O engenhoso fidalgo D. Miguel de Cervantes

Cumprem-se por esta altura 400 anos certos da publicação da segunda parte de D. Quixote (a dedicatória está datada do «último de Outubro de mil seiscentos e quinze»). A primeira parte do livro fora um enorme sucesso popular, ao ponto de logo em 1605 começarem a aparecer novas edições – duas delas, hoje raríssimas, na…

No prólogo à segunda parte, o grande escritor afirmou não guardar ressentimento em relação ao autor da patifaria. Só lhe custava que este lhe tivesse chamado, no texto apócrifo, «manco» e «velho» – «como se eu tivesse saído manco de alguma rixa de taberna, e não do mais nobre feito que viram os séculos passados e vindouros», escreveu Cervantes. Referia-se à batalha naval de Lepanto, em 1571, que opôs a Cristandade aos Turcos e em que perdeu o uso de uma mão ou até do braço inteiro.

Filho de um cirurgião, D. Miguel teve uma vida cheia de perigos e aventuras. Para quem o conhece só pela obra literária, causa surpresa que tenha enveredado por uma carreira nas armas. Um ano depois da batalha de Lepanto (como conta Pedro Soares Martinez em Cervantes – Enigmas e Mitologia, ed. Almedina) já estaria a combater de novo. Mas a vocação bélica seria interrompida quando, de regresso à sua terra natal, o barco onde viajava foi capturado por piratas.

Passou cinco anos inteiros no cativeiro em Argel, tentando escapar sempre que lhe aparecia uma oportunidade (e sendo castigado por isso). Por fim o resgate foi pago e Cervantes pôde sair em liberdade. Corria o ano de 1580, curiosamente o mesmo em que Portugal perdeu a independência para Espanha.

As provações vividas no cativeiro foram essenciais para Cervantes escrever a sua obra-prima. E viria a ser precisamente numa cela de prisão (onde o autor se encontrava por causa de dívidas ou de desvio de dinheiro) que nasceriam as aventuras de um fidalgo apaixonado por romances de cavalaria, «um filho magro, seco e enrugado, caprichoso e cheio de pensamentos vários, e nunca imaginados de outra alguma pessoa». O sucesso foi de tal ordem que Cervantes nunca mais teve problemas financeiros. O criador do D. Quixote morreu em 1616, com 68 anos. Já a sua personagem, ao fim de quatro séculos, continua aí para as curvas l

jose.c.saraiva@ionline.pt