Ser ou não ser igual, não é igual

O burquíni é, como defendeu uma ministra francesa, uma versão de praia da burca. E a burca é um instrumento de tortura

A polémica do burkini extravasa a clássica oposição direita securitária/esquerda libertária.

Nenhum dos extremos desta dicotomia se tem manifestado capaz de resolver a gravíssima questão do terrorismo islâmico. 

À direita, proclamações de cruzada e guerra total aos muçulmanos.

À esquerda, uma tolerância infinita em relação aos atropelos do islamismo quanto aos direitos das mulheres, sob o pretexto da ‘diferença cultural’, fruto de uma interiorização do complexo colonial que redunda num discurso paternalista. O paternalismo é, aliás, o grande calcanhar de Aquiles da esquerda; na aflição de se demonstrar igualitária, acaba por deitar fora os valores da solidariedade e da liberdade, que se esforça desesperadamente por fazer parecer equivalentes aos da indiferença e da opressão.

O feminismo, na teoria marxista inaugural, era considerado uma alínea da luta de classes, e sempre dependente delas; a ideia da camarada humilde e honesta, que se oculta na sombra do herói, ao qual obedece, e que passa fome para que o seu companheiro possa ter forças para o combate atravessa o clássico Até Amanhã, Camaradas do romancista Manuel Tiago, pseudónimo de Álvaro Cunhal. A direita do século XXI, pragmática e mercantilista, convive bem com o sucesso das mulheres; a política nacional e internacional tem demonstrado que é muito mais fácil e comum para uma mulher ascender na política à direita do que à esquerda; a dificuldade que Hillary Clinton tem tido em ser aceite pela Esquerda radical demonstra que a superação interior do racismo é muito mais rápida do que a da discriminação de género: a uma mulher exige-se qualidades de exceção – pelo menos à esquerda. 
E é com tristeza que o verifico, porque me revejo nos ideais da esquerda e numa análise do mundo de base marxista. 

O clamoroso falhanço do sistema comunista fez com que a esquerda – não apenas a comunista – , azamboada, perdesse os seus valores.

O sistema capitalista também se mostrou incapaz, e nem por isso a direita se extraviou, pelo contrário; aproveitou a má-consciência da Esquerda para açambarcar os valores ditos ocidentais.

Os atos de vandalismo em bairros sociais franceses no início do século foram interpretados pela esquerda como simples reflexo de discriminação social e económica.

Alguns movimentos feministas procuraram alertar para que o assunto era de outra ordem – mas, como de costume, não foram ouvidos, ou foram acusados de racismo. 

A extrema-direita francesa cresceu muito através desse equívoco de perceção fundamental. O que ali se desenhava era uma questão de valores – os valores de uma determinada religião que, ao contrário de outras, se recusa a aceitar qualquer valor de secularismo. O segundo erro da esquerda foi o de aceitar esses valores de intolerância como absolutamente iguais à tolerância dos seus valores: a conversa fiada da ‘igualdade’ de todas as culturas, que, em última análise, leva à aceitação da mutilação genital e da sharia.

Sucede que, quando falamos de valores, falamos necessariamente de hierarquias: a liberdade entendida como um vácuo, pura e simplesmente, deixa de existir. 

Os árabes sem filiação religiosa são os primeiros a sofrer com esta mistificação: o escritor argelino Kamel Daoud (autor do belo e premiado romance Mersault: Contra-investigação) vive sob a ameaça de uma fatwa ou condenação à morte por defender a laicidade do Estado e tem sofrido uma perseguição acrescida desde que, depois dos ataques a mulheres em Colónia, na Alemanha, escreveu um texto violento sobre a menorização da mulher e do seu corpo operada pelo islamismo; o blogger saudita Raif Badawi está condenado a dez anos de prisão e mil chicotadas por ‘apostasia’.

Os direitos humanos foram inventados na Europa mas isso não os torna um luxo exclusivo dos europeus. São bons para todos, como a escrita ou a eletricidade. O burkini é, como sublinhou a ministra francesa (e socialista) dos Direitos das Mulheres, uma versão de praia da burca, e a burca é um instrumento de tortura. Um símbolo do extremismo islâmico, que mata indiscriminadamente – incluindo muçulmanos – na Europa. Não se pode chamar à guerra em curso um conflito de civilizações porque o Daesh representa a barbárie. O extremismo islâmico tem conseguido recrutar milhares de jovens europeus porque se apresenta como um ideal num mundo sem ideais.

É urgente que a Europa saiba defender os ideais que a construíram como paraíso de direitos, ideais esses pelos quais tantos homens e mulheres combateram até à morte. Aceitar a burca ou o burkini é aceitar a diminuição dos direitos de uma cidadã pelo facto de ter nascido num determinado lugar ou sob uma determinada tradição. Quando as sufragistas, cansadas de negociações sempre adiadas com as forças políticas, começaram a fazer explodir bombas e foram intimadas a parar pelos seus supostos e inertes apoiantes políticos, retorquiram: ‘Cansámo-nos de falar em vão. A violência não é a nossa linguagem, mas chegámos à conclusão de que é a única linguagem que vocês entendem’. O tempo deu-lhes razão. Do mesmo modo, contra o ataque violento aos valores de liberdade, igualdade e fraternidade que o extremismo islâmico empreende, a resposta tem de ser a da afirmação inequívoca desses valores: uma tríade inseparável e inexpugnável.