos direitos humanos foram aumentando. Alguém acordou para a vida e percebeu que era politicamente correto questionar tudo e todos e o Qatar 2022 passou a ser visto como o pior Campeonato do Mundo. As autoridades em Portugal foram atrás da onda e – como o Nascer do SOL apurou junto de fonte oficial – o país vai parar à lista negra do Qatar mal termine o Mundial, o que poderá ter consequências a nível político e económico e condicionar a circulação de pessoas entre os dois países. As declarações do Presidente da República sobre os direitos humanos feitas numa conferência, em Doha, à margem do jogo entre Portugal e o Gana, embora tenham sido mais suaves, caíram mal no Governo qatari, que já tinha considerado «hostis» as anteriores declarações de Marcelo Rebelo de Sousa e do primeiro-ministro António Costa. Aliás, o embaixador português em Doha, Paulo Pocinho, foi imediatamente chamado ao vice-primeiro-ministro do Qatar.
O incidente, sabe também o Nascer do SOL, está a obrigar o corpo diplomático português a envidar esforços para que a situação não escale e se mantenha o bom relacionamento bilateral. Note-se que, há anos, o Governo português solicitou a ajuda do Qatar na compra de dívida pública nacional, numa altura em que o país estava à beira da bancarrota.
Mas não é só Portugal que está na mira do Qatar, que não gostou também das críticas públicas da Dinamarca, da Alemanha e da França – sendo que os franceses ainda recentemente foram ao Qatar pedir ajuda energética.
Futebol vs economia
Agora que já se joga no Qatar, a questão que se coloca é saber por que razão 31 países e respetivas federações de futebol aceitaram participar na competição conhecendo as idiossincrasias do país anfitrião. Será porque há muitas e grandes empresas a fazer bons negócios com os Emirados? É que manter relações privilegiadas com estados autocráticos exige sabedoria. Portugal não é exceção. O embaixador do Qatar em Portugal afirmou, recentemente, à Lusa que as «relações económicas entre os dois países têm testemunhado um crescimento constante nas últimas décadas», e lembrou o facto de o Estado do Qatar deter mais de 2% da EDP – Energias de Portugal.
Se analisarmos o que se passa em matéria de direitos humanos e liberdades, a maioria das nações ficaria porventura impedida de organizar grande eventos internacionais. Nuno Cunha Rodrigues, professor associado da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, sublinha que «cerca de metade dos países membros dos Nações Unidas não são democracias, muitos são estados autocráticos. Há países que deixam para trás certos valores para manter boas relações com esses estados. A realpolitik sobrepõem-se ao direito internacional».
«O Qatar não é caso único. O desporto é neutral e, por isso, os países autocráticos procuram atrair grande eventos internacionais para branquear a sua imagem e ganhar projeção mundial», frisou o professor.
O reino do Qatar gastou 220 mil milhões de euros numa competição moderna, luxuosa e sumptuosa, capaz de mudar a imagem do país, conhecido por produzir gás natural e petróleo e impor uma presença ao mundo mais favorável. A diplomacia desportiva começou por garantir, em 2010, a organização do Mundial de futebol, e a seguir um fundo de investimentos ligado ao Governo do Qatar comprou o Paris Saint-Germain, uma operação económica realizada em 2011 com o agreement do Presidente francês da altura, Nicolas Sarkozy, que retirou o apoio à candidatura dos EUA para alinhar pelo Qatar!
Sempre a corrupção
O modus operandi da FIFA para escolher os países sede dos Mundiais de futebol tem muito que se lhe diga. O processo ‘complicou-se’ desde que João Havelange trouxe grandes empresas para o futebol no Mundial de 1974, na Alemanha.
O Qatar foi uma escolha polémica. Há fortes indícios de que o Governo pagou 880 milhões de euros na compra de votos que garantiram a organização do Mundial em 2022, o que levou as autoridades judiciais de vários países a abrirem processos de averiguação e alguns membros da FIFA que votaram a favor do Qatar foram condenados por corrupção.
Mas o Qatar não é caso único. O Mundial da Rússia não esteve isento de suspeitas e a recente declaração do ex-presidente da FIFA, Joseph Blatter, considerando que «o Qatar foi um erro, estava previsto o Mundial ser realizado nos Estados Unidos da América» só adensou as suspeitas. A Alemanha também não ficou bem na fotografia. Franz Beckenbauer, presidente do comité organizador do Mundial da Alemanha em 2006, foi investigado por suspeitas de lavagem de dinheiro e compra de votos. A própria federação alemã confirmou que Beckenbauer recebeu 5,5 milhões de euros de um dos patrocinadores do torneio, mas o ‘Kaiser’ nunca declarou esse dinheiro. Essa quantia era, supostamente, para gastos com a cerimónia de abertura da prova. Na votação final, a Alemanha ganhou o direito a organizar o campeonato do mundo de futebol com um ponto de vantagem sobre a África do Sul, após a abstenção do neozelandês Charles Dempsey.
Em relação à exploração de trabalhadores migrantes no Qatar, alguém dúvida que essa exploração iria acontecer mesmo sem Mundial? Bastaria haver hotéis de luxo e outras sumptuosidades para construir e os desgraçados dos operários lá estariam para jornadas de 18 horas. É aqui que começam as polémicas. A Amnistia Internacional (AI) diz que morreram 15 mil trabalhadores migrantes na construção dos estádios e infraestruturas para o Mundial. Outras organizações falam em 6500 mortos. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) considera que são números enganadores. O delegado da OIT no Qatar, Max Tunon, afirmou que os números da AI pecam por excesso: «Os 15 mil mortos referidos pela Amnistia incluem todas as pessoas que morreram no país e não apenas os trabalhadores envolvidos na construção dos estádios. É um número global, inclui pessoas que estavam a trabalhar ou não; inclui crianças e pessoas com mais de 60 anos. São números exagerados», disse à RTP. Max Tunon explicou os dados apurados pela OIT: «Concluímos que, em 2020, morreram 50 trabalhadores de vários setores relacionados com a construção dos estádios. Registámos ainda 506 feridos graves e 37 mil feridos ligeiros». Todos aqueles que trabalharam, durante anos, na construção dos estádios, e as famílias dos que morreram sentir-se-ão confortáveis com a solidariedade internacional, mas devem também questionar por que razão nenhum país abriu mão de participar no Mundial como forma de protesto. Verdadeiramente, ninguém quis ir contra a paixão pelo futebol. Alguns aproveitam o evento para, em nome do país, neutralizar a extensão das críticas e fazer parte do espetáculo.