Neste caso, o poeta dedicou-se a condensar fragmentos do mundo em movimento primitivo e, para tal, deu a sua própria vida à linguagem. Hoje, diz-se e diz-nos: «filhos não te são nada, carne da tua carne são os poemas/ que escreveste contra tudo, pais e filhos,/ lugar e tempo, […] filha é a palavra carregada que arrancas aos dicionários quando dormem,/ essa palavra escolheu-te e tu escolheste as roucas linhas/ onde hás-de ter o trabalho artesanal da morte».
Agora, o poeta está nu, no final da vida como no começo do mundo (ou na poesia da juventude) e por isso pede «que um qualquer erro de ortografia ou sentido/ seja um grão de sal aberto na boca do bom leitor impuro». Mais irónica, livre, fulgurante e moderna do que nunca, a metapoesia de Herberto Helder é a confissão magnífica de quem «queria fechar-se inteiro num poema/ lavrado em língua ao mesmo tempo plana e plena».
A Morte Sem Mestre é uma elegia, um lamento confessional, alimentado pela mensagem fúnebre dos poemas antigos, «tão fortes eram que sobreviveram à língua morta» e ainda vibram «entre os objectos técnicos no apartamento,/ rádio, tv, telemóvel,/ relógios de pulso». O poeta continua a cantar o presente das coisas mesmas, ainda em busca de uma luz de dentro, iluminando e despedaçando tudo. O acaso, o hermético, o concreto uniram-se após décadas de experiência da palavra, garimpando poesia como «um organismo internamente coerente e bastante» (ao Jornal de Letras e Artes, 1964). O que espanta é o arrojo, a vitalidade furiosa e orgânica deste livro, escrito aos 83 anos do poeta, e na sua melhor forma.
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A Morte Sem Mestre
Herberto Helder
Porto Editora
64 págs., 22 euros