Dostoiévski. A escrita da noite

Cadernos do Subterrâneo, que já foi descrito como ‘uma pequena obra-prima, algo obscura e intricada’, marca um ponto de viragem no percurso de Dostoiévski. Quase ignorado na sua época, é hoje um livro de culto e uma chave para compreender a obra do escritor russo.

Sinónimo de clandestino, oculto e marginal, a palavra ‘subterrâneo’ goza na nossa sociedade de uma reputação duvidosa. Em sentido literal, os subterrâneos das cidades são a rede invisível, abaixo da superfície, que alberga as caves, os alicerces, os parques de estacionamento, túneis do metropolitano, poços, galerias, condutas de água e de gás e sistemas de esgotos – para não falar dos restos mortais dos defuntos que são depositados debaixo da terra nos cemitérios. Um mundo húmido, muitas vezes sujo e mal ventilado, onde não chega a luz do dia. Em sentido figurado, o subterrâneo está associado ao obscuro e ao ilícito.

«A escrita diurna, como lhe chama [Ernesto] Sábato», notou o crítico literário Claudio Magris em Alfabetos (ed. Quetzal), «permite-lhe escrever o que ele conscientemente pensa, ama, julga, condena, espera, considera justo ou inaceitável; é a escrita em que ele dita as suas tábuas da lei, os seus sentimentos, as coisas em que crê, as infâmias contra as quais se rebela».

Mas esta é apenas uma das faces da moeda. Depois, existe uma outra dimensão, uma dimensão oculta. «A escrita noturna, pelo contrário, confere voz a personagens fantasma, faz com que fale um outro dentro dele e que, uma vez por outra, o desconcerta, porque diz coisas opostas ou diversas do que ele normalmente professa». Continua Magris, a propósito de Ernesto Sábato (mas também poderia estar a falar sobre Dostoiévski): «A escrita noturna faz falar os monstros da noite, o mal, os delírios de Eros, a loucura e a devastação».

Foi precisamente o que fez o escritor russo na novela de culto Cadernos do Subterrâneo – recentemente reeditada pela Presença, com tradução assinada por Nina e Filipe Guerra -, a novela que, nas palavras de Joseph Frank, autor da aclamada biografia em cinco volumes de Dostoiévski e o maior especialista na obra do romancista russo, «marca o ponto de viragem na carreira literária de Dostoiévski, o ponto em que descobriu o seu estilo maduro».

No livro que assinala o início do seu grande período de criatividade, o autor recorreu à metáfora desse mundo inferior para relatar uma espécie de descida aos recônditos do inferno interior.

Se os valores do Iluminismo, no século XVIII, preconizavam o constante progresso técnico e intelectual, que levaria também ao aperfeiçoamento moral do homem, o escritor russo debruça-se aqui sobre a degradação e os impulsos mais vis que palpitam no nosso âmago. Como se estivesse a explicar-nos que a superfície racional, afável, respeitável, conforme com as normas e as convenções não esgota de modo algum a complexidade do universo humano. Se somos livres, há a possibilidade de nos elevarmos, claro, e até de nos desembaraçarmos dos nossos defeitos; mas há também a de nos rebaixarmos até atingirmos uma condição verdadeiramente sub-humana. Por isso não falta quem goste de chafurdar no lodo.

E assim, Dostoiévski criou essa personagem quezilenta, implicativa, depravada, raivosa, misantrópica, a espumar de ódio e de rancor pelos seus semelhantes: o Homem do Subterrâneo. «Cadernos do Subterrâneo é uma pequena obra-prima difícil, algo obscura e intricada, hoje muito famosa», continua Frank em Notes on Dostoevsky. «O Homem do Subterrâneo tornou-se uma figura simbólica da revolta contra a razão na cultura moderna e foi tomado como um representante ora das hediondas, ora das gloriosas potencialidades da psique humana (consoante o ponto de vista)».

Medo de se revelar a si próprio 

Deixemos agora o personagem dostoievskiano, um funcionário público de baixa patente, «maldoso» e «grosseirão» (é o próprio quem o assume), falar na primeira pessoa: «Chegava a ponto tal que, ao regressar ao meu buraco em alguma daquelas abomináveis noites peterburguenses, sentia um prazer secreto, anormal e infame na forte consciência de que, também nesse dia, fizera uma porcaria, de que o meu feito era irremediável, e então roía-me, roía-me por isso com os dentes no meu íntimo, serrazinava-me até tal ponto que a amargura se transformava numa espécie de doçura, vergonhosa e maldita, e, por fim, numa delícia a sério, autêntica!». Acerca do estilo destas páginas, diz Nabokov: «A maneira [como fala] reflete o homem. E Dostoiévski pretende fixar esse reflexo numa fossa de confissões através dos modos e maneirismos de uma pessoa neurótica, exasperada, frustrada e horrivelmente infeliz». O adjetivo ‘masoquista’ também parece particularmente apropriado.

Ouçamos de novo o Homem do Subterrâneo: «Sou desconfiado e ressentido, como um corcunda ou um anão, mas, francamente, havia momentos em que, se me dessem uma bofetada, ficaria até satisfeito. Falo a sério: acho que disso retiraria uma espécie de prazer um prazer de desespero, evidentemente, mas é em desespero que acontecem os mais pungentes prazeres».

Sigmund Freud, que tinha oito anos à data em que Dostoiévski escrevia a sua novela, haveria de estudar estes misteriosos e fascinantes mecanismos da mente. Graças a ele, podemos também entender o subterrâneo de que fala o escritor russo como a grande cave escura do inconsciente, onde armazenamos o mobiliário incómodo para ao qual preferimos virar as costas. «Nas recordações de qualquer homem, há certas coisas que ele não revela a toda a gente, apenas aos amigos», diz-nos o protagonista do livro. «Há outras que nem aos amigos ele revelará, apenas a si mesmo e só secretamente. E, finalmente, há outras que o homem até a si mesmo tem medo de revelar e qualquer homem decente acumula bastantes recordações dessas». Dostoiévski (como Freud depois dele), segurando uma candeia na mão, leva-nos numa visita guiada pelos meandros desse lugar ignoto onde não chegam as luzes da razão.

O annus horribilis de Fiódor

No ano em que redigiu os Cadernos do Subterrâneo, que descreveu como um trabalho «demasiado estranho, áspero e louco, capaz de não agradar», Dostoiévski vivia ele próprio um dos períodos mais negros e difíceis da sua vida. Em 1863, o jornal que dirigia, o Vremya (Tempo) tinha sido encerrado por causa de um equívoco. Mas bem pior estava para vir. «A sua primeira mulher, Marya Dimitrievna, morreu em abril de 1864, depois de uma longa e angustiante doença», explica Frank no quarto volume da sua monumental biografia. «O casal há muito que tinha rompido os laços emocionais, mas Dostoiévski nunca deixou de ser devotado à pessoa que outrora tinha amado loucamente e que lhe tinha proporcionado um módico de estabilidade familiar. Três meses depois, o seu amado irmão Mikhail, que tratava das questões financeiras dos seus jornais, foi morto súbita e inesperadamente. As duas pessoas no mundo de quem Dostoiévski tinha sido mais próximo desapareciam assim neste curtíssimo espaço de tempo».

Por essa altura, revelava Nikolai Dostoiévski, irmão mais novo do escritor, numa carta: «Ele trabalha toda a noite, nunca vai para a cama antes das cinco da manhã». E concluía, «na minha opinião, é o mais infeliz dos mortais».

Esta não era de modo algum a primeira provação por que o autor passava. Nascido em 1821, o seu pai era médico num hospital público de Moscovo, com um salário que mal chegava para sustentar a família. Além das dificuldades de ordem financeira, o progenitor comportava-se como um pequeno tirano, e acabou assassinado em circunstâncias misteriosas quando Fiódor tinha 17 anos. O parricídio será um dos grandes temas ‘interditos’ na obra de Dostoiévski.

Apesar de ter estudado na Academia Militar de Engenharia de S. Petersburgo, Fiódor interessava-se muito pouco pela carreira de armas – a sua atenção ia quase toda para a literatura. Em 1846 publicou o seu primeiro livro, Gente Pobre. Vladimir Nabokov conta que, apesar dos receios do autor de que o livro se tornasse alvo de chacota, Gente Pobre foi um sucesso enorme, em parte graças ao entusiasmo imediato do grande crítico da época, Nikolay Nekrasov, que de uma penada era capaz de fazer ou desfazer uma reputação. O mesmo não aconteceu com O Duplo, também publicado em 1846. Se Nekrasov o tinha considerado «o novo Gogol», Turgenev, revela Nabokov, «chamou-lhe uma nova borbulha no nariz da literatura russa».

Idealista e revoltado com a condição dos servos russos, reduzidos a pouco mais do que escravos, Dostoiévski mergulhou na política e envolveu-se com círculos radicais. A incursão saiu-lhe cara, acabando detido juntamente os membros de um grupo secreto. «Esperou pelo julgamento na Fortaleza de S. Pedro e S. Paulo, cujo comandante era um General Nabokov, um antepassado meu», continua o autor de Lolita. «A sentença foi severa – oito anos de trabalhos forçados na Sibéria (mais tarde comutados para quatro anos pelo czar) – mas um procedimento monstruosamente cruel foi levado a cabo antes da leitura da sentença aos condenados: foi-lhes dito que iam ser fuzilados; foram levados para o lugar indicado para a execução, tiraram-lhes as camisas, e a primeira fileira de prisioneiros presos aos postes. Só então a verdadeira sentença lhes foi lida. Um dos homens enlouqueceu. A experiência desse dia deixou uma cicatriz profunda na alma de Dostoiévski. Nunca a ultrapassou completamente».

As suas crises de epilepsia foram seguramente agravadas por esse e outros traumáticos acontecimentos.

O desencanto com a Europa

Durante o exílio na Sibéria, Dostoiévski retomou a prática da escrita, tendo redigido A Aldeia de Stepachnikovo e os Seus Habitantes e Recordações da Casa dos Mortos. Foi também aí que se casou com a primeira mulher, com quem, já liberto, viajou pela Europa. Nas suas andanças pela Alemanha (onde não resistia ao apelo da roleta…) e por Inglaterra, apercebeu-se de que as ideias políticas do Ocidente que advogara na juventude, e que o tinham levado à prisão, eram impossíveis de implementar em solo russo, onde só poderiam ter um resultado pernicioso. De regresso a casa, passou a apoiar o novo czar, Alexandre II, que havia decretado a libertação dos servos, ainda que em condições que certos grupos continuavam a contestar.

É também disso, explica Joseph Frank, que trata Cadernos do Subterrâneo. O Homem do Subterrâneo é justamente o arquétipo desses radicais que se empenham em criticar e em destruir tudo, mas alguém que ao mesmo tempo leva os princípios advogados por Tchernichévski, o grande farol dos revolucionários, autor da imensamente influente novela Que Fazer?, às últimas consequências e fica enredado nas contradições do movimento. No fundo, a sua atitude só acaba por conduzir à sua ruína moral, mental e financeira.

Uma lufada de ar fresco

Cadernos do Subterrâneo está dividido em duas partes. Na primeira, somos convidados a espreitar para o interior da cabeça complicada do estranho personagem. Na segunda parte, intitulada ‘Por motivo da neve húmida’, o Homem do Subterrâneo conta-nos um episódio passado vinte anos antes, em que sai da sua toca e se faz convidado para um jantar de despedida de um círculo de amigos que ele conhecia dos tempos da escola, mas a que nunca tinha verdadeiramente pertencido. Aí, o ambiente viciado do subterrâneo dá lugar ao ar livre, às ruas cobertas de neve e a uma sala de jantar requintada, onde evidentemente o protagonista se sente tremendamente inseguro e deslocado. O jantar, que seria de festa, transforma-se rapidamente numa farsa burlesca, e depois o grupo segue para um bordel.

Nabokov, que não apreciava especialmente Dostoiévski, não poupou elogios a este episódio. A ferver de raiva, o Homem do Subterrâneo persegue os convivas e, no bordel, encontra uma prostituta, Liza. Por momentos, parece que cada um destes seres desencaminhados pode servir de tábua de salvação ao outro…

Joseph Frank insiste nas implicações políticas da novela e nas convicções religiosas do autor. A propósito do Palácio de Cristal referido pelo narrador horrorizado (expoente da arquitetura do ferro, que o próprio Dostoiévski vira em Londres e considerava o símbolo acabado do materialismo do Ocidente), comenta: «Ao mesmo tempo que está perfeitamente disposto a admitir que há algo de muito tentador em viver puramente numa base racional, e ter o trabalho e a coesão social assegurada, o homem é um bicho estranho (chudak) e não quer viver segundo esses cálculos», considera. «Parece-lhe que isso também é uma prisão (tal como as utopias socialistas foram comparadas a prisões) e que o que ele quer é permanecer completamente livre. E preferia ser esfolado vivo e morrer à fome, a abdicar da sua liberdade para viver num tal mundo ordenado racionalmente, em que nunca podia fazer o que lhe apetecesse porque os seus interesses já tinham sido definidos antecipadamente». O Palácio de Cristal será, pois, uma espécie de esplêndida gaiola.

Em sintonia com o seu personagem, o autor abomina uma sociedade de marionetas felizes. Prefere viver na mais completa abjeção a abdicar da possibilidade de escolha. Mas não nos deixemos iludir. Como Frank também alerta, seria um erro tomarmos as ideias do Homem do Subterrâneo pelas do próprio Dostoiévski.

Tal como o Elogio da Loucura não é um elogio da loucura e da estultícia, antes uma denúncia do ridículo e dos abusos (nomeadamente dos homens da Igreja) do tempo de Erasmo, Cadernos do Subterrâneo não é a heroicização de um imbecil, egoísta, de um amputado moral e sentimental que execra o mundo à sua volta e prefere as torturas da solidão a ter de suportar a companhia dos outros. É uma assunção de que o irracional também faz parte de nós, um assumir das próprias falhas. Ao mesmo tempo, mostra-nos como alguém que se gaba da sua inteligência e despreza toda a gente, se torna refém do seu orgulho e megalomania, acabando como que sepultado em vida. Cadernos do Subterrâneo dá voz a um louco que se compraz na sua loucura abjeta, alertando-nos para que evitemos cair na mesma armadilha. Daí a aparente contradição de o protagonista do livro ver com tanta clarividência a natureza dos seus defeitos e, ao mesmo tempo, nada fazer para os combater. Passe o paradoxo, é um cego que vê e descreve a sua cegueira com redobrada nitidez.

«Talvez tenha sido dado a Dostoiévski», notou Henri Troyat na sua biografia do escritor russo, «no curso das suas crises de epilepsia, alçar-se ao cimo do muro e abarcar com o olhar a extensão interdita. Volta a cair deslumbrado, ofuscado, com o remorso no coração desta visão maravilhosa. Mas ele viu, ele viu!… Ele é um dos únicos que viram. Confessa-o no homem do subterrâneo. E o homem do subterrâneo torna-se a chave de toda a sua obra».

Uma palavra final para a tradução deste texto de culto. Nina e Filipe Guerra conseguem transmitir através da sua linguagem todas as nuances da estranheza, vileza e peculiaridade, como na seguinte passagem: «Porque é a jogar com as palavras que eu sou bom, a malucar coisas na minha cabeça, e o que eu quero, de facto, é isto – que vão para o diabo todos vocês, é isso que eu quero! Quero sossego». Não elogiar o trabalho dos tradutores, como sempre notável, seria como no final de um recital aplaudir a partitura e ignorar o talento do intérprete.