“O problema da seca resolve-se com medidas estruturais, não com proibições”

O secretário-geral da Confederação dos Agricultores de Portugal (CAP) lembra que há planos com 50 a 60 anos para resolver o problema da seca que não saem do papel.

Foram anunciadas pelo Governo uma série de restrições para o Algarve. O que acha?

Só vi pedir restrições, não anunciaram nenhuma medida. Reduzir em 20% a quota de água para a agricultura é alguma medida? O Governo português anunciou isto, quando os espanhóis avançaram com um conjunto de medidas que envolvem o Ministério do Ambiente, da Agricultura, do Trabalho, das Finanças, da Coesão, etc. e que se traduzem em 2100 milhões de euros, mas porque querem ajudar os agricultores. Em Portugal não queremos ajudar, não temos nenhumas medidas e pomos a ministra a fazer um Livro Branco sobre a água e vai um mês depois dos espanhóis e dos franceses ao Conselho de Ministros a Bruxelas dizer que há seca na Europa, nomeadamente em Portugal, Espanha, França e Itália.

Mas na semana anterior já tinha proibido as culturas de olivais, abacates e frutos vermelhos devido à seca…

Isso é só demagogia e ideologia. Como não há água é suspensa a plantação de abacates e de outras culturas, mas isso é mesmo de ignorantes. Esta é a altura de plantar abacates? As plantações são feitas no outono. Isso é só para inglês ver, neste caso é para português ver. As medidas são todas demagógicas e não há uma medida concreta para ajudar o setor agrícola. Se houver diga-me qual. O que foi revelado não são medidas, são limitações. Imagine uma estrada com buracos e qual seria a medida do Governo para resolver o problema? É como dizerem: ‘Escusam de passar por aqui’ e como ninguém passa, o problema fica resolvido. Isto é, uma limitação não é uma medida. E o Governo constitui uma task force para não fazer nada. Para o ano, por volta desta altura, iremos estar a falar do mesmo, como já tinha acontecido no ano passado por esta altura. No ano passado também anunciaram que iam dar ajudas para a seca e nenhum agricultor as recebeu.

Mas para já estas limitações são só para o Algarve…

Sim, mas o problema da seca resolve-se com medidas estruturais, não se resolve com proibições. A seca deste ano não é igual à do ano passado. No ano passado ainda choveu alguns meses e depois é que se deu a seca. Este ano, desde janeiro que não chove. Enviaram-me agora uns vídeos de queda de água abrupta em algumas zonas do país, nomeadamente na Amareleja, onde nunca chove. Não fizemos obras para reter água e quando ela cai ficamos sem nada à mesma.

Arriscamos a estar todos os anos a falar do mesmo…

Vamos ser pragmáticos. Para o ano vamos estar a falar do mesmo. Mesmo que se decida fazer alguma coisa não estará nada feito em 2024. É como se fosse uma espécie de aeroporto da água, em que nunca se toma decisões. Há planos com 50 ou 60 anos para responder a este problema e o Alqueva era uma dessas peças, mas só se fez o Alqueva. Em relação ao resto não se fez mais nada.

E isso passaria pela criação de novas barragens?

Não pode haver mais Alquevas porque não há Guadianas para o fazer. O Douro tem barragem, o Tejo pode e deve ter uma intervenção, fora isso, temos de ir aos rios mais pequenos e fazer o que Espanha já fez. Há planos feitos para se fazer ligações, está tudo estudado, não é preciso mais, mas o que é preciso é atualizar esses planos com uma nova tecnologia. Portugal podia ter apostado uma parte do PRR [Plano de Recuperação e Resiliência] nessa resiliência para a água e não fez nada. Zero. Tem cento e tal milhões para a barragem do Pisão, ao lado de Portalegre, quando Espanha põe 25 mil milhões nessa área, isso mostra que o nosso valor é irrisório. Portugal ignorou a resiliência para a água e perdemos essa oportunidade, normalmente não temos dinheiro para fazer esse tipo de intervenções e agora que tivemos desperdiçámos a oportunidade.

Não se pode falar agora de falta de verba…

Falta de verba não é. É falta de ambição. E também não é falta de água, nem precisamos dos espanhóis, ao contrário do que dizem muitos. Temos a água que cai no nosso território e tem um grande potencial para ser utilizado, o problema é que não fazemos nada por isso e depois quando o rio que vem de Espanha seca dizemos que a culpa é deles.

Então qual é a solução?

A solução nasce de um conjunto integrado de medidas. Primeiro, temos de ver o que há em termos de águas superficiais e águas subterrâneas. Temos muita água subterrânea e, por isso, devemos fazer uma gestão integrada das duas. Depois temos de ver a questão dos regadios públicos e dos privados, assim como a gestão das barragens que estão hoje concessionadas para produção de energia elétrica. O problema da água não é só por causa da agricultura, é também por causa do consumidor e da indústria. É de todos e Portugal tem muitos planos, mas tem de os executar. Esse é um problema português, o mesmo se passa com o aeroporto, ainda não se sabe onde é que vai ser construído e até já estão a ser estudados nove sítios. É preciso fazer o que se fez no Alqueva: construam, porra. Por exemplo, nas barragens onde há água e onde chove estão com concessão hidroelétrica, ou seja, só servem para produzir energia e a empresa que pagou a concessão não a larga, porque pagou para isso. No ano passado, as barragens secaram todas e foi por causa da seca? Não, foi por causa dos preços elevadíssimos da energia elétrica devido à guerra na Ucrânia. E as concessões nas barragens que serviam para produzir energia, assim que os concessionários viram os preços a subir turbinaram a água toda até à última gota. Foi por isso que se viram pontes e aldeias que nunca se tinham visto e que estavam debaixo de água. É verdade que também não choveu muito, mas não foi por isso que as barragens ficaram secas a norte, foi por causa da necessidade de produzir energia e foi também devido ao erro cometido de desmantelar as centrais de carvão para depois andarmos a comprar energia a Espanha com centrais de carvão piores do que as nossas.

Vão estar presentes na task force?

Ninguém nos convidou, como vamos para criticar não nos devem lá querer. Mas isto tem algum cabimento? Em cima do problema vão criar um grupo de trabalho para quê? Para fazerem a dança da chuva? Esta é uma questão que tem de ser elaborada e para se fazer qualquer coisa, a minha primeira pergunta é: ‘Qual é a verba que há’? Uma coisa é termos mil milhões, outra é termos cinco mil milhões e outra é cem milhões. Qual é a disponibilidade? É para fazer ao longo de 10 anos ou em cinco anos ou é para nunca se fazer? É preciso tomar decisões e avançar no sentido de uma gestão eficiente da água e, como já expliquei, há um conjunto de vertentes para serem conjugados: as águas superficiais, as águas subterrâneas, os regadios públicos e os privados. É preciso uma gestão integrada de tudo para que haja um uso eficiente da água e para depois não se vir dizer que a agricultura desperdiça 50% da água. A Associação de Beneficiários do Mira tem uma perda de 50% e porquê? Da barragem até ao sítio onde é regado são 40 quilómetros de canais de rega, que são do Estado e há 60 anos que não trata daquilo. Ora, aquilo tem buracos e fugas por todo o lado e, por isso, mesmo que ninguém utilize chega-se ao fim e perde-se a água.

O Governo não pode ficar surpreendido com esta situação…

Sabe disso tudo. Há um documento feito a pedido da ministra com um levantamento dos 2200 perímetros públicos de rega. O estudo está bem feito e o Governo sabe quais são os problemas. Se perguntar às pessoas: ‘Então a agricultura desperdiça muita água?’. Todos dizem que sim, principalmente os ambientalistas, mas ninguém diz que o desperdício é feito nas estruturas que são públicas, em que não é feita manutenção há dezenas de anos. O agricultor quando vê a água a chegar à sua porta tem sondas, tem rega gota a gota e tenta rentabilizá-la da melhor maneira. Por exemplo, em relação ao perímetro de rega do Mira, primeiro foi feito o perímetro com certas características e só depois é que foi feito o Parque Natural do Litoral Alentejano, após já estar feita a concessão. Estava previsto regar dois mil hectares quando rega seis mil. Também a barragem de Santa Clara foi feita com tecnologia antiga e na zona em que não se consegue bombar água pelo sistema que existe dá para uns quatro ou cinco anos de rega.

Considera que a agricultura é usada como bode expiatório, assim como os campos de golfe?

Sem dúvida, mas também acho piada aos campos de golfe. Então e os ginásios? E as pessoas que lavam carros na cidade e as câmaras que andam a gastar água de toda a maneira? Depois vêm com a conversa das águas residuais. Então vou acartar água residual de Lisboa para regar no Alentejo? Isto não cabe na cabeça de ninguém. É óbvio que as águas residuais são uma solução de utilização para quem está perto das cidades. Mas é com isso que vamos resolver a falta de água na agricultura? Só se tivermos a delirar e não conhecermos a quantidade de água que é necessária para o setor. Tenho ouvido pessoas, que dizem ser cientistas, a dizer que a água sai das estações de tratamento e que a deitamos para o rio. Então querem pôr a água no bolso? As pessoas não pensam. Em relação à estação de tratamento de água de Alcântara meto a água aonde? Meto-a em garrafões para transportá-la para o Alentejo? Faço um pipeline de Alcântara para o Alentejo? As pessoas não pensam nisso. São delírios mentais. Em Mértola, as pessoas dizem que não há água e daqui a três meses nem vão ter água para dar ao gado e uma vaca bebe 80 litros de água por dia. Se eu tiver cem vacas são oito mil litros por dia. Nesse caso tenho de ir buscar água e tem de haver alguém que me arranje. Tenho de arranjar um camião para ir buscar e que me transporte. Uma vaca pode estar um dia ou dois sem comer, mas não pode ficar sem água e depois as pessoas ficam muito impressionadas porque há agricultores a matar metade dos animais, mas não percebem que não têm comida para lhes dar e a que há é caríssima e que eles não têm dinheiro para a comprar. É a única solução que têm, não há outra alternativa.