Tenho a insuportável mania das grandezas

Ninguém trata os pais pelo nome próprio sem um forte motivo ideológico. Os que conheci eram de uma certa esquerda aristocrata, obviamente de muito boas famílias. Os filhos que substituem Pai e Mãe por José, Filipe, Maria ou Elsa foram estimulados a fazê-lo de crianças e cresceram na ideia de que o importante é a…

É claro que posso estar a ser injusto, há casos e casos. E quando falamos de crianças tudo muda de figura. Para vos ser sincero nunca as encontrei mimadas quando quem as educa se mantém alerta para o mundo, apaixonada e desperta. Por isso, quando vejo pequenos a espernear, gritar ou exigir, sei que ao seu lado estão pais que desistiram de viver com o nascimento dos filhos. Não é um juízo de valor, é apenas o que é.

Estou certamente influenciado por uma conversa de cirurgiões numa mesa do Toxinas, restaurante mítico do Hospital Santa Maria, onde Ângelo Nobre, chefe de serviço de cirurgia cardiotorácica, falava de uma filha já estudante em Medicina que nos tempos livres lhe faz companhia nalgumas operações. Engraçado como me sinto pequeno e ignorante numa mesa assim, com gente que tem todos os dias o coração das pessoas nas mãos, cirurgiões cuja pressão profissional e horário de trabalho me obriga a relativizar os meus fracos problemas. Desvio-me do que quero, dos filhos. Da dele, futura médica ou, se quiser, destinada a ser médica antes mesmo de o pensar ser, tratada como filha entre iguais. E dos meus, André e Miguel. Num destes dias falo-vos, tenho o que partilhar.

Ser competitivo, ganhar dinheiro, ter poder, ser poder, conquistar prémios e o diabo a quatro são alguns atributos que distinguem os que se distinguem. Para alguns são a essência, para mim, quanto muito, a consequência feliz ou triste do que se faz, pensa ou diz. Seria capaz de não desejar isso para os meus filhos? Sim, como não? Aos filhos e amigos desejo coisas maiores: que não sejam banais, que não sejam como todos, que não desejem o que deseja a maioria, que sejam eles; uma ilha rodeada de cada vez mais ilhas.

E que tenham livros, muitos livros à volta. Mesmo que não leiam a maioria, mesmo que tropecem e tentem mais tarde. Nos livros de história, desde a minha infância, travo-me no que não vem escrito, nos que não têm nome, nos que morreram por uma ideia, lugar ou convicção. Ao ver uma criança num livro de caravelas, perco-me na vontade de lhe pedir que não esqueça os que não estão ali escritos, os que continuam a navegar incógnitos, os que estiveram ao lado dos revolucionários, os que arriscaram a vida sem ter nada em troca. Um dia convencerei alguém a fazer um minuto de silêncio por todos os heróis que nunca saberemos que o foram.

É uma ambição desmedida, há momentos em que devemos ter a mania das grandezas, faz-nos ser melhores. Ou megalómanos insuportáveis, um risco. De um modo ou de outro, o importante é reconhecermos quem temos à frente, adultos e crianças. E sabermos que numa boca azeda nunca saem palavras doces. Podemos suavizá-la com bons vinhos, licores e puro açúcar, mas nada resultará. O que dali sai, com mais ou menos sorrisos, parecerá um iogurte fora de prazo. Numa boca azeda tudo será sempre desesperança, barbárie, más intenções. Ninguém tem bom-nome numa boca assim, para lá do seu próprio.

Mas como as coisas estão, não basta pensar bem, ser generoso com o próximo, ter as mãos imaculadas. Tudo isso é fundamental, se juntarmos mais umas quantas coisas temos o retrato de alguém que vale a pena. Nesses instantes, em que as rodas da história giram provocando destruição e desordem, não nos vale ter apenas um coração puro e ser incorruptíveis na moral e na ética. De que nos valerá ser tudo isso se o corpo continuar sentado e as mãos nos bolsos?

E de uma coisa tenho a convicção: no final da corrida, se me perguntarem o que fui, direi o que tentei ser, um pretérito perfeito que esteve, passeou, amou, perdeu, viveu. Quando fizer as contas de somar e subtrair, terei apenas passado. Nada mais certo. Chegado aí, a esse tribunal de solidão, valerá mais ter feito do que ter-me limitado a ir fazendo. É preferível errar toda a vida do que falhar por falta de comparência.

Revolucionário e utópico, diz-me o mais velho, depois de ler este último parágrafo. Está enganado. Não há revolucionários que não sejam utópicos. E não há verdadeiros utópicos que sejam sonhadores. Os sonhadores vivem num mundo onírico, os utópicos num mundo de que não gostam. Quem sonha inventa universos dentro de si próprio, alimenta-se de ideias redentoras e quimeras. Quem persegue a utopia está preparado para sacrificar o que for preciso por aquilo em que acredita, em nome da felicidade colectiva tudo poderá ser feito, inclusivamente a morte dos que se opuserem. Nos sonhos do sonhador, o pesadelo não é bem-vindo. Na utopia, o pesadelo é o preço a pagar pelo nascimento de um mundo novo. O sonhador sonha. O utópico deseja um dia poder fazê-lo. É essa a diferença.