Natália Correia. “A maviosa maldade musical”

No ano em que se assinala o centenário do nascimento da poeta açoriana, a reedição da sua obra poética surgiu como uma nota de rodapé face ao destaque dado a uma portentosa biografia, persistindo a imagem da figura pública enquanto a recepção crítica que a obra merece continua à espera de uma geração de leitores…

É difícil salvar muita coisa tal como está na obra poética de Natália Correia. Damos ali por alguns efeitos radiantes esmagados muitas vezes por uma retórica cheia de palavras postiças. Há nela tanta coisa de insuportável, naquela grandiloquência enjoativa, que nunca lhe assentou bem como uma segunda pele, mas parecia um disfarce, uma forma de se atirar das escadas das convenções e esperar que, nesse momento de desequilíbrio, o seu evidente dom a salvasse. Porque esse é inegável, e aquela capacidade de, no meio da barafustação, tocar o nervo, entre tiros de canhão que não se sabe bem que fim levaram, alguns dardos subtilíssimos e mortíferos, a cólera das imagens exactas, às vezes o mero domínio do ritmo, que, sempre que não nos deixa exaustos, nalgumas estrofes causa em nós uma vertigem soberba. É uma poesia que pede uma forma de erosão sumptuosa, de que ficassem esses pedaços cintilantes, como parece que ocorreu com Safo, que viu a sua obra, reunida pelos alexandrinos em nove livros, implacavelmente destruída pelos cristãos nos séculos IV e XI, por os seus amorosos versos serem dirigidos às raparigas de que vivia rodeada, e assim, dos onze ou doze mil versos que terá escrito, apenas sobreviveu uma ode completa e uns 200 fragmentos, a maioria provenientes de citações de gramáticos, retóricos e outros autores que deixaram um rasto dessa convivência encantada, versos copiados à margem da obra, fulgores que resplendiam na vida íntima de alguns leitores, e que guardaram essas senhas arrebatadoras. Em Safo esses restos levam-nos a um efeito de deslumbramento pelo modo como essas ruínas nos entregam ao pressentimento de um todo magnificente, mas o certo é que tantas vezes os descuidos do tempo provam uma rara sageza. Natália Correia teria muito a ganhar com uma profunda elisão do maço de 400 folhas com poemas de um lado e de outro. Mais valia uns trechos sumptuosos, e esta foi uma poesia torrencial e que tantas vezes sufoca os seus momentos de verdadeiro rasgo. Fixemo-nos neste vulto: “Adão depois do paraíso/ errando mais nítido à distância/ onde te exalto porque te demoras.”

Natália começa por ser mais interessante do que tantos outros poetas mais contidos, equilibrados, capazes de um nível de depuração que fez das suas obras museus de um pasmoso rigor, jardins que actuam num esforço de composição meditativa e serena, agradável, por ela preferir o vigor do sobressalto, e, com todo o seu apego pela vasta tradição lírica, ter tido a noção de que valia mais emparceirar com esses que estavam tomados de um ânimo dado ao vandalismo. Isto perante uma época em que a tendência é sempre para levar a uma nulificação dos antagonismos e das tensões de modo a propiciar esse regime do espectáculo que tudo integra e esvazia, mesmo os gestos mais enfáticos e rudes do seu sentido transformador. Assim, talvez lhe fosse mais fácil ver a poesia emergir nesse ringue “onde bichos e anjos se devoram/ por uma côdea de imortalidade”. O seu desejo de não se ficar pela superfície, por essa “ausência de deus pastando um monge”, vem da visão religiosa da existência, uma  capacidade de escapar a enredos menores e, através de uma poderosa imaginação metafórica, poder abranger os elementos de contraste, a tessitura expansiva do mundo e da vida, que estão mais de acordo com os cultos pagãos, e que se afastam dessa relação asfixiante das religiões monoteístas. Desde logo, havia nela uma maturidade espiritual que escapa à maioria desses talentosos arrumadores de palavras, pois Natália sabia que a função da inteligência é prosseguir o esforço de criação da própria realidade e como a vida não é dada, mas apenas nasce de um esforço e de uma razão estupenda: “Para que se justifique a nossa vida/ É preciso que alguém a invente em nós”.

Assim, e em lugar desse “grito abafado de anjos deficientes”, há nela um ímpeto que se mantém estranho a esta terra, impossível de integrar a razão lúcida e provocante, aquele entusiasmo pelo risco e pelo desafio, o ter-se lançado na aventura do conhecimento sem grandes pruridos nem cálculos, sem se deixar esmagar pela sua vaidade, a um tal ponto em que deixasse escapar a oportunidade de um ajuste de contas frente a um tempo que lhe foi tantas vezes traiçoeiro. E ainda hoje assim é, pois se Natália nunca gozou de grande fortuna crítica, especialmente no tocante aos versos, e sendo que ela se via acima de tudo como poeta, embora se desdobrasse ainda como dramaturga e romancista, cronista, ensaísta, editora e tradutora, tendo-se entregado durante uns bons anos e com grande empenho à actividade parlamentar, foi sempre para os versos que se virou quando queria puxar o adversário para um terreno onde a sua vantagem fosse clara, para ali se voltava para terçar armas, fazendo lembrar a postura dos jograis, o gosto de se encarniçar e dar margem a esse tumulto avassalador para que sejam por fim ditas as coisas que habitualmente calamos, pois o escárnio é uma libertação do génio aprisionado.

Mas com toda essa desenvoltura ferina, teve de esperar pelo centenário para que fosse encomendada uma biografia, espiolhando aspectos que interessam mais a esse resíduo de intriga moral, atraindo “o formigueiro do folclore consumista”, e só assim, por um momento, abandonou o limbo em que tem permanecido desde a morte, mas apenas para ser reforçada a sua aptidão como mais um ícone provinciano do nosso presépio cultural. Ora, isto é feito por uma editora que, desde o nome que desavergonhadamente foi buscar à editora onde Luiz Pacheco deu a lume três opúsculos de Natália, deixando nota da sua admiração, não apenas pela sua “opulência verbal”, o seu talento para orquestrar bem os sons e ritmos num balanço que se sabe valer da tradição no que toca ao domínio da forma, mas imprimindo-lhe a força do “seu canto de sereia experimentada, abusiva”. Ele mediu nela esse diálogo permanente com a tradição, o qual depois lhe dava maior segurança nas suas erupções, deixando o magma assentar enfim e dar forma a uma “paisagem carnal, fundida num só amplexo projectado em ternura e memória”. Se Pacheco nos lembra que Natália não seria possível poeticamente sem um Cesariny, nela os ecos não surgem como meros enfeites dependurados, mas estão em diálogo, trabalham-se mutuamente, e vemos movimentos tensos que, como assinalava Fernando de Castro Branco, vão do “puro lirismo dos cancioneiros à opulência das formas barrocas, da funda emoção romântica até à visão onírica surrealista, da explosão expressionista à implosão simbolista pelo exemplo de Pessanha e modernista pela lição, embora matizada, de Pessoa”.

Na recensão que fez da “Antologia Poética”, organizada por Fernando Pinto do Amaral, e que assinalou os vinte anos da morte de Natália, Castro Branco vincava esse aspecto crucial dos seus poemas e ensaios, que é a forma como, mais do que uma mera visitação, esta se elabora colocando em perspectiva uma vasta galeria de vozes, que vão de “D. Dinis a Gregório de Matos, de Mendinho a D. Tomás de Noronha, de Camões a Bocage, de Antero a Nemésio, de João Cabral a Cesariny, de Pascoaes a Junqueiro, de Nobre a Gomes Leal, de Florbela a Sena, do Almada de A Cena do Ódio ao Régio do Cântico Negro, de Pessoa a Sá-Carneiro, de García Lorca a Rosalía de Castro”. E isto marca uma diferença radical face às formas tão inócuas de alguns poetas contemporâneos se reclamarem de um certo pendor intertextual e referencialista, um culturalismo que aparece como um abcesso, sem aquela capacidade de promover uma nova vida, um articulado clamor que possa desgrenhar essa relação de ideias feitas, numa respiração forte e numa linguagem esplendidamente talhada.

A poesia começa por esse refortalecer espantoso, que nos faz remontar ao espanto originário daquelas ligações e vínculos que vieram depois a perder-se, essa intimidade entre “a boca o fruto e o sabor”, o enredo subtil que nos faz intuir a sabedoria do que nos cerca e descobrir no mel “uma harmonia/ enfeitiçada do infinito”. Nos mestres aprende-se a dominar esses impulsos, arroubos e saltos do espírito. “Uma voz exercita-se em vocalizos se quiser cantar a preceito, depois”, lembra Pacheco, e daí essa habilidade que vemos em Natália para “entre parêntesis de fogo” nos fazer experimentar “a indolência do nenúfar”, construindo esses encadeamentos ao mesmo tempo antigos e tão novos, reconhecendo algo tão crucial como isto: “Recebemos dos mortos a encomenda de cantar a vida/ Para defender a sua área/ Da invasão dos suicidas.”

Num outro texto, ainda nos adianta como o que o morto mais faz é rir-se: “O riso é o seu reino inesgotável. A estação violenta de decifrar os vivos.” Depois esclarece que, na verdade, não há além. “Há vaivém. O trabalho do escaravelho que no sonho da múmia carrega às costas a eternidade.” E acrescenta ainda: “Tenho mortos vivíssimos como estrelas ferozes rangendo a impalpável vingança da higiene que os sepultou”. Estes mortos surgem-nos assim como “esplendorosos fragmentos de um deus insaciável que sonha a nossa vida”. E se os ecos vão comparecendo num trânsito intenso, desde logo nas tantas epígrafes que vão pontuando os livros, não faltando também as evocações, homenagens e esses sinais de um convívio admirativo, há depois também “outros espectros que andam de pijama na intimidade”. No fundo, um grande poeta é um ser que refaz a esperança na arte da conversa, num fio que atravessa os séculos, e que não perde nessa ampla perspectiva a capacidade de se sentir abismado diante do talento de quem estando vivo e próximo por muitos é sentido como uma ameaça. Note-se o reconhecimento profundo e tão raro que encontramos em versos como estes: “Há o Cesariny cada vez mais a espinha dorsal/ Dum adolescente que ficou perdido pela idade de ouro./ E é nesse cabide que ele pendura como um ritual/ Uma camisola de onde se escapou um mágico louro.”

E, assim, com este balanço não há depois excessivas angústias em relação a eventuais influências. E Natália pode andar entre elementos que se contrastam e alcançar variações muitíssimo improváveis, pois do enredo que se formula a partir dos mestres que vamos sabendo escolher e merecer, algo de inusitado nos cativa. Assim, num momento nos dirá que “Hoje apetece que o cigarro saiba/ A ter fumado uma cidade toda”, que poderiam ser versos de Álvaro de Campos, para no momento seguinte levar um encontrão de Rimbaud ou apanhar uma dessas composições surrealistas que vão “emaranhando a paisagem”, de tal modo que pode olhar os gestos próximos de alguém e dizer-lhe: “Teus dedos num relógio como a picada duma abelha/ A fabricar o mel da estação perdida!/ Que quanto a primavera um rouxinol na telha/ É toda a melodia que traz na unha a vida.”

E depois há em Natália essa capacidade de ler e ser a intérprete da própria vida, aprimorar os signos, renascer com cada reflexo: “Mais do que a boca era a sede que bebia/ a água: rio do mundo/ com outro mundo nas águas anunciado.” Contudo, Natália define-se por essa tensão vibrante de quem faz de tudo para não se deixar reter em superfícies mortas: “Não ficarei nos charcos como um bicho/ a devorar-me na sombra do meu gesto./ Não dançarei na boca das raízes/ o bailado nocturno do meu resto.” Noutro momento, reflectindo sobre o próprio efeito de nomeação e o que isso provoca, ou sobre o papel instabilizador que deve ter a poesia, anota: “E eu/ Que troco o nome de todas as coisas/ Porque as coisas que têm um nome/ Estão afogadas na sua imagem mais finita/ E perceber o erro da evidência/ É descobrir que Deus é Deus/ Porque recusa uma aparência?”

Esta é uma poesia desafiante pela forma como nela há uma margem invulgaríssima para a imperfeição, o lado experimental, isto apesar do manejo da técnica versificatória, que se vai servindo dos modelos tradicionais da estrofe, da métrica, da rima, precisamente para contrabalançar todo o desacato do conteúdo, com aquela atracção pelo lado dionisíaco da vida, como se não conseguisse tirar os olhos da “raiz da vida apodrecendo ao fundo”, e houvesse um temor diante da impermanência das coisas (“pairas como um aroma na aragem”, escreve a certa altura, e no mesmo poema, tem esta estrofe: “Se eu pudesse fazer com que coubesses/ Num grão de trigo como um sol parado/ E me desses um pão todas as vezes/ Que a minha fome te sonhasse ao lado!”) instigando aquela urgência toda que se sente nos versos e que deixa claro como Natália estava empenhada em esgotar a existência. “Acaso de um planeta alcoólico/ somos inocentes nativos/ e existimos pela bebedeira/ de pensar que estamos vivos?”

Há sempre uma noção de que o corpo vale como uma razão, que contém em si os elementos essenciais para descobrir um rumo. “Aqui és corpo; e injuriar o corpo/ É pisar a sombra do divino./ Lúcida a carne, num fugaz milagre,/ É de eternos assuntos a medida:/ De ar, água, terra e fogo sumidade,/ Lugar de amor onde se ganha a vida (…) Vem das estrelas o sangue que nos guia/ E em amorosa perfeição na carne/ Está toda a eternidade resumida.”

“Irei em carne luminosa de cometa”, escreve ela noutro poema, e há sempre um sentido de vertigem e abandono, uma confiança profunda na ideia de que a beleza dá origem em nós a um outro órgão extremamente fino e perceptivo. “Onde vos retiver a beleza de um lugar, há um deus que vos indica o caminho do espírito”, notou em tempos. E há depois essa forma como na consciência as coisas se dão muito antes, e como depois a vida é só uma cerimónia, um ir ao encontro do que já se sabe, como se nos cumprisse apenas o ritual de chegarmos onde somos esperados: “Possui-se a morte progressivamente/ como um corpo antes de ser tocado./ E tão fundo nosso sonho o penetrou/ que nos gestos ficou continuado.”

E aqui vale a pena fazer balançar a perspectiva num parêntesis recordando que estes versos pertencem a um poema que surgia em 1955, dedicado “Ao Francisco Sousa Tavares”, e de que, para lá do que alimenta os rumores, ficou a sensação de que, na poesia portuguesa, Natália foi a outra, ao passo que Sophia era a legítima, ficando-lhe reservadas as honras de salão, sendo certo também que, com esta, não nos permitimos certos actos indecorosos que ficam como radiosos “acidentes dum mapa proibido”. Ora, em muitos sentidos, ao lirismo de feição clássica que associamos a Sophia, em que a clareza da expressão promete umas tréguas face à desordem e ao conflito que caracterizam a relação entre os homens, em contraste com esse itinerário poético impregnado de positividade, Natália surge-nos como uma poeta invadida pelos estilhaços do mundo, e não tem nada da atitude de vestal, entregando-se ao confronto mais dilacerante, e sendo mais íntima da beleza nos momentos em que esta admite um elemento de grave desolação. Se Sophia era essa presença que, de acordo com o companheiro, "tinha sinais do seu Deus na confusão dos homens", em Natália há esse frémito de uma postura truculenta, subversiva, tantas vezes sarcástica. (A este respeito, noutro recado que deixou ficar nos versos, lê-se: “E contavas ó vaca dos meus versos herbívoros/ tu que pastas tão longe quanto o poema pode/ com uma arcádia de delft numa manhã de pífaros!”) E em vez do dia, dessa posição mais alta do astro que nos governa, preferia estudar as sombras, estar junto daqueles que partilham essa “causa comum que se chama noite”, esses “livres pássaros da verdadeira era exilada na garganta/ Estilhaçando a nossa voz em múltiplas palavras”.

A par do enlevo diante das forças genesíacas da vida, a dedicação amorosa, temos o carácter combativo de toda a obra de Natália, sendo certo como muitas vezes isso lhe trouxe dissabores ou a meteu em alhadas, como o processo que resultou da publicação da sua Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, que a PIDE apreendeu de imediato, tendo ela e o editor, Fernando Ribeiro de Melo, sido acusados de “ofender o pudor geral, a decência pública, os bons costumes, o pudor sexual e a moralidade pública”, e sendo condenados em tribunal plenário, a par de quatro autores representados no volume: E. M. de Melo e Castro, Mário Cesariny, Luiz Pacheco e Ary dos Santos. E se o sarnoso regime salazarento lhe mereceu versos em que desancava meio mundo, se buscou por todos os meios “a saída do lerdo labirinto”, depois do processo democrático não a encontrou, só viu por aí uma gente “lambuzada de revolucionarite” que “se prestou a ser esponja de todo o desvairo de extremismos, cujo reflexo teria de dar na paranoia deste liberalismo de Chicago boys”. E mesmo nos anos em que pôde intervir na Assembleia da República, nunca se conteve, e “foi sempre fustigando, pela sátira e pelo grotesco, a hipócrita podridão dos costumes”, como nos diz Castro Branco. “A sua rebeldia libertária manifestou-se contra todas as tendências, ainda que opostas, de cariz totalitário: fosse o salazarismo e suas sequelas autoritárias que se prolongaram, metamorfoseadas sob formas várias, pelos labirintos do regime democrático-parlamentarista, fosse na oposição firme ao PREC pelos idos de 75 do século passado.” A sua firme dissidência e o voluntarismo com que quis ser uma rosa toda feita de espinhos na inversão que se dava para um totalitarismo de signo contrário naquele período, explicam o desprezo a que foi sendo votada, pois a estratégia passa sempre por suprimir e manter em torno daqueles que não usam de cerimónia na altura de espadeirar contra as orquestras sinfónicas do esquema um perímetro de silêncio devastador. Mas, deste modo, ainda mais Natália se aferrava à sua rebelde mitologia, e viu bem fundo como o país nunca deixou de estar prisioneiro de um “coro das vozes cativas”, desse regime de “assembleia das beatas”, com uma “juventude que se enferruja em reumatismos de santidade”, um país que se atolou nos escolhos que ficam de íntimas deserções, e que faz do medo o seu verdadeiro culto, entregando-se depois a “paliativos de água benta. Que vai cosendo naquele indiferentismo e se desfaz a si mesmo na maledicência de café ou, actualmente, das caixas de comentários, sempre à boca pequena, mas que se mobiliza com um ardor terrífico face àqueles que têm a ousadia de lhe colocar os dedos fundo nas feridas, por estarem tão confortáveis na gangrena da sua infinita resignação.

E se nos Portugueses é tão obsessivo o sentimento de fragilidade íntima e inconsciente, e a correspondente vontade de a compensar com o desejo de fazer boa figura, como nos diz Eduardo Lourenço, se isso nos afunda nessas formas de representação mentirosas, por outro lado, há um receio enorme de uma convivência aberta. E é por isso que não somos capazes de estar uns com os outros e ganhar força, como queria Natália, esperando que fôssemos “um acontecimento uns para os outros”. Em vez disso, como diz Lourenço, os portugueses “espiam-se, controlam-se uns aos outros; não dialogam, disputam-se, e a convivência é uma osmose do mesmo ao mesmo, sem enriquecimento mútuo, que nunca um português confessará que aprendeu alguma coisa de um outro, a menos que seja pai ou mãe…”

Ora, foi preciso vir Jorge de Sena, um outro proscrito do nosso ambiente cultural, vincar o que fez Natália entre nós, reconhecendo-a como "um poeta que se impôs pessoalmente e às suas atitudes, na vida literária portuguesa (…) pela forma como soube transformar o escândalo numa espécie de terror sagrado do provincianismo embevecido”. E lembra ainda como “esse pecado original a acompanhou até ao fim”, sublinhando o alto preço que paga qualquer intelectual por não se conter, por levar ao limite a liberdade que os outros apenas proclamam hipocritamente. “Em vida, Natália foi respeitada e ridicularizada com igual convicção. Depois da sua morte, lembro-me das palavras solidárias de David Mourão-Ferreira e Manuel Alegre, enaltecendo no Parlamento a memória da "feiticeira cotovia". De resto, a generalidade dos companheiros de geração olhou para o lado, numa reserva que traduz o preconceito da intelligentsia contra a autora de Mátria. (…) Poeta, ensaísta, dramaturga, ficcionista, estudiosa de cantares galego-portugueses, da tradição erótica e satírica, do barroco, do surrealismo, de certas vertentes do oculto, e de outros assinalados domínios (…), Natália foi uma vítima do obscurantismo soez dos ominosos tempos da ditadura, mas, ironia suprema, a democracia foi-lhe fatal.”

Ela sabia esse efeito de choque e horror que provocava nos outros a sua liberdade, sentia-se sujeita a essa vigilância e às punições com que se procura desmoralizar quem vive como um escândalo. E a caracterizou bem esta “paisagem defunta”, o modo como se prosseguiu de forma mais subtil e insidiosa o regime de asfixia, como os esbirros não tiveram dificuldade em encontrar novas posições, e como nos seus alvos persistia essa “ferida da vida ser pouca”. No fundo, neste país, todo o homem livre projecta “a sombra de um enforcado” para aqueles que o não são, e que se organizam para travá-lo. A pátria segue feita em cacos, cantam-se umas hipocrisias e esses versos oficiais soam ainda como moscardos. Abusa-se do nome de Camões, mas ninguém compreende esse verso em que Natália nos diz que Camões só faz sentido como uma revolta. A consagração significa crucificar os poetas como símbolos ostentados nas cerimónias dirigidas pelos carrascos, e os que aparecem como herdeiros a receber medalhas ou lhes fazem as biografias são o género de canalhas que versejam e se espojam por aí com vista a fazer boa figura e conquistar um prestígio que influa positivamente nas hierarquias do dinheiro e do poder. Em sentido contrário, era preciso aqueles que, com os seus versos, levassem a que os milionários tivessem repentes, remorsos pela falência disto tudo.

Natália impõe-se por isso como uma figura axial que devolve a tradição ao seu ânimo tumultuoso, ao seu encanto perturbador, a essas fontes que se mantêm sempre frescas e vivificadoras, à capacidade de reanimar o enlevo diante da vida, e isto através do contraste poderoso de imagens simples como a dessa noite acesa pelo desejo e “onde aranhas de luz tecem um corpo”. Como nesses cantos de Safo para Átis, em que Natália se mostra muito competente nessa arqueologia afectiva: “Fiquei/ na estrela que o brilho me copia./ Acesa mas tão fria.” Há nesta obra aquele gosto do mundo para que o corpo tem alcance, aquela exaltação da pele, esse transcorrer de si entre os elementos: “Existe a seiva. Existe o instinto. E existo eu/ suspensa de mundos cintilantes pelas veias/ metade fêmea metade mar como as sereias.” Há um desassombro na forma como livra a sexualidade dos códigos do grosseiro, do obsceno, do indecente, exprimindo gestos directos, discursos sem vergonha, transgressões visíveis, anatomias mostradas e facilmente misturadas, mulheres atrevidas ostentando a sua volúpia sem o menor embaraço: Fêmeas de gosto salgado e de ancas/ Largas. Mulheres que aderem à pele/ Como a salsugem. As únicas/ Que verdadeiramente s estorcem e rugem”. E há depois certas fixações, como o rumor oloroso das hortênsias, a “rosa inventada por soluços”, o lírio também, outras flores mais, e uma capacidade soberba de ser tomada pelo que a envolve, “como se a paisagem só tivesse um sentido/ orientado para a claridade/ que da carne aos olhos lhe havia subido”.

Esta vertente sensual e sensorial transcorre toda a sua obra, como Castro Branco já havia assinalado, e exprime uma harmonia profunda entre o corpo e o cosmos, a sensibilidade e os fenómenos físicos, e, por isso, no reverso desses “reinos introvertidos” temos esse gozo de banhar-se em águas e clamar pelos “peixes da minha pele itinerante”, ou o gozo de “esfregar o espírito em plantas aromáticas”. E mesmo se, tantas vezes, esta poesia não se livra de uma certa monotonia fastidiosa e arcaica devido a essa tentativa de adequar a pulsão modernista a uma factura formal mais tradicional, somos compensados sempre por alguma “ruga celeste”, pelo aroma perdido das “flores banidas”, por esses achados estelares que hoje a maioria dos poetas não alcança, pois estamos consumidos por um cinismo que os impede de investigar aquelas fragorosas imagens que estão descatalogadas por pertencerem aos românticos. Natália não se envergonha de escrever coisas destas: “em teu corpo linha de comboio/ me deito à espera que o amor se aproxime”. Ela aproveita toda a “resina de nudez da fricção narcótica”, devolve-nos a proibida “papoula impressa/ que todos dizem na cama”, deixa-nos a sensação de ver estendida na corda a “roupa de amor a pingar sobre quem passa”, e no seu “testamento dos namorados”, vem encorajar-nos: “Deixemos entretanto o sinal/ de ter existido carnalmente:/ da tua força um castiçal/ da minha fragilidade um pente.” Diga-se o que se disser, este verso final é um verdadeiro assombro. Como aquele outro feito “de espuma de mulher na cama”.

Não se chega a cintilâncias como estas sem um longo percurso, sem estudar muito e amorosamente a vida toda e o exemplo dos mestres à luz mais íntima de si mesmo, porque “a gente só nasce/ quando somos nós/ que temos as dores”. Assim, Natália diz-nos que foram pragas e castigos que a geraram por trás dos postigos “ e um fórceps de raiva/ me arrancou toda/ em sangue de mim”. E ainda acrescenta: “nasci de me verem/ sempre de soslaio”. O poeta nasce dessa insistência, e colhe uma laranja de um quintal por onde passou Alberto Caeiro de modo a fazer a sua evocação: “ De ser laranja gomo a gomo/ o íntimo pomo se enternece/ e não cabe em si de amor/ embriagada de saber/ que a sua morte nos será doce.” Isto não é culturalismo, é saber ler e alimentar-se da carne do outro, lê-lo o mais alto possível como esse “aflito pássaro que enrouquece”. E estes movimentos estão na margem oposta dessa oca referencialidade da poesia que se afunda em protocolos academizantes. Há aqui uma rebeldia estética inscrita com “caligráfica raiva”, há aquela gravidez das percepções transpostas, esse espólio sentimental de uma caçada que nos exigiu tanto, essa experiência que fica crivada nos versos e lhes dá um sabor forte e denso. Há aqui nomes em relevo, escritos com “sílabas de trevos”, e enquanto outros plantam um rápido jardim, ela traz-nos as bagas enrijecidas e fragrantes de “quem esteve fechada séculos numa gaveta”. É difícil, no entanto, encontrar um poema perfeito. A excepção poderá ser esse “Escrito numa ânfora grega”, que certamente terá causado algum estremeção a Sophia, se alguma vez o leu: “É o teu amor que espalha a tinta/ Na minha tela da cor da sede:/ Paisagem que a tua paixão pinta/ Para eu pendurar numa parede.// Candidatura a bem-amado/ Das minhas núpcias de aracnídeo,/ Contigo a ver-me de um telhado,/ Altura própria para um suicídio.// Mas prometida a um olhar marujo/ Na lenda de um Fáon que nunca chega,/ Quanto mais me amas, mais eu te fujo./ Falta cumprir a sina grega.”

Respira-se nestes versos aquela sensação de uma ordem que sustém ainda do mundo uma perspectiva, mas como se faltasse apenas “um minuto para o caos”. E o caos vem da nossa incapacidade de assumirmos a herança desse comércio de tradições que, ao longo do tempo, se combatem ou se instigam, e assim convivem secularizando-se, renascendo, permitindo um sentido do mundo que supera a experiência individual. Como lembrava Castro Branco, em A Estrela de Cada Um (2004), e recordando Almada Negreiros, Natália partilhava de forma sucinta e iluminante a sua concepção do moderno enquanto síntese, e assim tornava claro o sentido que buscou para toda a sua obra: “Um dia, Almada Negreiros disse-me que afinal de contas o moderno era a recuperação daquilo que estava esquecido. Não juro que fossem estas as suas palavras, mas o sentido era este. Com tal noção, tornou-se-me mais legível a obra de um Picasso, cuja novidade é de ser aplicadamente arcaizante: um gigantesco memorial iconográfico de formas pré-históricas, etruscas, gregas e de outros documentos plásticos, que fixam o homem circunscrito a uma determinada época.”

Nos incendiados jardins por onde hoje vamos colhendo cinzas para os nossos fins tão destemperados e efémeros, sem o cuidado de reter algo da memória de um mundo antigo, cujo entendimento das coisas nos enchia com a sua promessa e desejo futurantes, damos por nós a perseguir ilusões “no arfar de um sonho/ com asma de comboio atrasado”. E estranhamente, nunca chegamos ao nosso próprio tempo, a sentir que definimos nós o ritmo. Não dominamos aquela “violenta cumplicidade dos amantes”, a vida foge-nos, e andamos por aí a espirrar o pó dos imortais, julgando que isso nos coloca a par deles. Seria preciso ter essa destreza que Natália vê em António Botto, dizendo-lhe: “Da carne o fósforo acendeste/ na lixa pura do desastre/ jogo de girassóis em que te perdeste/ a gota de sol em que afogaste.” O eterno parece sempre fascinado com as coisas mais ameaçadas que surgem pela terra e entre os homens. Mas para não ficarmos por uns tropeços pela rima, nem por esses tambores de ossos delirantes, mais do que ir saber da vida em regime de telenovela biográfica, é preciso estudar essa admiração de Natália, “a luz da minha pele iluminada por dentro para gravar um canto. A educação musical dos girassóis que dá o meu hectare de realidade entre o ser e o estar…” Assim, diante do fácil pessimismo apocalíptico de muitos dos maestros da retórica actuais, será possível ainda encontrar esperança “como no fim do mundo um lírico/ verme a recomeçá-lo/ a beber estrelas e peixes/ pelo seu estreito gargalo”. E perceber o que quis dizer Natália ao afirmar: “Os que tudo envenenam com a sua vida amarga não têm paladar. (…) Descender, descenda quem servir de escadote à autofixação dos cartazes que anunciam a sua vida. A minha vida não me foi anunciada. Comi-a até achar o seu sabor.”