As duas vidas de Manoel de Oliveira

Contaram-me em tempos que certo dia Manoel de Oliveira foi ter com um responsável político da área da cultura para lhe pedir apoio para fazer os seus filmes. O político ficou muito espantado, pois o cineasta já estaria na casa dos oitenta. Era preciso ser muito optimista para ter ainda tantos projectos! Imaginando que provavelmente…

As duas vidas de Manoel de Oliveira

Obviamente estava enganado. Contra todas as expectativas, o cineasta foi concretizando, ano após ano e com enorme preserverança, cada um dos projectos de que lhe falara no tal encontro.

Vi alguns desses filmes, acerca dos quais – e falo como pessoa que gosta de cinema, não como crítico ou especialista – formei opiniões distintas. Dos sete ou oito que vi, Vale Abraão pareceu-me a sua obra-prima – um daqueles filmes deslumbrantes que fiz questão de comprar em DVD porque sabia que mais tarde ou mais cedo haveria de querer revê-lo. Outro, menos conhecido mas que me encantou, foi A Caixa, sobre um cego e a sua caixa de esmolas, que ele considera um tesouro mas que no fundo apenas revela a medida da sua miséria.

No extremo oposto da escala colocaria o filme sobre o Padre António Vieira, Palavra e Utopia, durante o qual tive dificuldade em manter os olhos abertos, sentado numa poltrona do King. Falo nisso porque toca um aspecto fundamental da obra de Oliveira: a lentidão. O próprio explicou essa opção de forma lapidar, numa entrevista concedida ao SOL em 2007: «O parado dá tempo à reflexão, o movimento distrai». E ainda: «O parado é intemporal». 

Os seus filmes levaram esta máxima à letra, desacelerando o ritmo do dia-a-dia num convite à reflexão. Enquanto no cinema americano há planos de dois, três segundos, os filmes de Oliveira tinham planos muito longos, de minutos – uma eternidade. Ajudaram assim a definir, por oposição a Hollywood, o que é o cinema europeu.

Curiosamente, o carácter estático e introspectivo do cinema de Oliveira contrasta com certos aspectos da sua vida. Ele, que na juventude queria seguir a carreira de actor cómico, como Charlot, chegou a participar na Canção de Lisboa. Gostava da boémia e das noitadas. Foi campeão de atletismo e participou em corridas de automóveis. 

Esta dicotomia leva-me à conclusão de que Oliveira teve não uma, mas duas vidas. A primeira, intensa e mais 'física', até à idade que para qualquer outro seria de reforma; a segunda, dedicada à criação e mais intelectual, mas igualmente intensa, daí em diante.

Quando já nada parecia fazê-lo prever (e muitos de nós assumíamos que o realizador seria o primeiro homem a viver para sempre), Manoel de Oliveira partiu deste mundo. Outro grande cineasta, Woody Allen, disse um dia: «Não quero atingir a imortalidade através da minha obra. Quero atingi-la não morrendo». Oliveira esteve perto de conseguir o pleno. 

jose.c.saraiva@sol.pt