A balda

Todos, alguma vez na vida, nos gabámos de nos baldarmos – ou fomos gabados por isso.

A grande palavra portuguesa não é saudade: é balda. Substantivo, verbo e adjetivo. Os jovens gabam-se: «Baldei-me às aulas». Os funcionários ufanam-se: «O chefe queria meter-me em trabalhos extra, mas eu baldei-me».

Baldar-se significa, na cabeça dos que assim se afirmam, ter a coragem de escapar ao sistema.

Não se trata de enfrentar o sistema, claro, nem de mexer uma unha para o alterar, mas de o contornar: a pessoa que se ‘balda’ não encara o professor nem o chefe para lhe dizer que as aulas não têm interesse ou que o trabalho que lhe solicitam não é digno/útil/ justo ou seja o que for. O baldas pisga-se, foge pela esquerda baixa (de onde virá esta expressão?), descarta-se. Inventa desculpas.

Portugal devia candidatar a arte de inventar desculpas a património imaterial da Unesco. Quem não inventa desculpas é considerado grosseiro: «Imagina, teve a lata de me dizer que não vinha porque não lhe apetecia. O malcriadão».

A doce melancolia que produz tanto equívoco poético e tantas receitas turísticas advém deste hábito nacional da escusa: na esquina de cada frete, no caminho pedregoso de um trabalho difícil, cintila a imaginação de uma mãe doente, um pneu furado, um filho perdido, um amigo tresmalhado, uma gripe súbita, uma depressão.

A depressão é uma doença particularmente simpática porque se cura em andamento, isto é: não exige que o doente fique confinado às paredes do lar, sujeito a uma fiscalização da inspeção do trabalho.

Nos países regidos por ideologias produtivistas, a depressão é um estigma social; em Portugal é uma aura: o deprimido é alguém que pensa em excesso, um sábio desesperançado, imune à filosofia contentinha do rebanho.

Ninguém tem vergonha de meter uma baixa por depressão nem receia ser considerado louco; loucos são os indeprimíveis. Ou tansos.

Todos, alguma vez na vida, nos gabámos de nos baldarmos – ou fomos gabados por isso.

O aluno admirável é o que se balda o ano inteiro e mesmo assim passam nos exames. O funcionário admirável é o que pousa o casaco na cadeira, vai à vida dele, e consegue ser promovido. Os que se esfolam a trabalhar são considerados manteigueiros, sabujos ou, na melhor das hipóteses, patetas: gente que não sabe viver. 

No entanto, ninguém se assume como baldas, e tem razão: saber baldar-se é uma arte que implica concentração e foco. Baldas são os que, não sabendo baldar-se, também não sabem trabalhar: uma espécie de bisonhas assombrações que, por isso mesmo, não saem da cepa torta. 

A balda advém de uma relação fluida com o tempo e os compromissos.

As datas, no universo da balda, são parâmetros genéricos de orientação: quando se marcam, parecem distantes – e quanto maior for a antecedência com que se marcar, pior.

Quem organize uma conferência em Portugal sabe que, a três meses de distância, a resposta dos participantes portugueses é: «em princípio, estarei disponível». E a resposta da equipa de produção é: «não te enerves, temos tempo!». Depois, evidentemente, tudo será encomendado à última hora, com pedidos de urgência e custos acrescidos. Além disso, convida-se o dobro dos conferencistas necessários, para contar com os que «em princípio» poderão não estar – e, afinal, aparecem todos, o que tornará a conferência redundante em conteúdo e preço.   

No sábado passado, fui a um cocktail de uma editora na Feira do Livro de Lisboa.

O cocktail começou com meia hora de atraso, porque a empresa de catering contratada simplesmente não apareceu: disseram que «pensavam» que o cocktail era para o dia de encerramento da Feira. Assim, o editor teve de ir a correr comprar bebidas e víveres ao hipermercado mais próximo, e o serviço aos convidados foi assegurado pelos funcionários e escritores da própria editora.

No domingo, fui a um jantar de aniversário de uma amiga, fora de Lisboa, para o qual estava prometido um porco assado. À chegada, a aniversariante informou-nos de que, naquela mesma manhã, o senhor encarregado de fornecer e assar o porco tinha dito que «pensava» que o repasto era para o domingo seguinte – pelo que a anfitriã tinha corrido à feira mais próxima e recrutado uma roulotte de frangos assados e entrecosto.

A balda resolve-se com o desenrascanço. Sai mais caro, sim – mas alguém está a contar?

As datas, em Portugal, são coisas que se «pensam» em termos poéticos, como se vivêssemos na eternidade. Podem lançar duzentas ‘startups’ por ano, que o país não muda com o inglês afoito da palavrinha. Começar é muito giro e moderno. Perseverar não tem graça nenhuma. Quem quiser foçar, que emigre. Aqui não se governa.