Seguindo-se a figuras como Saramago, Lobo Antunes e Vasco Pulido Valente, a escritora e socióloga Maria Filomena Mónica é a protagonista do sétimo livro da série Uma Longa Viagem com. Embora o objetivo desta coleção seja «valorizar a obra», como explica o autor, o que resulta é uma espécie de biografia na primeira pessoa, em que, a par das ideias, convicções e opiniões, se contam episódios da vida, às vezes com o seu quê de picaresco. «É fundamental que estes livros tenham revelações, até do foro íntimo», diz-nos.
Nascido em Alpiarça em 1963, João Céu e Silva tem uma longa experiência como jornalista no Diário de Notícias, onde trabalha desde 1989. Licenciou-se em História no Rio de Janeiro e é exatamente isso que está a fazer nesta série: a escrever a história da literatura portuguesa recente, num processo de estreita colaboração com os seus maiores nomes.
Imagino que antes deste livro já houvesse uma relação com a Maria Filomena Mónica que vinha de trás.
A minha primeira experiência com a Maria Filomena Mónica foi uma entrevista em 1999, creio que a propósito de um dicionário histórico. Estávamos a falar, e ela dizia um nome – Clausewitz ou coisa assim – e escrevia no papel. No final, deu-me o papel para eu não me enganar a escrever os nomes. Eu já tinha uns 40 anos… portanto não estava à espera. Mas depois, quase sempre que saía um livro dela falávamos, porque gosto muito daquelas temáticas – o olhar do outro, os estrangeiros que vinham a Portugal, as Visitas ao Poder. Então entrevistei-a umas dez ou doze vezes.
Foram-se aproximando.
Esta série tem uma condição: nós conversamos, mas o protagonista não tem nada a ver com a edição do livro.
Não interfere?
Nem pode ler. A única coisa que pode fazer é, no final, ficar aborrecido. A Maria Filomena Mónica gostou – e eu até estava com algum receio de que não gostasse. Disse-me que tudo o que eu tinha escrito era verdade. Mas já tive experiências dramáticas, como com o António Lobo Antunes. A editora ofereceu-lhe cinco livros. Ele leu, disse-me que tinha gostado muito. Um mês depois, os irmãos criticaram algumas coisas, ele ficou incomodado e disse-me: ‘Peguei nos cinco livros e deitei-os para o caixote do lixo’. Ele tinha um caixote do lixo, daqueles grandes, domésticos, atrás da mesa de trabalho. Passados seis meses, voltou a pedir que a editora lhe oferecesse mais uns livros, porque tinha estado a ler e afinal tinha gostado. Estes livros têm essa particularidade: o protagonista não sabe qual é o caminho para onde se vai. O guião é meu, eu é que sei o que quero do livro e da pessoa. Depois os protagonistas muitas vezes trazem à conversa assuntos de que eu não estava à espera e então vamos atrás disso. Por exemplo, no caso do Lobo Antunes, tivemos uma sessão dedicada ao cinema. Eu fiz-lhe a pergunta mais básica…
Às vezes são as que dão as melhores respostas.
Só lhe perguntei se gostava de cinema. E ele esteve 45 minutos a falar. O Saramago a mesma coisa. De início até nem queria: ‘Estou farto de falar, não tenho nada para dizer’.
Isso foi quando?
Em 2007. Ele estava muito cansado de dar entrevistas e basicamente não estava disponível. Ele morava a 150 metros de minha casa cá em Lisboa e fui falar com ele.
Em que zona?
No Arco do Cego. Levei-lhe um projeto, imprimi umas folhas e expliquei o que queria. Ele olhou e disse-me: ‘Estou muito cansado’ e mais não sei quê. Deixei-lhe o projeto, o livro do Cunhal e o do Torga. Dez meses depois insisti e aí ele aceitou. Cheguei a casa dele e sentámo-nos, conversámos um bocadinho e começámos a trabalhar. Tinha um guião gigantesco, porque ele tinha 33 livros à altura, era Prémio Nobel… A primeira conversa demorou quatro horas e meia e ele achava que ia ficar por ali. No final eu digo-lhe: ‘Correu muito bem, agora vamos marcar a segunda’. Ficou admirado mas lá lhe expliquei e ele aceitou. A dado momento tem aquela pneumonia e é internado.
Esteve mesmo por um fio.
Por um fio. Aí aceitei deixar de fazer em Lisboa e fui a Lanzarote. Quando lá cheguei fiquei impressionado, porque ele tinha saído do hospital dois dias antes. E diz-me: ‘Nós não devíamos estar a conversar porque eu já devia ter morrido’. E eu: ‘Não quero estar a incomodar’. Mas ele manteve. ‘Nós combinámos, vou cumprir até ao final’.
Uma atitude estoica.
Fizemos umas sessões um pouco mais leves, mas ainda faltava um bom bocado. Já no caso do Vasco Pulido Valente, foram 42 sessões semanais. Quando começámos as entrevistas – eu chamo-lhes sempre sessões – fisicamente não estava muito bem. A nível mental não havia qualquer problema, mas falava muito devagar. Em novembro [de 2019] tem uma queda abrupta. Aí fiquei preocupado. Alterei um pouco o rumo e fiz-lhe quatro entrevistas seguidas para recolher os elementos que me faltavam. À quarta entrevista, ele percebe que eu não estou a fazer sessões normais: ‘Então você está-me a entrevistar? Não estamos a fazer o trabalho normal?!’. ‘Estamos só a recolher alguns elementos específicos’. Quando essa recolha já tinha sido feita, a dado momento ele pede-me para adiar a sessão. Depois cancelamos. E pronto, já não há mais sessões.
Ele tinha fama de ser uma pessoa difícil, temperamental…
Deve ter sido o autor mais complicado para mim, mas por outra razão: ele era historiador, dominava bem as matérias e quando eu lhe fazia uma ou outra pergunta com a qual não concordava, ele questionava-me. E eu tinha que me justificar. Do conhecimento que eu tinha de lhe ter feito duas ou três entrevistas, sabia que o Vasco Pulido Valente era irascível, muitas vezes intratável. Mas penso que ele apreciou estas conversas. Disse-me que já não estava à espera, nesta fase da vida, de voltar a falar sobre os temas de que mais gostava. Acho que se tornou menos irascível porque estava a ter prazer nas conversas, e realmente era como se estivesse a dar aulas, porque eu aprendi imenso sobre o século XIX com ele. Foi um curso acelerado de História do século XIX, que nós portugueses conhecemos muito mal. E tinha uma particularidade: dava saltos na história para mostrar como o passado tinha influenciado o presente. Eu achava que o Vasco Pulido Valente tinha muitos anticorpos, nem toda a gente gostava dele, mas o livro foi um sucesso e os leitores gostaram imenso. Da extrema-esquerda à extrema-direita, toda a gente comprou o livro.
Acho que essa fama de irascível, de enfant terrible, também atrai a curiosidade das pessoas.
Sim, sim, atrai. No caso da Maria Filomena Mónica, as pessoas também acham que ela é snob, egocêntrica, só pensa nela. E eu tentei desmistificar um pouco isso. Não digo que seja snob, mas tem uma forma de ser que é igual a ser snob – aquilo não é propositado. Há algumas pessoas em Portugal que acham que pertencem a uma casta diferente. E isto não é uma acusação. Ao longo da vida, a Filomena Mónica teve uma luta muito grande para se realizar enquanto mulher. Não era fácil em 1968 ir para Oxford estudar sociologia. No círculo dela, que tinha uns cem professores e alunos, havia quatro mulheres. Este mundo machista que é o mundo académico – não vale a pena fingir que não é machista – não deve ser fácil para uma mulher que é bonita, que tem muito bom aspeto, que não tem qualquer problema em fazer afirmações. No caso dela, do Vasco Pulido Valente, do António Lobo Antunes, antes de começarmos, ficávamos aí uma hora à conversa. O Vasco gostava muito de falar sobre a situação política. E perguntava-me: ‘O que é que você acha do António Costa?’.
Normalmente estamos à espera que seja o entrevistado a emitir opiniões, não o entrevistador.
E o Vasco Pulido Valente escrevia uma crónica semanal sobre a política. Era o papa da opinião política. Isso para mim era um desafio. No caso do Lobo Antunes era diferente. Chegávamos, podíamos falar cinco minutos, mas começava logo a conversa, das três às cinco. Às cinco íamos lanchar a um café em frente e a partir daí a conversa era sobre o Benfica e mulheres. Eram os dois temas de que ele gostava.
No caso da Maria Filomena Mónica já havia uma biografia, ou melhor, uma autobiografia.
O Bilhete de Identidade. O meu maior desafio era esse: será que eu consigo, neste livro, acrescentar alguma coisa? Acho que consegui, que trouxe novidades, coisas que ela não queria dizer, não escreveu ou estavam subentendidas. E depois todo o pensamento dela, os livros que queria escrever, os homens que teve na sua vida, tudo isso. Acho que o livro acrescenta muita coisa.
Um aspeto curioso, e que não é nada de português, é a forma como se expõe. Em geral as pessoas são muito ciosas da sua privacidade, não gostam de falar sobre isso.
Eu já estava um pouco acostumado através de várias entrevistas que tinha feito. Mas aqui, logo de início, chegámos a outro patamar. Na segunda conversa, contou-me aquele episódio da orgia com o João Bénard da Costa, a Helena e o Alberto Vaz da Silva, em que ela e o Vasco são convidados para ir lá a casa. Isto era fundamental aparecer. Duas conversas a seguir, eu disse: ‘Maria Filomena, fiquei com algumas dúvidas porque me falou daquele tema, mas eu não compreendi tudo’. E então ela contou-me a história com mais pormenores. Eu não estava à vontade, não sabia se podia dizer aquilo. Quando falámos uma segunda vez, ficou confirmado. É fundamental que estes livros tenham revelações, até do foro íntimo. Com o Vasco, pensei: ‘Isto vai ser difícil porque ele está a ser muito oficial’. Mas à sexta conversa ele diz uma frase com um palavrão. ‘Pronto, descongelou, atingimos um nível em que ele está com confiança’. Com o Lobo Antunes, foi o trabalho em que tive de fazer mais autocensura, porque ele dizia coisas que seriam ótimas para um livro, mas eu não aceitava ter o meu nome na capa desse livro.
Que tipo de coisas?
Coisas que envolviam outras pessoas. Recusei-me a pôr isso. A ideia está lá no livro, mas os nomes das pessoas não. Já a Maria Filomena Mónica tem mais bom senso do que o António Lobo Antunes e, portanto, aquilo que contava era aquilo que queria contar. Logo de início disse-me que não tinha qualquer problema em falar sobre tudo. O único tema proibido era o Vasco Pulido Valente.
Qual a origem desta série ‘Uma longa viagem com’, como começou tudo?
Eu já tinha entrevistado o Álvaro Cunhal umas três vezes e proponho no Diário Notícias fazer-lhe outra entrevista. Mas ele já estava cego, a poucos meses da sua morte, e não aceitou dar. E eu disse: ‘Isto não fica por aqui’. Então propus ao Pedro Rolo Duarte, o editor do suplemento DNA, ir procurar as pessoas que inspiraram os personagens dos livros do Manuel Tiago. Fui para o Alentejo, principalmente, e encontrei-me com umas 15 pessoas. Quando falava com estas pessoas do povo, estava a ouvir palavras que já tinha lido nos livros dele. E é daí que nasce a ideia. Perguntei quanto é que podia escrever, e o Pedro Rolo Duarte disse uns 15.000 caracteres – ‘já tenho 30.000’. ‘Então escreve à vontade’. Acabei com 160.000.
Isso é impublicável.
Tal como o João Marcelino fez na capa com o Saramago, o Pedro Rolo Duarte limpou todo o DNA e ficou só o meu texto. Ele fartava-se de gozar comigo, porque foi o DNA mais barato de sempre: acho que custou 143 euros, que foram as minhas despesas de hotel, refeições e gasolina. No dia em que sai esse suplemento, às 11h00 já tinha duas editoras a quererem publicar aquilo em livro. A ASA oferece um livro em papel muito bom, com capa dura. Só impus uma condição: ‘Tenho aqui dez conversas, vou fazer mais dez para que quem compre o livro tenha mais qualquer coisa’. O título achado foi Uma longa Viagem com Álvaro Cunhal. É assim que nasce esta coleção.
E o segundo título é com o Miguel Torga.
O Torga também já tinha morrido, mas era uma pessoa extremamente mal-educada, nunca teria falado comigo. Ele costumava correr os jornalistas a pontapé, a única coisa que fazia era ir à redação de Coimbra do Diário de Notícias para ler o jornal de graça, porque era muito forreta. Ninguém queria falar sobre o Miguel Torga. Só que eu consigo que o António Arnaut fale e depois todos os outros aceitaram falar. Daí para a frente são sempre pessoas vivas. Desta série todos eles continuam a vender porque ninguém pode fazer uma tese sem ler o livro do Saramago ou o do Lobo Antunes. As citações desses livros estão em todas as teses portuguesas e estrangeiras. O objetivo desta coleção, aliás, é valorizar a obra. A biografia existe, está subjacente a todas as páginas, mas não é o fundamental. No caso do Saramago teve muita piada, porque eu disse-lhe: ‘Já li os seus 33 livros…’ E ele: ‘Ó homem, você é maluco? Alguém lê 33 livros do mesmo autor?!’ ‘Eu venho entrevistá-lo, por isso li’. Antes disso, dos 33 livros dele, teria lido uns 20. Mas mesmo esses reli e foi muito positivo, porque me permitiu ter uma visão da obra do Saramago completamente diferente da que tem o leitor comum. No espaço de quatro, cinco meses li os 33 livros.
Uma maratona.
Em cada sessão levava aqueles livros já lidos, para não ser apanhado em falso. E ele achou aquilo muito estranho.
Foi logo um grande cartão-de-visita.
Mas não foi interesseiro, foi sincero. Só que ele não estava à espera. O Saramago era na altura dos portugueses mais conhecidos do mundo. Aliás, com ele tive a minha principal experiência enquanto jornalista. Numa das sessões perguntei-lhe o que achava do futuro ibérico. E ele diz esta frase: ‘Daqui a 50 anos Portugal e Espanha estarão unidos’. Como o livro só sairia dali a um ano e meio, eu não ia guardar isto tanto tempo. Falei com o meu diretor, o João Marcelino, e ele ficou fascinado. Pedi autorização ao Saramago para utilizar aquilo no jornal. Eram duas ou quatro páginas. E fez-se a capa. A notícia principal era o Saramago, e depois havia várias outras notícias. E o João Marcelino diz ao gráfico: ‘Limpa a capa toda. É só Saramago’. E assim foi. A entrevista sai cá e todos os correspondentes estrangeiros, como é o Saramago e uma afirmação daquelas, fazem uma notícia para os seus países. Aquilo saiu num domingo. Na segunda-feira sai no Corriere della Sera, no La Repubblica, no El País, no El Mundo e num jornal inglês importante. Com uma página inteira ou duas páginas. Acho que era o El País que dizia: ‘Se isto acontecer, vamos ser a melhor equipa de futebol do mundo’. A partir daí, durante uns dois meses, esta entrevista começa a sair em todos os jornais e o ponto estranho disto é que o jornal oficial do Partido Comunista Chinês também publica a notícia. Nesta altura já havia internet, fiz uma cópia de todas as notícias que apanhei e fiz um livro de 150 páginas A4. Imprimi as notícias todas e encadernei e ofereci. E o Saramago, apesar de ser conhecido em todo o mundo, ficou fascinado por ver a repercussão que teve aquela meia dúzia de palavras. Nunca escrevi mais uma notícia que tivesse corrido o mundo inteiro.
Os autores deixavam-no aproximar-se ou alguns mantiveram sempre uma certa distância?
Acho que o Manuel Alegre foi a pessoa que mais barreiras pôs à evolução natural do trabalho, mas porque aconteceu uma coisa: nós começámos em novembro e em fevereiro ele anuncia a segunda candidatura a Belém. Eu estou em casa a ver o noticiário e quando o vejo em Portimão a anunciar a candidatura, digo: ‘Acabou’.
Está tudo estragado…
E realmente confirmou-se. Ele tinha muito cuidado nas afirmações que fazia porque era candidato presidencial. E foi pena, porque se perderam muitas histórias que no livro teriam ficado bem e que nos permitiriam conhecer melhor a pessoa. No caso do Lobo Antunes, eu é que tinha que pôr travão, porque aconteciam coisas tão à Lobo Antunes como eu chegar lá e ele estar a ler as Páginas Amarelas. E passávamos 20 minutos naquilo. Dizia ele: ‘Olha aqui, o Zé não sei quantos é sapateiro e tem o maior anúncio desta página. Deve ser muito rico’. Olhava para aquilo, ou para a parede branca em frente, para passar o tempo. Não tinha inibições. Dizia o que queria e às vezes ia longe demais. Depois havia um autor que tinha algum cuidado com o que dizia, que era o José Saramago. Uma vez disse-lhe: ‘Acho que as mulheres nos seus livros não são muito valorizadas’. Deu-me logo dez mulheres importantes, mas eu só tinha dito aquilo para o acicatar.
E pelos vistos resultou.
Ficou irritadíssimo! Quando eu ia a Lanzarote ficava num anexo à biblioteca que tem um quarto de hóspedes. De manhã esperava que ele se levantasse e às dez e meia, onze horas, chamavam-me para começarmos a sessão. Depois, ele convidava para almoçar e já conversávamos de outra forma. Houve um almoço em que ele estava todo satisfeito porque a Pilar tinha feito um prato português de grão de que ele gostava muito. Mas durante a conversa a Pilar avançou na crítica a alguns escritores portugueses. Passados dez, quinze segundos, o Saramago diz: ‘Pilar, não te esqueças de que estás em frente a um jornalista’. Acho importante que as pessoas saibam até onde podem ir. No caso do Lobo Antunes, ele disse coisas que para mim seria impensável publicar.
Embaraçosas?
Que eu não aceitava publicar. A minha grande sorte nestes trabalhos é que as pessoas confiam. Por exemplo, o Vasco Pulido Valente. Conversámos 42 vezes e nas primeiras semanas ele perguntava: ‘Como é que você vai fazer o livro?’ E eu respondia: ‘Vasco’ – ele pediu-me para o tratar só por Vasco – ‘eu ainda não sei. Nós vamos na conversa 12, preciso de mais tempo’. Aí a meio começo a ter uma linha de orientação, que depois teve de ser redirecionada, porque quando escrevi o livro o protagonista já tinha morrido.
Não fica bem dizer isto, mas a morte dele, de certa forma, facilitou-lhe as coisas?
Eu estava no festival Correntes d’Escritas quando soube da morte dele. E apanhei um choque. O jornal [DN] até me pediu um obituário e eu disse que não conseguia. Sabia que ele estava muito mal, tínhamos interrompido as sessões, mas não estava preparado para aquilo. Agora, não acho que isso tenha ajudado a vender livros, porque o livro só sai um ano depois, é tempo suficiente para as pessoas se esquecerem.
Quando perguntei se facilitou estava a pensar no sentido de o poupar à reação dele…
A morte dele deu-me uma liberdade que eu não teria se ele estivesse vivo. Se ele estivesse vivo, eu teria que ter dado mais atenção a certos assuntos do século XIX, que davam para fazer um segundo livro. Mas, com o autor morto, há coisas que deixam de ter importância. Então o que tentei foi fazer um retrato completo da obra, do pensamento, da pessoa que era o Vasco Pulido Valente. A morte dele acabou por facilitar a minha escrita. Passei a ser dono do livro. Com o Lobo Antunes eu era dono do livro mas tinha que assumir responsabilidades. Com o Saramago igualmente, com a Maria Filomena Mónica igualmente, com o Manuel Alegre igualmente. No caso do irascível Vasco Pulido Valente, eu era dono e senhor daquilo que poderia fazer.
Alguma vez houve uma situação de maior tensão, em que sentisse que o trabalho estava em risco?
Não, nunca houve um momento em que em que o protagonista se arrependesse. O único problema frequente que eu tenho nestes livros é as filhas ficarem incomodadas. A filha do Miguel Torga recusou-se a falar para o livro. A filha do Vasco Pulido Valente prometeu ações na Justiça. A neta do Cunhal disse cobras e lagartos, a filha insultou-me… Por norma as filhas – só as filhas, nem os filhos nem as mulheres me criaram problemas – são as únicas pessoas que assumem as dores dos pais.
Conheceu as casas de alguns destes autores. O que dizem sobre eles?
Nunca tinha pensado nesse assunto. O António Lobo Antunes trabalhava numa garagem. Tinha pilhas de livros, uma palmeira artificial, uma mesa e muito frio.
Frio?
A mesa estava a um metro do portão da garagem e o frio entrava por aquela fresta. Uma grande parte das sessões foram feitas com nós os dois de blusão – ele com um blusão gigantesco e eu também de blusão. Ele gostava de sofrer e dizia que o frio o inspirava.
Um certo desconforto?
Depois vim a conhecer a casa dele e não tinha nada a ver com esse desalinho, porque eram as mulheres dele que tomavam conta da casa. Mas esta última onde mora, em Campolide, é a casa de um escritor. A gente olha e vê milhares de livros, livros por todo o lado. A casa de Lisboa do Saramago era só de passagem, portanto não era muito personalizada. Mas a casa de Lanzarote era extremamente personalizada. A coisa que mais me surpreendeu foi que ele tinha muitas estátuas de cavalos. Miniaturas, coisas maiores…
É a costela ribatejana.
Eu não sabia que ele era fascinado por cavalos. Tinha lá um elefante, que tinha a ver com A Viagem do Elefante, o que achei normal. Mas era o cavalo que dominava. O anexo, onde estava a biblioteca, era um espaço estonteante, em que a luz entrava por cima, por uma claraboia. Muito bonito. Já a da Maria Filomena Mónica é a casa típica de uma mulher que gosta de se fechar em casa.
Há aquele episódio no livro em que ela vai ver um documentário da filha e volta arrependidíssima.
Recusa-se a sair. Prefere estar no mundo dela, a ler os seus livros, a escrever as suas coisas. E a pandemia foi a coisa melhor que lhe aconteceu porque lhe deu uma justificação para isso.
Ainda as casas: e a do Vasco Pulido Valente?
Era ali na Avenida de Paris. Tinha um sofá preto com uma televisão à frente. Quando eu chegava, ele estava a ver televisão, quando eu saía ele ia ver televisão. Atrás tinha uma estante totalmente forrada com os livros de que ele gostava. Biografias – ele sonhou em tempos escrever uma biografia do Hitler, mas como não sabia alemão não podia –, grandes clássicos ingleses de História. A sala era os livros e a televisão. Ele lamentava-se de que todos os amigos já tinham morrido, ou estavam nas mesmas condições que ele e já não saíam de casa. Portanto, estava cada vez mais isolado. E a ligação dele ao mundo era através da televisão.
E bebia uns whiskies pelo meio ou não?
Nas primeiras duas sessões, nem tocou. Nas outras, tinha sempre um copo de whiskey ao lado, o Bushmills, mas pouco ou nada bebia. Uma vez fiz-lhe uma entrevista e ele escolheu o Gambrinus para almoçarmos. A entrevista demorou umas quatro horas porque ele não se queria ir embora. O Diário de Notícias pagou uma conta de 111 euros: 73 de whiskey e o resto eram uns pastéis de bacalhau com arroz. Mas continuava lúcido a falar. Para ele era uma coisa normal.
A leitura desses livros todos – o Torga, o Saramago, o Lobo Antunes… – deve equivaler a um doutoramento em literatura portuguesa.
Creio que do Saramago são uns 40 livros, do Lobo Antunes uns 35, do Miguel Torga uns 15, da Filomena Mónica uns 25, 30 livros… O Lobo Antunes foi o autor mais difícil.
Porquê? Às tantas torna-se repetitivo?
Quando o Saramago ganha o Nobel, o Lobo Antunes perde o norte. E há ali quatro ou cinco romances, como o Eu Hei-de Amar uma Pedra, que se tornam insuportáveis de ler. Depois, regressa com grande força e, por exemplo, o Sôbolos Rios que Vão, para mim, será dos melhores romances da nossa literatura. Os últimos romances já voltam a ser bons. O Lobo Antunes tem o grave problema de ter nascido em Portugal. As pessoas gostam de ler as crónicas porque é um instantinho, mas não têm paciência para os romances. Acho que se houver no mundo inteiro mais cinco escritores como ele, é muito. Porque é um homem que nasceu para aquilo, só pensa naquilo, só vive para aquilo. É só literatura.
Disse-lhe isso, que ele tinha livros que se tornavam insuportáveis?
Não. A relação com o Lobo Antunes foi um pouco especial. A dado momento, pediu-me para ler alguns originais. Há dois ou três dois romances que eu li antes de ele mandar para a editora. E há um que ele começou a escrever e ao quarto capítulo teve grandes dúvidas. Então telefonou-me – e não me estou a vangloriar, porque não há nada pior para mim do que ter dar uma opinião a um escritor como o António Lobo Antunes – num domingo: ‘João, estou com um problema, acho que este livro não presta e queria ouvir a sua opinião’. Acabei de almoçar e fui a casa dele. Gostei do livro. Mas é aterrador termos o escritor a um metro de distância e nós a olharmos para o original e a termos que dar uma opinião. Agora, dizer o que achamos que são os defeitos dos livros? Tenho ideia que nenhum autor gosta disso. A menos que esteja a atravessar uma fase masoquista. E o Lobo Antunes jamais aceitaria que um livro dele fosse mau… Eu achava piada, que ele dizia sempre ‘o Antunes’. Ele, António Lobo Antunes, falava comigo sobre o Antunes.
Esta série está aberta à geração mais nova? Vai haver Uma Longa Viagem com Gonçalo M. Tavares ou Valter Hugo Mãe?
O Gonçalo M. Tavares dava uma ótima longa viagem porque é uma pessoa diferente. Tentei falar com ele mas recusou. Diz que ainda é muito novo, mas a mim não me interessa que eles tenham 80 anos. A fasquia não é a idade. Agora, o grande problema deste [Uma longa viagem com Maria Filomena Mónica], e também do do Vasco Pulido Valente, foi os leitores queixarem-se porque são muito pequenos.
Queriam mais.
Mas temos de pensar também no aspeto comercial. E um livro com mais de 300 páginas fica muito mais caro. Eu prefiro que o leitor me diga ‘eu gostava tanto de ter lido mais’ do que dizer ‘aquilo é um bocado chato ali no meio’.
Os japoneses defendem que se deve terminar a refeição com um bocadinho de fome.
Eu conto tudo o que for possível. Mas há a fasquia das 300 páginas. No caso deste, como no do Vasco Pulido Valente, acho que os leitores só pararam quando chegaram ao final. E o próximo também será assim. É um registo em que quero deixar os leitores esgotados.