Homens e mulheres são capazes de tudo, até de se amar

Ouvi vezes sem conta ‘Circo de Feras’ ou ‘Remar Remar’. Os Xutos e Pontapés eram inquilinos dos meus calabouços, um lugar onde libertava gritos mudos contra um mundo cinzento e sem esperança. A voz da revolução parecia vir das fábricas, das minas, dos subúrbios. Hoje, já libertos de mim, continuam a cantar que “a vida…

Não deixa de ser curioso. A partir de certa a altura corremos atrás de rotinas que nos tranquilizem e apazigúem, mas afastamo-nos do território onde realmente as coisas se conquistam, o campo onde tudo se coloca em causa em cada momento, uma violência interior latente que é mais importante para a criação do que a tranquilidade. Vivemos dias violentos, mas de uma outra violência. A primeira, interior, é a que liga o ser humano a uma ideia transformadora e até transcendente. A segunda, primária, liga-nos à animalidade.

Ao contrário do que se pensa, a violência não é um exclusivo dos que nascem pobres, leram pouco ou nada sabem de tolerância e animalidade. Entre paredes não há marçanos ou intelectuais, ricos ou miseráveis, novos ou velhos, apenas homens e mulheres capazes de tudo, até de se amar. Ou matar. A primeira hipótese é a única alternativa possível. Porque quando a segunda nos escolhe mergulhamos no abismo. Numa vala comum de desalmados, no fundo dos fundos de onde não há caminho de volta, pelo menos caminho que se conheça.

Os tais fantasmas… O melhor é deles não ter medo, não os temer. Que sentido faz tal pavor? Porque mesmo que não existam, todos os temos. Bons e maus. Memórias do que fomos construindo e também destruindo, gente que deixou de estar, que partiu sem bilhete para lugar conhecido. E se realmente existirem, se circularem pelas casas e estiverem ao nosso lado, protectores ou eternamente maldosos, então saberemos que um dia seremos nós os fantasmas dos outros. Seremos nós os invisíveis. Os que partiram sem a morada escrita no bilhete.

O eterno retorno. Tudo continuará depois de nós, tudo acabará com o nosso fim. Ou não será nada disto? Quantos irão nascer no dia de hoje? Quantos morrerão? Em agonia profunda, suicídio, acidente, homicídio, de velhos? Quantas lágrimas são choradas neste segundo e quantos risos, gargalhadas, anedotas? Quantas pessoas fazem amor no momento em que escrevo amor? Quantos marcam golos nos jardins em balizas improvisadas? Quantos estão a magoar e a ser generosos? Quantos falam com Deus e os anjos? Quantos pedem dinheiro emprestado e estendem a mão pela primeira vez? Quantos no dia de hoje? Quantas coisas farei?

Perguntas um bocadinho infantis, e absolutas. É um pouco como a celebração que fazemos do momento em que os bebés dão os primeiros passos de uma cadeira para a outra, o momento em que se libertam dos pais e partem à conquista de um mundo que lhes parece, que nos pareceu, um desafio perigoso. Um movimento que é a metáfora da própria vida – porque ao longo de todo este tempo, nunca deixámos de ser o que se libertou da mão dos pais em direcção ao primeiro porto-seguro. O que é a vida se não isso? Uma aventura em que continuamos a tentar, o melhor possível, não cair das viagens de uma cadeira para a outra. Nada mudou. Os mesmos somos, tal e qual. Com os mesmos passinhos inseguros, com as mesmas quedas e cabeças partidas, com igual necessidade de ter uma mão que nos segure e convença de que somos capazes.  

São duas palavras que nos resolvem todas estas equações. Amor e liberdade. O amor asfixia sem liberdade, mas com ela abrem-se sempre novos desafios e tentações. O mesmo acontece na democracia. Sem a liberdade é letra morta, mas com ela pode transformar-se em libertinagem, egoísmo, violência da vontade dos mais fortes sobre a fragilidade dos mais fracos. Há quem professe que a liberdade é uma ilusão que desfaz relações, impérios e poderes. Perigoso pensá-lo. Porque o amor e a democracia sem liberdade não passam de uma permanente portagem que nos obriga, todos os dias, a abdicar mais um bocadinho do que nos fez únicos. Difícil equilíbrio, o único possível. Tudo o resto, mesmo o que aos olhos parece amor e democracia, não passa de um abismo.

É o habitual em mim nesta relação consigo. De um assunto nasce outro. As conversas mais interessantes nunca são as que tentam explicar o mundo. Porque cada vez que nos aproximamos de alguma janela entreaberta, de um ténue esgar de luz, logo outra teoria ainda mais brilhante coloca em causa o que antes se construíra. É a razão por que gosto de trocar palavras como troco bolas num campo de basquetebol, falar sobre o nada e sobre coisa nenhuma – a partir do nada podemos ser verdadeiros sábios, afinal é o único ponto onde todos somos capazes de perceber. Por isso, fico feliz quando os meus filhos me respondem à sacramental e tonta pergunta de todos os pais, com um conciso 'Não estou a pensar em nada'.