Um Spielberg mais novo – e mais estúpido

Existe decididamente algo de absurdo em ver o mesmo filme várias vezes quando há tantos outros que gostaríamos de ver e nunca vimos. Um dia, quando aluguei o Cinema Paraíso pela terceira vez, a empregada perguntou-me se queria mesmo levá-lo, uma vez que já o alugara antes. Não só o levei como mais tarde comprei…

Ainda assim, creio que nenhum desses filmes entra na categoria de Tubarão, de Steven Spielberg, que cumpre agora 40 anos (1975). Já o devo ter visto mais de uma dezena de vezes, e sempre com enorme prazer. Quanto mais o vejo e penso nele, maior é a admiração que sinto por Steven Spielberg, a quem bastaria ter realizado esta obra-prima para merecer um lugar na história do cinema.

No documentário que acompanha a edição comemorativa dos 30 anos, Spielberg diz: "Sempre que ouço a palavra Jaws [o título original, que significa 'mandíbulas'] penso num período da minha vida em que era bem mais novo do que agora. E penso que, por ser mais novo, era mais corajoso. Ou mais estúpido".

O realizador (que nem sequer foi a primeira escolha) queria fazer um filme de aventuras puro e duro, mas produzi-lo revelou-se um quebra-cabeças, em grande parte porque recusou usar uma piscina. Sucederam todo o tipo de contratempos: câmaras avariadas pela água, cenas estragadas por erros caricatos. As condições no mar obrigavam a sucessivos adiamentos, o perfeccionismo obsessivo de Spielberg tornava tudo mais lento e o orçamento ia derrapando. Tudo parecia apontar para um fracasso estrondoso. A equipa técnica, na brincadeira, alcunhou o projecto de 'Flaws' ('falhas'). Mas, contra todas as expectativas, Tubarão haveria de tornar-se um êxito formidável e um recordista de bilheteiras.

Já o livro em que o filme se baseou fora um sucesso imprevisto. O autor, Peter Benchley, inspirara-se na história de um pescador que em 1964 capturou perto de Long Island um tubarão branco com duas toneladas. Era o primeiro romance que escrevia e também tinha tudo para dar errado. Inclusive o título, que foi escolhido à pressa. Em desespero, ficou Jaws.

"Vi um grande maço de folhas que dizia Jaws", recorda Spielberg acerca  da primeira vez que viu o argumento. «Não sabia o que queria dizer. Era sobre um dentista? Na altura 'Jaws' ainda não fazia parte da consciência pública como hoje». Graças ao realizador, a palavra não entrou apenas na consciência pública: penetrou, e bem fundo, no inconsciente colectivo. A tal ponto que, de cada vez que tomamos um banho de mar, ela também mergulha connosco. 

jose.c.saraiva@sol.pt