Quero voltar a ser uma espécie de pessoa

Voltei a uma redacção. Nestes anos de ausência, quando me perguntavam o que seria se tornasse a um jornal, respondia que, muito provavelmente, os mais jovens me veriam da maneira como eu via os mais antigos. O tempo passou tão depressa e vários dos meus veteranos já partiram para outras crónicas. Continuo a pensar o…

Voltei e encontrei velhos companheiros. Gente que não é melhor ou pior, mas que seguramente faz parte de uma classe à parte, uma espécie de pessoas que não são bem isso, pessoas… Não me equivoco; os jornalistas puros, descendentes dos velhos jornais diários que fechavam as edições muito depois da meia-noite, ainda têm com as notícias um compromisso total. A sua vida é a notícia, as notícias. Como o foram para vários que conheci, como Afonso Praça, Cáceres Monteiro, Rogério Rodrigues ou Joaquim Lobo. Talvez trabalhassem menos do que os jornalistas hoje (não é um engano), com a diferença de que a sua dedicação era absoluta. Paravam para almoçar, paravam para beber whisky, paravam para especular e cultivar fontes – depois de tudo isso lá voltavam ao jornal para acabar o que tinham projectado de manhã. Não existiam pausas. Uma espécie de pessoas, os jornalistas. Hoje, não é bem assim. Os jornais fecham mais cedo, as pessoas estão horas seguidas, mais horas seguidas, mas a maioria tenta ter uma vida, tenta separar as águas, desanuviar. Sim, é isso que quero dizer: os jornalistas hoje são mais parecidos com pessoas normais. Um lugar menos romântico onde deixou de ser raro encontrar jornalistas casados com não jornalistas. Uma raridade no passado.

Somos em grande parte o que é o nosso trabalho. Em casa ou nas amizades, a marca do que fazemos é perceptível aos outros, define-nos. A vida que um médico salva ou deixa ir, a retórica dos advogados, as notícias de que o jornalista é refém, a maravilhosa 'esquizofrenia' dos actores, a obsessão dos políticos e empresários, tudo é transportado. Por isso, o trabalho é mais do que um direito. O trabalho é a peça essencial que nos explica como pessoas inteiras – sem ele ficamos os brinquedos incompletos que as crianças acabam por deitar fora.

Aportei a essa conclusão há relativamente pouco tempo. Seguia alegremente a máxima de que devíamos escolher uma profissão que amássemos para depois não trabalharmos em nenhum momento da nossa vida. Fazia sentido. Desconfiava dos jornalistas que definiam o que faziam como um trabalho – o mesmo diria de actores, escritores, arquitectos, políticos e todos os que gastavam as horas a fazer o que apenas se deveria fazer com paixão. Trabalhar era para mim outra coisa. Era extrair das minas, era carregar na estiva, era canalizar, fazer o pão, derrubar pinheiros, ceifar e debulhar, pescar e costurar. Para mim trabalhar era isso; o que se faz com profissionalismo, dignidade, sacrifício, não com paixão. Mudei de opinião. O trabalho é outra coisa, não apenas paixão. É a vida e o que dela fazemos.

Talvez troque de palavras para o definir – e com isso definir o grande desafio de ser jornalista num mundo em mudança acelerada. Em vez de paixão, preferiria a palavra justeza. Porque se na política a Verdade é uma faca de dois gumes – defendida por todos, mas raramente exercida. Se na diplomacia a verdade é o que fica nas entrelinhas. Se o Direito é uma viagem aos alçapões de leis e interpretações. Se o jornalismo é uma procura, mas quase nunca um encontro. Se nas relações familiares fica sempre tanto por dizer e tanto escondido. Se, resumindo, a Verdade é um conceito distante do que somos capazes, o que nos resta então? Talvez exigir pessoas justas, jornalistas justos, o que está ao nosso alcance. E está ao nosso alcance.

Regressei de onde parti um dia. Na redacção há homens e mulheres armados de longas batalhas. E outros que começam agora a sua jornada, talentosos, sanguíneos, corajosos. O que lhes dizer? Que não sejam defensivos e cuidadosos. Que não prefiram a média, o centro, o não comprometimento, a cautela, os caldos de galinha, o tem-te que não cais. Que dividam caminhos, que defendam ideais e uma ideia de civilização. Que não sejam contabilistas da actualidade, que combatam pela liberdade. Que estejam disponíveis. Que me ajudem a ser o que não tenho a certeza de conseguir… uma espécie de pessoa, um jornalista.