11 de Janeiro

O 11 de Janeiro foi a resposta ao 11 de Setembro francês – aos massacres na redacção do Charlie Hebdo e num supermercado judaico em Paris. Foi um «Maio de 68 da sensibilidade» como lhe chamou Jacques Julliard, referindo-se às impressionantes manifestações populares: «Desconhecidos falam-se, dão a mão uns aos outros, marcam encontros, juntam-se espontaneamente». 

Um sobressalto inédito, quase um electrochoque para um país perseguido pela obsessão do seu declínio histórico, pela tentação do ensimesmamento, pela impotência do seu Governo em responder aos desafios da crise, pelas crispações sociais e políticas que o vinham tornando menos tolerante e mais descrente. 

Como se a brutalidade dos acontecimentos tivesse despertado a França da modorra, fazendo-a redescobrir o melhor de si mesma, numa impetuosa união contra o medo, o terror e o ódio entre comunidades de origens e crenças diferentes. 

Ilusões líricas que não resistirão à prova do tempo – e do inevitável regresso à ‘realidade’, passadas as emoções e a confraternização de um dia inesquecível mas, finalmente, perecível? 

É essa a visão dos ‘realistas’ de todos os quadrantes, para quem a confluência do coração e da razão não sobrevive a momentos fortuitos, excepcionais. Uma visão que, por outro lado, favorece o relativismo moral e político, contrapondo os atentados em França ao que se passa noutras latitudes mais expostas à desordem internacional e ao terrorismo, como o Médio Oriente, o Paquistão ou a Nigéria, onde a estatística dos horrores ultrapassa quase todos os dias o número de vítimas dos massacres de Paris.

O ‘realismo’ e o relativismo recusam, assim, a especificidade de um acontecimento e o seu impacto num processo histórico supostamente cristalizado, o que justificaria a redução do 11 de Janeiro a uma onda emocional condenada a diluir-se nas tendências mais duradouras desse processo. Ora, a História faz-se, muitas vezes, de sobressaltos e rupturas, como a própria França tem demonstrado ao longo dos tempos. 

Além disso, relativizar o que aconteceu em Paris conduz, como temos visto nalguns media portugueses, a sugerir um arsenal de álibis para o recurso ao terrorismo, mesmo quando se condena formalmente os assassínios de jornalistas, humoristas, agentes policiais ou cidadãos de origem judaica. 

A chamada ‘nova ordem’ internacional, as sequelas da invasão do Iraque, a austeridade e o desemprego na Europa, a marginalização e exclusão de comunidades imigrantes e seus descendentes nas sociedades europeias, têm sido invocados, entre outros motivos, para explicar o caldo de cultura que alimenta o fanatismo religioso e o terrorismo. Ou seja: o Ocidente e, neste caso, a França, não são de todo estranhos ao fenómeno perverso que os atinge.

Tudo isso poderá até ser parcialmente verdadeiro, mas à força de se relativizarem os actos terroristas, reduzindo-os a uma consequência automática das culpas ocidentais – e, já agora, judaicas –, corre-se o risco de desculpabilizá-los, como se o fundamentalismo islâmico e o terrorismo fossem alheios a uma deriva religiosa inspirada em interpretações radicais do Islão e que dividem, de forma mortífera, os próprios muçulmanos. Recorde-se que as franjas mais extremistas do islamismo disputam a supremacia através do extermínio dos rivais, até no interior da mesma corrente confessional. Será um efeito colateral dos pecados do Ocidente? 

Os atentados em França tiveram como primeiro alvo um jornal satírico que se atrevera a publicar cartoons considerados ofensivos pelos preceitos islâmicos (é interdita a mera representação de Maomé, ainda que em versão benigna, como acontece na edição do Charlie Hebdo posterior ao massacre). 

Ora, há uma colisão insanável entre a liberdade de expressão e os tabus religiosos, sejam eles quais forem, para além do direito de quem se sente ofendido a manifestar civilizadamente e legalmente a sua discordância. Mas é inevitável que uma extrema susceptibilidade religiosa desperte, em sociedades abertas e livres, a tentação – que é também um direito – de questioná-la. Pelo humor e, até, pela blasfémia, por muito que isso custe à tosca vocação clerical de certos políticos, intelectuais ou jornalistas.

Alguns dos mais respeitados jornais de referência internacionais, como The New York Times ou The Guardian, têm recusado reproduzir os cartoons do Charlie Hebdo, para não ofender a sensibilidade dos crentes islâmicos. Uma opção editorial que seria obviamente respeitável se não estivesse em causa, sobretudo depois do massacre de Paris, um elemento essencial de informação para os leitores desses jornais. Nessa frente, os radicais islâmicos triunfaram – pelo medo.