“Entristece-me ouvir o Papa dizer mal dos padres”

Os católicos mais fervorosos devem lembrar-se de Edgar_Clara quando este lia a missa que dava na televisão ao domingo. Antes disso, foi diretor do jornal católico A Voz da Verdade, tendo depois desempenhado funções de porta-voz do Patriarcado de Lisboa, onde se empenhou na vinda a Portugal do Papa Bento XVI, «o mais moderno», nas…

“Entristece-me ouvir o Papa dizer mal dos padres”

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Ao dar esta entrevista, ninguém o pode afastar da Igreja, a não ser instaurar um processo e mandá-lo para Roma?

Não estou a cometer nenhum delito. Dentro da Igreja existe a liberdade de opinião. Habitualmente posso dizer que escrevo, que dou entrevistas há muitos anos e nunca senti censura dentro da Igreja. Dentro da Igreja, a pessoa que mais me tem censurado, até hoje, sou eu próprio. Estou constantemente a censurar-me. Porquê? Porque sei que preciso de dizer as coisas corretas para não ser injusto.

Foi à Via Sacra na sexta-feira, em Lisboa?

Tinha uma catequese, não pude ir.

Uma colega, que é católica, disse-me que talvez tenha sido a que teve mais gente, até para homenagear o padre Mário Rui – afastado por estar na lista da Comissão Independente –, que esteve presente.

Foi uma manifestação legítima, de quem não está a compreender o que se está a passar. Não há apoio nenhum ao padre Mário Rui! Não há censura nenhuma ao padre Mário Rui! Não há apoio nenhum ao D. José Ornelas, nem aos bispos, nem à Comissão Independente. Há um desconhecimento, dentro e fora da Igreja, sobre qual é o papel deste estudo e os critérios que levaram à formulação desta lista. Esse desconhecimento leva-nos a dizer: ‘Alguém tem de fazer alguma coisa’! Expliquem-nos a nós! O Dr. Daniel Sampaio que se sente com os padres, sente-se comigo, e explique-nos. Penso que na sexta-feira o que aconteceu não foi nenhuma manifestação de apoio, foi simplesmente um pedido que nos expliquem! Que não exponham a vida das vítimas, que não exponham a vida dos ex-padres e dos padres e daqueles que não se podem defender, que estão mortos, que são 40% da lista que nos entregaram. Que expliquem os critérios: porque validaram, porque estão lá estes nomes, que expliquem! Não podem agora dizer aos padres que levantem o sigilo profissional, mas a Comissão Independente não vai levantar o sigilo. Não vai entregar nada à Polícia Judiciária! Isto constitui um crime terrível, chamado difamação. Porque se levanta uma suspeita sobre uma determinada pessoa…

Acha que não há padres que tenham cometido estes crimes?

Não acho. Há padres que cometeram e devem ser afastados, devem ser censurados, devem pagar por aquilo que fizeram e devem ser presos, como aliás tem acontecido, e não devem poder voltar ao exercício público do seu ministério. Esta questão da Via Sacra da última sexta-feira é, na minha opinião, a manifestação mais clara de que a Comissão Independente não explicou com clareza os critérios que levaram a constituir esta lista. Dou-lhe um exemplo: sempre disseram que era uma lista de padres, de possíveis padres abusadores no ativo ou de alegados padres abusadores no ativo. Depois vieram dizer o dito por não dito, quando os bispos disseram que 40 por cento estavam mortos, que 20 por cento ninguém sabe quem são. Os nomes deles não constam dos nossos arquivos. Afirmaram desde o princípio que sempre quiseram meter os padres abusadores, vivo e mortos? Se isso é verdade, se não era uma lista de cem padres pedófilos que andavam por aí à solta, mas que incluía também os mortos, por que foram incluir os mortos para entregar na lista ao Ministério Público? Estavam à espera de que o Ministério Público fosse ressuscitar os padres mortos? O que escreveram na página 457, é claro: ‘A lista de alegados abusadores ainda vivos’. Está claro! O que eles escreveram foi uma lista de alegados abusadores ainda vivos.

Desses 100 quantos estão vivos?

Dos 100 que não são 100, são apenas 93, 39 morreram e 15 ninguém sabe quem são. Portanto, 50% não estão no ativo. Mas há alguns que foram expulsos da Igreja, deixaram de ser padres, não sei dizer quantos. O que sabemos é que aqueles de que havia matéria de facto são doze. Os tais que foram suspensos! O estudo fez com que a Diocese de Coimbra, que recebeu um padre que estava na lista pedisse explicações à Comissão Independente. A diocese disse que, tendo em conta os dados que a Comissão lhe tinha dado, ‘tinham concluído que a situação não se enquadrava em qualquer tipo de abuso sexual de menores nem de outras pessoas’. Como é que é possível que esteja no meio de uma lista de padres supostamente abusadores alguém que cometeu alguma coisa que não se inscreve dentro da lista de padres abusadores e ou de menores ou de qualquer outra espécie. Como é isto é possível? A minha indignação advém, não tanto por mais nada, mas por não compreender, por não terem sido fornecidos os dados suficientes para eu poder pensar com clareza.

No caso do Padre Mário Rui, penso que o conhece.

Desde os meus dezasseis anos.

O que lhe ocorreu quando ouviu o nome dele?

De me lembrar, enquanto adolescente, que o Padre Mário, mesmo quando nós íamos com o pré-seminário para aqui e para ali, mantinha sempre uma distância sobre nós. Absolutamente admirável! Nós podíamos dizer que eu sou muito mais afetivo do que o Padre Mário Rui. Gosto de puxar os cabelos aos miúdos, gosto de puxar as orelhas e brincar com eles. Gosto de fazer de gato ou de fazer de cão. O Padre Mário sempre teve uma atitude correta, corretíssima.

Está a dizer que puxar os cabelos, fazer de gato é uma atitude menos correta?

Pode ser alvo de más interpretações. Hoje, já me retraio muito mais a brincar com uma criança. É aquilo que dizia: a pior censura que nós podemos ter é a autocensura, que é a única que nos pode regular.

Ficou chocado com o nome dele aparecer na lista?

Devo dizer que acho que é o ponto de inflexão deste estudo. Nós não podemos permitir, em caso algum, que, com uma denúncia anónima, se possa afastar um padre. Devíamos ter maior fortaleza para dizer que a PIDE acabou, o Estado Novo acabou. Há direitos e garantias para cada um. E mesmo que venham nas diretrizes do Papa um afastamento de um padre por uma denúncia anónima, é de uma gravidade que me mete muito medo. Mete-me realmente medo! Mete medo falar contigo! Honestamente, tenho mais medo de dar esta entrevista e de que alguém apresente uma queixa anónima contra mim do que tenho medo que um bispo me chame à perna por aquilo que eu digo… Tenho mais medo das situações que se criaram pela falta de liberdade da sociedade contemporânea do que a falta de liberdade que temos dentro da Igreja, que é nenhuma! Nunca senti falta de liberdade dentro da Igreja para dizer o que penso! Mas agora sinto muita falta de liberdade! Não posso tocar numa criança, não posso brincar com ela. Sei lá, vou na rua, falo com todos os turistas. Digo bom dia, boa tarde a todos os turistas, porque para mim a Mouraria é a minha aldeia e ninguém entra na minha aldeia sem eu dizer bom dia, boa tarde a toda a gente. Se um turista entra com uma criança, eu brinco, faço de gato ou de pato, mas penso sempre: e se a pessoa agora não quer que lhe toque na criança?

As diretrizes do Papa são muito claras. Os padres acusados, mesmo anonimamente, devem ser afastados provisoriamente.

Isto é muito motivado pela forma como nós estamos a conduzir a própria Igreja no tratamento de todos estes casos de pedofilia. Isto não devia de ser um estudo por país: devia ser uma coisa da Igreja Universal.

Mas entregues à Justiça, também.

Como é evidente. Mas o problema é que a Justiça não faz nada. Dou-lhe um exemplo. Não está feito, não está estudado o número de padres que está nesta lista dos 100 e que já tiveram os devidos processos canónicos e civis! E qual foi o destino? Por que não foram para a frente? Por que não foram presos? Por que não foram a julgamento? É preciso ver, porque não são só os mortos, não são só os que foram afastados, não são só aqueles que ninguém conhece, mas dentro daqueles que a Igreja publicou, da lista de nomes, há uma parte que se diz que já foram civilmente ou canonicamente resolvidos. Se foram resolvidos, devem pagar novamente por uma coisa que já foi resolvida ou foram resolvidos porque não era crime nenhum?

Que opinião tem dos membros da Comissão Independente?

Não tenho qualquer ideia. Sou apenas o padre de uma aldeia chamada Mouraria, Castelo e Alfama. Faço a minha vida por ali, escrevo umas coisas, gosto de ler uns livros e depois tenho uma vida social mais ou menos intensa, conforme os livros me deixam. Agora não tenho qualquer opinião acerca destas pessoas. Aliás, previamente tinha e tenho grandes referências, como os bispos,do Dr. Pedro Strecht, que, lamentavelmente, na minha opinião, não tem dado nenhuma entrevista esclarecedora, dado que foi ele quem criou a equipa. Ele será a peça chave para nos ajudar a compreender esta incompreensão da nossa parte ou da minha parte, pelo menos, já que não falo pelos meus colegas, falo por mim. Devo dizer que li muitos livros do Dr. Daniel Sampaio, principalmente sobre a questão da adolescência, quando trabalhei durante cinco anos, pelo menos, no setor da catequese. Há uma coisa que me deixa triste. No final disto tudo, eu sei que o Dr. Daniel Sampaio vai ler esta entrevista e vai dizer assim: ‘Este é daqueles que pertence à Igreja antiga e não é da Igreja renovada’. Como ele disse no outro dia: ‘é preciso uma Igreja renovada’. Mas uma Igreja renovada é uma Igreja que não prescinde da sua inteligência! E, sinceramente, não quero prescindir da minha inteligência para poder continuar a viver dentro da Igreja e dentro deste país.

Ainda é responsável por nove paróquias?

Nove igrejas, tenho quatro paróquias. Uma paróquia engloba uma área, no meu caso é uma areazinha. A Mouraria tem duas paróquias, São Cristóvão e Socorro.

Em 2020 disse-me que, em média, tinha de 10 a 12 pessoas por missa. E agora?

E agora também. Não houve uma diminuição porque as minhas, com 90 anos, ainda vãa todas ali à missa.

Na altura disse que a maioria era estrangeira.

Tem diminuído isso. Por exemplo, a seguir à pandemia tive sorte, porque eu, como sou liberal e não sou propriamente uma pessoa de mente fechada – tanto dou a comunhão na boca como dou a comunhão na mão, como dou de joelhos –, para mim foi uma sorte, porque, como a maioria dos padres não permitia a comunhão na boca, eu tinha mais pessoas. Infelizmente acabou a covid e os confinamentos e agora tenho outra vez menos pessoas, mas são mais ou menos as mesmas.

São muitos os padres e bispos que dizem que há uma diminuição de fiéis e de esmolas, até pelos escândalos de pedofilia.

Não sei se há menos gente. Quais são os dados? Se a Igreja deixou de fazer CENSOS desde há 20 anos? O último CENSOS que fizemos na Igreja Católica, se a memória não me falha, foi em 2001. Tudo o que houve a partir dali foi estudos sociológicos, mas que não condizem com o número real. Até 2001 nós fazíamos de dez em dez anos.

Todos os bispos e padres têm dito o contrário, que há menos fiéis e menos esmolas.

Não sei onde é que eles se podem valer disso.

Nos seus textos tem dito que há uma guerra de 100 em 100 anos contra a Igreja e diz estamos nessa fase agora

Disse isso, que só de 100 em 100 anos.

Também disse que a última foi em 1910.

Podemos dizer que a próxima pode estar para vir.

Acha ou não que há quem queira denegrir a Igreja?

Quem neste momento denegriu a Igreja foram os padres que abusaram de crianças. Portanto, sempre defendi, ao longo de toda a minha vida, que a verdade deve vir ao de cima. Isso é uma coisa muito importante, mesmo que sejam os meus pecados. Quem denegriu a Igreja em primeiro lugar, fomos nós. Nós cristãos, nós padres! Portanto, não me parece que haja uma perseguição que esteja fora da Igreja. Aliás, é muito curiosa a palavra do Papa Bento XVI quando veio a Portugal, há 13 anos. Quando falava no segredo de Fátima, dizia: ‘Nós pensamos muitas vezes os inimigos da Igreja como estando de fora da Igreja. Mas, neste momento, os inimigos da Igreja estão dentro da própria Igreja’. A relação do pecado que está dentro da Igreja é algo que é inimigo da própria Igreja. Nós precisamos de o erradicar. Precisamos de estripar aqui de dentro este mal. Sabendo uma coisa que nunca vamos retirar o pecado de cada um dos homens que compõem a Igreja. Agora, que há um aproveitamento claro desta situação para poder denegrir, para maltratar a Igreja, não tenho a menor dúvida!

Pessoas de fora da Igreja.

De fora e de dentro da Igreja! Nós temos que pensar numa coisa… qual foi a Instituição em Portugal que teve, até hoje, a coragem de pedir um estudo sobre abusos sexuais dentro do seu próprio seio? Que conheça, até hoje, foi a Casa Pia há vinte anos, depois do escândalo, e a Igreja Católica. Não tenho notícia que outra Instituição tenha feito o mesmo!

Pedro Strecht esteve nas duas.

Sim. Não tenho notícia até agora que haja alguma Instituição que tenha feito uma auditoria interna sobre si própria.

Sim, mas também não há nenhuma Instituição onde  é suposto as pessoas terem uma confiança absoluta, como a Igreja, o último bastião da confiança das pessoas. A Igreja é suposto ter um papel diferente na sociedade.

Um papel diferente das escolas, das IPSS, das Misericórdias? Cada Instituição, cada organismo faz parte deste corpo que é a sociedade e, portanto, todo o corpo da sociedade está articulado. Claro que quando existe um cancro numa parte desse corpo, o corpo vai começar a definhar. E, aqui, é muito claro que a Igreja Católica teve esta coragem. Reconheço no Conselho Permanente e na Conferência Episcopal esta coragem de enfrentar este problema na Igreja.

Mas é contra…

Não, sou contra os moldes em que foram feitos, a maneira como foi feito o estudo. Acho que nós teríamos toda a vantagem que não fosse um relatório sobre a Igreja em Portugal, mas um relatório do Papa para a Igreja Universal. Nós precisamos de saber o estado da Igreja Universal. Nós não podemos subsistir desta forma… no ano passado foi nos Estados Unidos, este ano é em Portugal, daqui a dois anos vai ser em Espanha, daqui a três vai ser a Polónia. Precisamos que de uma vez por todas e ao mesmo tempo seja feito um estudo em toda a Igreja sob o patrocínio da Santa Sé. Saber a verdade nua e crua, sem ambiguidades, mas com números verdadeiros e reais… não extrapolação de números…

Não é propriamente um grande defensor do Papa.

Sou defensor do Papa dentro daquilo que me parece que seja defensável. Aquilo que o Papa disse no primeiro Sínodo é muito, muito importante: ter a liberdade de cada um dizer aquilo que pensa. E eu gosto muito do Papa também por causa disso. Não só por causa disso, mas principalmente por causa disso, porque nos deixa dizer aquilo que nós pensamos. Tal como ele diz aquilo que pensa também nos deixa dizer aquilo que nós pensamos. Penso que em algumas situações o Papa tem afirmado uma determinada posição. Há coisas que me pergunta, faria diferente? Mas há uma coisa que a mim não me agrada, que é o facto de ouvir o Papa sistematicamente a dizer mal dos padres, a falar do nosso dinheiro e do nosso prestígio e do clericalismo. A certa altura, parece que na boca do Papa nós não temos um olhar diferente daquilo que alguém na opinião pública poderia dizer de nós. Isso entristece-me! Entristece-me ouvir o Papa dizer tantas vezes que os padres têm de mudar, sem ser objetivo. A mim agradava-me muito que o Papa dissesse assim: ‘Os padres estão proibidos de ter um carro acima de mil de cilindrada. Pronto, e nós ficávamos felizes e contentes. Estava proibido ter um carro acima de cilindrada mil…

Acha normal os cardeais ganharem 5.000 € limpos, não pagarem renda no Vaticano…

Ganham 5.000 € limpos? Isso não sabia. Não sei quanto é que ganha um ministro em Itália. Porque os Cardeais que estão dentro do Vaticano são como ministros. Não pagam renda? Também não pago renda, nem água nem luz. Recebo 747 euros, e chego ao final do mês, depois de pagar as minhas contas, com uma mão atrás e outra à frente. E penso muitas vezes como estará uma família!

Falando em mudanças na Igreja, o processo sinodal está em curso e o que está em cima da mesa é o casamento dos padres, a ordenação de mulheres, a comunhão de recasados e de homossexuais e por aí fora. Esta é corrente da Igreja renovada? Por causa destes temas já houve mesmo uma cisão na Igreja Anglicana.

São duas coisas completamente diferentes, que não se podem sequer contaminar uma à outra. Alguns acham que o problema da pedofilia se resolveria casando os padres. Das duas uma: ou nós não acreditamos naquilo que dizemos, ou não dizemos aquilo em que acreditamos. E nós acreditamos, porque estudamos que a pedofilia não é um problema sexual mas principalmente uma doença, é uma doença psiquiátrica. Como afirmou o Dr. Daniel Sampaio na apresentação do Relatório Final da Comissão Independente, uma doença psiquiátrica que tem um contra químico mais eficaz, penso que não se cura com o casamento. Uma pessoa doente não pode casar, tal como não pode ser padre. Isto para mim é claro, usar a pedofilia para abrir o casamento dos padres ou ordenação de homens casados é uma falácia. Não assenta na verdade.

Já disse que é um homem inteligente e sabe perfeitamente que não é só isso que está em causa. Diz-se que os padres têm de ser o espelho da sociedade. Ninguém quer obrigar os celibatários a casarem-se. Obviamente que isso é um dos argumentos, mas há outros.

Há muitos argumentos. O celibato dos padres, a imposição do celibato dos padres não é de direito divino, como o casamento. O casamento é de direito divino. Portanto, a indissolubilidade sacramental do casamento não está nas minhas mãos eu mudar. Porquê? Por que é uma coisa que está expressa nas Escrituras. O que  quer dizer Direito Divino? Quer dizer, quando Jesus chegou, as pessoas podiam se divorciar e recasar, mas Jesus diz que o matrimónio é para toda a vida. E, portanto, é de direito divino. Não foi a Igreja que ‘inventou’.  O celibato é de direito eclesial. Quer dizer, não há nada na Escritura que diga que eu tenho que ser celibatário. É, digamos assim, algo que foi convencionado ao longo dos séculos, mas que foi convencionado por uma parte muito pequenina da Igreja: na Ucrânia, alguns os padres católicos são casados. Os padres católicos da Roménia, alguns são casados. Os padres católicos da Croácia são casados.

Não vê nenhum inconveniente.

Não há nenhum inconveniente! Desde que não me obriguem a mim a casar, eu não tenho qualquer inconveniente com isso. Agora, é evidente que este processo sinodal levanta uma questão muito importante, que é aquela que eu levanto com a elaboração deste estudo. E que acho que é a coisa mais importante. Quem é que manda aqui? Quem são as pessoas que têm o poder? O que Papa quer fazer é uma distribuição do poder, que isso me parece muito importante. Não me parece nada bom que a Igreja esteja no masculino. Não me parece nada bom que a Igreja esteja no clericalismo. E distribuir os poderes é uma coisa muito importante, que foi aquilo que não aconteceu com este estudo da Comissão Independente. Não por culpa da Comissão Independente, mas por culpa do episcopado. Numa altura em que falamos de sinodalidade, não se consultaram Conselhos Diocesanos ou Conselhos Presbiterais. Pegou-se  em 200.000 €, depositou-se ali toda a confiança da Igreja, como se isso fosse uma questão de assessoria para a própria Igreja e agora estamos a sofrer as consequências de tudo isto. Mas numa Igreja, esta sim, a Igreja renovada, em que a opinião de todos deve ser ouvida, eu acho que nós devíamos ter sido ouvidos, no mínimo. Isto não significa que eu queira encobrir os abusadores. 

O que acha da ordenação das mulheres?  E da bênção para os casais homossexuais e a possibilidade de comungarem os recasados….

Não sei dizer, não tenho uma opinião absolutamente formada. Para mim, é claro uma coisa, aquilo que o Papa diz é verdade: a comunhão não é para quem se porta bem, não é um prémio. A comunhão faz parte de um sacramento de cura e é para curar os que estão feridos. Se me pergunta: ‘O Papa, naquela nota de rodapé da Amoris Laetitia faz bem em abrir a possibilidade de os divorciados recasados poderem aceder aos sacramentos?’ Acho que não!

Acha que não faz bem?

Acho que não faz bem nos termos em que coloca. E explico porquê: não é que os divorciados recasados não tenham o direito, o que acho é que não devemos dar-lhes uma esmola. É um direito que têm e é um direito ainda maior saberem uma coisa que não sabem até então. Eles têm o direito de saber se estão casados ou não com o primeiro marido e com a primeira mulher. Isto é que temos de resolver dentro da Igreja Católica.

Isto o quê?

As condições de nulidade de casamento. O Papa Bento XVI, a um mês da sua renunciar, pediu à Rota Romana que estude a  possibilidade da declaração de nulidade do sacramento do matrimónio pela falta de bases de fé, isto é, se alguém que não tenha fé ou que tenha uma fé muito incipiente tem condições para poder casar.  Do ponto de vista do suporte da fé, não precisamos de dar uma esmola aos divorciados recasados, aos divorciados que voltaram a refazer a sua vida como um casal, com outros maridos ou com outras mulheres. Precisamos de resolver mesmo a situação da vida deles. Porque não é uma questão da comunhão, mas uma questão do casamento, que é um direito que os assiste. Os tribunais têm de funcionar melhor e temos de dar maior capacidade a que os tribunais eclesiásticos possam investigar e resolver o problema das pessoas e com brevidade.

Quer dizer que uma pessoa que tem fé tem todo o direito a divorciar-se…

Não. O que estou a dizer é que, uma pessoa que casou e depois se separou tem o direito de saber se no dia em que casou tinha ou não tinha condições para contrair aquele contrato matrimonial, que é como qualquer outro contrato. Portanto, se não tinha condições, tem de se declarar a nulidade daquele casamento com a maior brevidade possível.

E aí já pode receber a comunhão?

E já pode casar, porque da primeira vez o casamento foi nulo, portanto, não aconteceu o casamento. Não colocaria a questão na comunhão dos divorciados recasados, mas de resolver o problema de raiz. E o problema que temos de colocar de raiz é este: são as nulidades dos casamentos.

Não acredita que vai haver uma cisão na igreja no fim do processo sinodal?

Espero que não vá haver cisão.

Mas acredita que pode haver?

Espero que não haja, mas já existe. Já existe dentro da Igreja alemã e já existe dentro da própria Igreja Católica. O cardeal Sarah é muito interessante, é um homem espiritual, incrível!. Há uns anos dizia uma coisa curiosa: ‘Há uma apostasia silenciosa na Igreja,‘. É como se tudo aquilo que nos foi dado no passado estivesse a ser vomitado agora. Sinceramente penso que precisamos mais ouvir a Deus do que ouvir os homens, porque dos homens já ouvimos muitas coisas. Precisamos de nos ouvir uns aos outros e de termos os ouvidos abertos. Estamos num mundo em que todos querem falar. Vimos isso nas redes sociais, em que todos querem meter uma fotografia, todos querem fazer um comentário, mas ninguém quer ouvir. Às vezes tenho de dizer ‘calma, calma’, ainda não acabei a frase. Ninguém é capaz de parar, ouvir, escutar. E acho que está tudo ligado dentro da igreja.  A crítica com que comecei esta entrevista é a mesma crítica com que espero terminá-la, que é não nos terem dado a oportunidade de vivermos este processo da Comissão Independente. Este processo custoso, de terem feito como se não existissem padres, fiéis, leigos, como se não existisse nada, é uma experiência, eu diria a não repetir e espero ter a oportunidade e tempo, depois de tudo isto, de poder entregar ao Papa aquilo que é a minha reflexão pessoal, de pedir e enviar à Santa Sé e aos serviços da Santa Sé, que esta experiência não se volte a repetir na Igreja. Esta experiência de poderem fazer um estudo sobre nós, sem nos ouvirem, sem nos explicarem, como se não existíssemos neste mundo, acho que é profundamente desrespeitador connosco e incapaz de curar as feridas incutidas nas vítimas e na Igreja. Não serve as vítimas nem os cristãos.