Costa usa Marcelo para se assumir como vítima

O mecanismo proposto por Costa, afinal, não passa de um questionário aos putativos governantes. E os casos continuam a suceder-se no Governo e no PS. O PM lembra as anotações do professor Marcelo à Constituição. E o PSD também vê um dos vices da sua bancada, muito próximo de Montenegro, envolvido na ‘Operação Vórtex’.

Costa usa Marcelo para se assumir como vítima

A montanha pariu um rato. Esta foi a forma como os partidos de oposição, da esquerda à direita, reagiram à proposta de vetting saída do Conselho de Ministros de ontem. O mecanismo de escrutínio, apresentando pela ministra da Presidência, Mariana Vieira da Silva, é nada mais nada menos que um questionário, constituído por 36 perguntas, que incluirá um compromisso de honra. Após preenchidos, os questionários serão recolhidos pelos ministros, que depois os enviarão ao primeiro-ministro, podendo ainda serem remetidos à avaliação do Presidente da República.

Segundo o Governo, a informação recolhida incidirá sobre as áreas em que o nome proposto trabalhou, as áreas de interesse, a condição patrimonial, a fiscal e também responsabilidades penais e outros processos. O documento será público, mas as respostas não serão publicitadas.

Do lado da oposição, fala-se numa «encenação», «uma cortina de fumo inútil» e «uma mão cheia de nada», que não define as consequências em caso de um governante incorrer numa mentira, omissão ou falsidade e que serve apenas para «desresponsabilizar o Governo», uma vez que o processo não deixa de funcionar num circuito interno.

Mariana Vieira da Silva adiantou ainda que é natural que o próximo membro do Governo a ser nomeado já passe por este novo instrumento. A propósito, foi questionada sobre Pedro Miguel Magalhães Ribeiro, um assessor do primeiro-ministro que pediu a exoneração do cargo depois de ter sido condenado por violação dos deveres de neutralidade e imparcialidade, por ter usado canais de comunicação da autarquia do Cartaxo, que liderou entre 2013 e 2021, para fazer campanha eleitoral. A ministra recusou comentar por não ter qualquer informação sobre o assunto.
Este é apenas mais um caso dos inúmeros que vieram a público esta semana e que atingem tanto o Governo como o PS. Um outro autarca socialista, mais precisamente o presidente da Câmara de Condeixa-a-Nova, Nuno Moita, pediu a demissão como líder da Federação Distrital de Coimbra do PS, para «proteger a imagem do partido», após ser condenado a uma pena suspensa por favorecimento de empresas quando era vice-presidente do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça (IGFEJ). 

Costa escuda-se em anotações do professor Marcelo
Com apenas uma semana de intervalo, o primeiro-ministro transfigurou a tónica do seu discurso. Se na semana passada «os casos e casinhos» no Governo, que até aqui não passavam disso, não eram tema com os portugueses que o interpelavam na rua, no debate parlamentar desta quarta-feira, onde anunciou que já tinha submetido uma proposta de mecanismo de escrutínio ao Presidente da República, a sucessão de casos no seio do Executivo já era um «problema» que é «censurado pelos portugueses» e do qual retira uma «lição».

Não se sabe se foi a indignação das pessoas, os avisos de Marcelo ou as tensões internas no PS que o obrigaram a refazer o discurso, mas António Costa acabou a admitir que se rodeia de pessoas que cometem ilegalidades, não chegando, contudo, ao ponto de assumir culpas.

Ainda assim, não teve medo em abordar os temas mais inflamáveis, como o caso da ex-secretária de Estado do Turismo ou a indemnização à ex-secretária de Estado do Tesouro. Aliás, as palavras mais duras, usou-as precisamente sobre as duas ex-governantes. 

Sobre Rita Marques, que não cumpriu o período de nojo e que ia assumir funções numa empresa à qual concedeu o estatuto de utilidade turística, Costa disse ter uma certeza de «99,9%» de que a situação era «ilegal» e «de que não corresponde à ética». E ainda aceitou pedir a reavaliação do estatuto aprovado pela ex-secretária de Estado do Turismo. Entretanto, a antiga governante recuou e anunciou que não vai aceitar o convite que lhe foi dirigido pela  Fladgate Group, que detém o projeto World of Wine, onde ia assumir funções.
Quanto a Alexandra Reis, também foi implacável, defendendo que a antiga secretária de Estado do Tesouro devia ter devolvido parte da indemnização recebida quando saiu da administração da TAP para ser presidente da NAV e antecipando que aí houve uma «violação» do Estatuto do Gestor Público, algo que só a auditoria encomendada à Inspecção-Geral de Finanças poderá confirmar.

Ao criticar as secretárias de Estado que saíram, o primeiro-ministro procurou proteger todos os restantes membros do Governo, para a isto ainda juntar o mecanismo de escrutínio prévio que prometeu criar, no anterior debate, para aferir condições éticas e políticas dos nomes designados para integrar o Executivo.

A pretensão inicial de partilha de responsabilidades entre primeiro-ministro e Presidente da República quanto às nomeações não foi bem recebida em Belém, com Marcelo Rebelo de Sousa a vir a público para frisar que a escolha dos membros do Governo cabe ao primeiro-ministro e que o regime não é presidencialista.

Uma solução diferente foi encontrada, mas Costa ainda quis dar uma lição de constitucionalismo, apoiando-se numa edição da Constituição comentada pelo «professor Marcelo Rebelo de Sousa», como fez questão de referir. «‘O Presidente dispõe de um poder substancial e não apenas formal de controlo político dos membros do Governo propostos pelo primeiro-ministro’», leu perante os deputados.

Um vórtex de políticos apanhados pela Justiça
No debate de quarta-feira, na bancada social-democrata, estava sentado o vice-presidente do grupo parlamentar do PSD Joaquim Pinto Moreira, alvo de buscas domiciliárias judiciais na manhã de terça-feira, no âmbito da ‘Operação Vórtex’. Mas ninguém dentro do plenário ousou tocar no assunto, até porque o tiro rapidamente faria ricochete. 

No centro da investigação está também o presidente da Câmara de Espinho, Miguel Reis, que renunciou na quinta-feira ao mandato autárquico e às funções que exercia no PS, após ser detido na terça-feira pela Polícia Judiciária (PJ) por suspeitas de receber contrapartidas para facilitar o licenciamento de obras no concelho. Na operação, foram ainda detidas mais quatro pessoas, o chefe da divisão de urbanismo da autarquia, e três empresários.

Já Pinto Moreira, antecessor de Miguel Reis na Câmara de Espinho e também visado na investigação, não foi constituído arguido, uma vez que o Ministério Público (MP), escrevem tanto a CNN Portugal como o JN, quis evitar fazer o pedido de levantamento de imunidade parlamentar antecipadamente por receio que os deputados não cumprissem sigilo sobre o caso e comprometessem a investigação em curso. Isto porque um pedido deste género quando dá entrada no Parlamento é encaminhado para o gabinete do presidente da Assembleia da República, que depois o faz chegar à Comissão de Transparência e Estatuto dos Deputados. Comissão essa onde curiosamente o deputado social-democrata é suplente.

Ao Nascer do SOL, fonte próxima do gabinete de Augusto Santos Silva diz ver com «normalidade» o facto de o MP se ter precavido e rejeita qualquer leitura de desconfiança nos deputados da comissão em causa. O Nascer do SOL também procurou obter uma reação da deputada socialista Alexandra Leitão, que preside à Comissão de Transparência e Estatuto dos Deputados, mas não obteve resposta.

O envolvimento de Pinto Moreira na ‘Operação Vórtex’ é também motivo de preocupação para os sociais-democratas. O presidente do partido, Luís Montenegro, que se manteve em silêncio sobre o assunto até esta quinta-feira à noite, estava a ser pressionado para afastar o seu companheiro de longa data e antigo sócio de escritório de advocacia. E foi mesmo esse o desfecho: em entrevista à SIC, o líder dos sociais-democratas avançou que Joaquim Pinto Moreira iria renunciar à sua posição de vice-presidente do grupo parlamentar do PSD e como presidente da comissão de revisão constitucional.
A ligação entre os dois tem raízes em Espinho, câmara que reconquistaram juntos em 2009, quando Pinto Moreira foi cabeça de lista à autarquia e Luís Montenegro foi eleito presidente da Assembleia Municipal. 

Anos mais tarde, em 2021, por altura das diretas entre Rui Rio e Paulo Rangel, Luís Montenegro liderou uma lista de delegados na concelhia de Espinho, que incluía nomes próximos dos dois candidatos. O seu posicionamento nesta disputa só seria conhecido após saírem os resultados. Em Espinho, Rio ganhou com uma larga vantagem, levantando suspeitas que tinha havido movimentações no terreno para tirar o tapete a Rangel. As listas às legislativas confirmariam isso mesmo: havia pessoas próximas de Montenegro em lugar elegível, e uma delas era precisamente Joaquim Pinto Moreira, pelo círculo do Porto.

As relações entre os dois não se ficam apenas pelas lides políticas. A Sociedade de Advogados Sousa Pinheiro & Montenegro (SP&M), de que Luís Montenegro foi sócio-fundador, obteve, entre 2014 e 2018, um total de seis contratos por ajuste direto do município de Espinho, liderado na altura por Pinto Moreira.