Sete vidas

A energia transbordante de uma ‘força da natureza’, um clássico da literatura autobiográfica e as meditações de um neurocirurgião sobre o fim da vida são algumas das sete propostas de leitura que deixamos para estes dias quentes. 

O dever de deslumbrar – biografia de Natália correia
Filipa Martins 
€24,90 
Contraponto

O crítico e historiador de arte José-Augusto França chamava-lhe «a mais linda mulher de Lisboa». Nascida na Fajã de Baixo (São Miguel) em 1923, cresceu sem o pai na capital e teve quatro casamentos. Figura barroca e impetuosa, foi promotora de tertúlias, poetisa, editora, opositora do regime, jornalista, deputada; conheceu Khadaffi na Líbia, correspondeu-se com Savimbi, em Lisboa acolheu Henry Miller, que a definiu como «uma força da natureza». Filipa Martins reconstitui com notória admiração, e correspondente compromisso, as várias vidas que cabem na vida de Natália Correia, numa biografia que sabe transmitir essa energia transbordante (e cativante) que a escritora açoriana manteve até ao fim.

Mundo Sepúlveda
Luis Sepúlveda e Daniel Mordzinski €22,20 
Porto Editora

«Depois de comer, falámos, descobrimos que compartilhávamos algo mais que se chamava inventário de perdas. Abraçámo-nos, chorámos ao nomear todos os nossos que já não estavam, os que nos faltarão sempre, os nossos amados irmãos de sonhos que deram a vida pela envergadura dos seus sonhos. Chorámos por todas e por todos os que estão enterrados em lugares que só os seus assassinos conhecem, ou que foram lançados, vivos e amarrados, ao fundo do mar. Mas a seguir ao pranto e depois de beber um bom copo de vinho da pipa, começámos a falar dos nossos sonhos».

Atlas de lugares, pessoas, afetos e memórias, Mundo Sepúlveda reconstitui o universo do carismático escritor chileno: uma derradeira homenagem que junta duas dezenas de textos, na sua maioria inéditos em Portugal, e as fotografias do seu camarada Daniel Mordzinski.

O espião de um bilião de dólares
David E. Hoffman €22 
Alma dos Livros

Em inícios de janeiro de 1978, Robert Fulton, chefe do posto da CIA em Moscovo, foi abordado numa bomba de gasolina por um anónimo russo que lhe deitou um papel para o assento do carro. Receando uma armadilha, de início os serviços secretos americanos não levaram a oferta muito a sério. Estavam errados: o homem da bomba de gasolina, o engenheiro eletrónico Adolf Tolkachev, acabaria por revelar-se um dos espiões mais valiosos da Guerra Fria. Hoffman, editor no Washington Post que passou por Jerusalém e Moscovo, conta-nos como ao longo de anos Tolkachev arriscou a vida para passar ao inimigo um caudal impressionante de documentos ultrassecretos, entre os quais planos detalhados de mísseis soviéticos que permitiram a Washington manter a supremacia no espaço aéreo.

Retrato do artista quando jovem
James Joyce €18
Guerra & Paz

Terminado em Trieste e publicado pela primeira vez nas páginas da revista The Egoist entre 1914 e 1915, Retrato do Artista Quando Jovem possui ele próprio uma história atribulada, tendo sido salvo in extremis depois de o autor, num ataque de raiva desencadeado pelas sucessivas recusas de publicação de Dublinenses, atirar o manuscrito para as chamas. Joyce pôs neste auto-retrato vários episódios da sua infância e juventude: as humilhações do seu alter ego, Stephen Dedalus, na escola de Clongowes; a falência do pai e as mudanças de casa; as acesas discussões em família em torno de questões políticas e religiosas; o despontar do desejo sexual e as incursões no bairro dos bordéis. Mas o âmago deste romance de formação – e o seu ponto culminante – são as dúvidas em relação à religião. Primeiro, a obra-prima de oratória jesuítica que é o sermão sobre o poder do arrependimento, que se lê com assombro. Em seguida, a possível vocação e, por fim, a discussão com o confidente Cranley sobre a falta de fé que leva Dedalus a recusar obstinadamente a súplica da mãe para comungar. Muitos anos mais tarde, já em adulto, Joyce continuava a recusar-se a beber vinho tinto por causa das suas conotações eucarísticas.

Depois do diário
Bars von Benda-Beckmann €22,90 
Casa das Letras

«Não poder sair perturba-me mais do que consigo explicar, e estou apavorada, com medo de que o nosso esconderijo seja descoberto e de que sejamos mortos», escrevia Anne Frank em setembro de 1942. Dois anos depois esse receio concretizava-se e os oito ocupantes do Anexo Secreto do n.º 263 da Prinsengracht eram presos e enviados para campos de concentração. Depois do Diário procura fazer luz precisamente sobre o que se passou a partir da detenção, a 4 agosto de 1944. Anne terá morrido, com a irmã, no final de fevereiro de 1945 no campo de Bergen-Belsen. A mãe ficara em Auschwitz, de onde nunca saiu, tendo o pai, Otto, sido o único a sobreviver ao horror nazi – só para descobrir que todos os outros ocupantes do Anexo tinham perecido. Um estudo sóbrio, informativo e bem fundamentado. Benda-Beckmann, historiador, trabalha como investigador da Casa Anne Frank em Amesterdão.

Memória de rapariga 
Annie Ernaux €16,65  
Livros do Brasil

Com uma franqueza incómoda e muitas vezes até dolorosa, 58 anos depois, a escritora Annie Ernaux revisita um episódio da vida da adolescente Annie Duchesne (nome de solteira) em 1958, quando sai da órbita dos pais, donos de uma mercearia-café da província, para ir tomar conta de crianças numa colónia de férias. A perda da virgindade com um monitor, a entrega total e avassaladora, provoca uma explosão de reacções e sentimentos em cadeia, onde o desejo e o desamparo, o orgulho e a humilhação, a liberdade e a dependência se misturam e se atraem mutuamente.

Nas últimas linhas da última página, Ernaux manifesta o seu propósito: «Explorar o abismo entre a espantosa realidade do que acontece, no momento em que está a acontecer, e a estranha irrealidade do que, anos mais tarde, reveste o que aconteceu».

E por fim – questões de vida e de morte
Henry Marsh €15,90 
Lua de Papel

Quem tiver lido Hoje Deu Entrada no Hospital ou Não Faças Mal já saberá que esta não será uma leitura leve, indicada para hipocondríacos ou pessoas sensíveis. Até porque este eminente neurocirurgião reformado, que fez voluntariado na Albânia, Ucrânia e Nepal, e pratica carpintaria e apicultura nas horas livres, não é pessoa dada a eufemismos ou paninhos quentes. Ainda menos quando fala sobre si próprio. Desta feita, Marsh coloca-se no centro do palco, debaixo da luz implacável dos holofotes, já não como médico, mas como paciente. A morte, que já estava tão presente nos seus outros livros, paira agora como uma ameaça insidiosa ao longo das páginas, suscitando um caudal de reflexões sobre o fim da vida e os limites da medicina. «Este livro», resume o autor, «é a história de como eu próprio me tornei um paciente». Mas é bom que se diga que, se o cérebro do neurocirurgião está «encolhido e ressequido», como ele próprio nos diz depois de olhar para uma ressonância magnética, não se nota nada.