José António Saraiva: ‘Nunca pensei provocar uma hecatombe destas’

Parecia algo nervoso, mas era só aparência. Mediu bem as palavras e nas mais de duas horas de entrevista nunca se irritou, mesmo quando foi picado com coisas pessoais. Reafirma que teria escrito o livro de novo, embora se sinta incomodado com o terramoto que provocou. Acha que os políticos não vão deixar de lhe…

Desde a publicação do livro já falou com algum dos políticos visados?

Falei com o Dr. Passos Coelho, que é [era] apresentador do livro. De resto, ninguém me contactou, nem direta nem indiretamente.

Mas tem lido os inúmeros textos que têm saído sobre si e sobre o livro Eu e os Políticos?

Não. Nestas alturas procuro meter-me numa bolha, por autodefesa e para conservar alguma distância em relação a coisas que acho que me poderiam magoar ou que têm um nível tão baixo, como me disseram, que não vale a pena ler. Aliás, a maior parte dos ataques são de pessoas que dizem que não leram o livro, pelo que não têm qualquer valor. Outros, revelam as pessoas pela linguagem que usam. Tenho acompanhado a polémica à distância.

Diz que não quer ser magoado com o que têm sido dito de si, mas o que acha que os visados no seu livro sentem, além de familiares e amigos de pessoas que já não estão vivas?

Aí há várias coisas misturadas. Primeiro, nunca fui uma pessoa querida na classe jornalística, toda a gente sabe isso. Provavelmente porque nunca frequentei as tertúlias jornalísticas, porque sou arquiteto e portanto sou estranho à classe, e porque desempenhei lugares que porventura outros gostariam de ter desempenhado e para os quais achavam que tinham mais qualidades do que eu. Eu sou sempre ‘o arquiteto’. Há um conjunto grande de razões que fizeram com que eu não fosse uma pessoa querida e acho que aproveitam este momento, em que pensam que estou mais vulnerável, para me caírem em cima como uma alcateia. Posto isto, com certeza que admito que haja pessoas que se sintam magoadas. Admito e respeito. Mas a verdade magoa. Quando dizemos que [François] Mitterrand teve relações e uma filha fora do casamento, isso magoa. Mas é a verdade. Em último lugar, penso que há um politicamente correto que veio ao de cima com grande fragor porque este livro inaugura um tempo novo. Este livro vai ficar como um clássico da literatura política. E o escândalo que provocou é o escândalo que provocam todas as obras que são grandes gritos de liberdade. O Picasso provocou escândalo. Não estou a comparar-me com o Picasso, mas no nosso pequeno universo este livro é um sopro de liberdade — e por isso provocou um terramoto.

Sempre mostrou os outros livros que escreveu a alguém antes de os publicar, como à sua mulher. Por que decidiu que este não mostrava a ninguém?

Queria que fosse um exercício de liberdade total. Se começasse a mostrá-lo, iam começar a dizer-me: «Não publiques isto que é chato, não publiques aquilo que vai ofender…». Às tantas não sobrava nada. Decidi fazer um exercício solitário, a responsabilidade é minha. A primeira pessoa que leu o livro foi o editor.

Não receia que não ter mostrado o livro pode ter dado azo a algumas imprecisões?

Claro que admito, e digo-o no prefácio, que podem existir imprecisões, até porque muitas coisas são reproduzidas de memória. Mas relativamente a coisas decisivas é muito difícil que isso aconteça. Há coisas para as quais tenho uma péssima memória, como por exemplo as viagens que já fiz, mas há outras coisas, algumas que já se passaram há muito tempo, que recordo ao pormenor. Há frases com 40 anos que recordo ipsis verbis.

Estava a referir que sabe as reações que este livro tem provocado, apesar de tentar proteger-se. Mas foi em busca do escândalo que o escreveu?

Não. Para mim, isto foi completamente inesperado.

Mas nunca negou que gostava de chocar, de surpreender.

E até de provocar, admito. Paradoxalmente, não gosto muito de ser protagonista. Gosto de fazer coisas provocatórias, às vezes de forma mais agreste, mas não gosto de protagonismo. Por isso nunca gostei de televisão, sempre evitei lá ir. O protagonismo que agora estou involuntariamente a ter incomoda-me bastante. Portanto, se me perguntam se provoquei este escândalo… não. O que posso dizer é que tinha escrito dois livros – Confissões de um Diretor de Jornal [2003] e Confissões – Os Últimos Anos no Expresso, o Nascer do Sol e as Conversas com Políticos à Mesa [2006] – onde tinha contado alguns episódios que também relato neste livro. E passaram despercebidos, não provocaram escândalo nenhum. Portanto, escrevi este livro com a noção de que pisava o risco mas nunca que provocaria uma hecatombe destas.

Quando diz que não gosta de protagonismo, mas lança um livro que se chama Eu e os Políticos, põe-se no epicentro da questão. Não há aqui alguma incongruência?

O editor chamou-me a atenção para isso. Ele preferia que o livro se chamasse O Livro Proibido, precisamente para não dar a ideia do eu, eu, eu. Mas a verdade é que este título era o que resumia melhor o que é o livro: as minhas relações com políticos ao longo de quase 40 anos. E joga muito bem com o subtítulo [O que não pude (ou não quis) escrever até hoje], que justifica o egocentrismo do título.

Os episódios que têm dado mais que falar são os que envolvem pessoas que já morreram. Revelar conversas que envolvem pessoas que não se podem defender não é ultrapassar todos os limites?

Não. Acho essa polémica totalmente insólita, das críticas mais patetas ao livro. Primeiro, porque a verdade deve respeitar aos vivos e aos mortos. Em segundo lugar, imaginem que tinha tido um conjunto de conversas com Marcello Caetano, Salazar ou Sá Carneiro. Não poderia publicar essas conversas porque eles já morreram? Quantos livros foram feitos por pessoas que tiveram contacto com outras que já morreram? Distinguir entre mortos e vivos é uma crítica pateta. Queria aqui deixar, no entanto, uma nota sobre um capítulo que é diferente de todos os outros: o da Margarida Marante. É diferente, porque todos os outros eram políticos ou empresários que sabiam que estavam a falar com um jornalista. Era uma conversa privada, mas não deixava de ser uma conversa com um jornalista com quem não tinham qualquer intimidade, até porque nunca a cultivei. Nunca fui com políticos para a noite, nunca fui sua visita de casa, nunca mandava ‘abraços’ mas ‘cumprimentos’. Sempre cultivei uma relação formal com os políticos, e portanto quando me contavam alguma coisa era o que eles queriam contar. Nunca extorqui informação nem andei a espreitar pelo buraco da fechadura. A Margarida é diferente, porque foi uma pessoa que me contou determinadas coisas a título de amigo. E por isso tive muitas dúvidas em incluir esse capítulo. O impulso que me levou a fazê-lo foi exatamente o contrário da leitura que as pessoas estão a fazer: achei que era depositário de uma série de confidências que me fez no final da vida e tinha a obrigação de tornar público o estado de desespero a que chegou.

Sendo sua amiga não pensou o que um texto destes pode fazer aos filhos, que ainda estão a lidar com o luto de uma mãe, que morreu há menos de quatro anos, em outubro de 2012?

Para uma pessoa pública, como era a Margarida, é inevitável que irão sempre sair revelações sobre a sua vida. Ainda agora saiu uma biografia que é incomparavelmente mais devastadora do que o capítulo que escrevi. Eu falo dela com amizade, refiro-a sempre como uma pessoa com quem mantive uma relação próxima durante toda a vida. Daquele capítulo, resulta afeto. Quis dar voz a uma amiga, mostrar o seu ponto de vista, mostrar o grau de desespero em que estava. E, indo mais longe, também escrevi aquilo como um alerta para determinadas pessoas que tomam decisões erradas que as conduzem ao abismo. Nunca me passou pela cabeça que os filhos se sentissem magoados.

O que acharia se alguém escrevesse um livro sobre conversas que tinha tido com o seu pai sobre si?

Não sei. O que posso dizer é que, depois da morte do meu pai, foram publicadas, com a minha aquiescência, várias cartas do meu pai para várias pessoas, nas quais ele fazia juízos sobre mim, uns mais positivos, outros mais negativos, e eu achei isso natural. A determinada altura, eu já era casado, e ele chama-me «infantil» numa carta a uma amiga. Não é simpático.

Mas isso, apesar de tudo, são palavras escritas pelo seu próprio pai. E se alguém revelasse conversas?

Desde que a pessoa fosse credível, não tinha nada a dizer.

Por exemplo, se o Vicente Jorge Silva decidisse fazer um livro sobre conversas que o seu pai tinha tido com ele sobre si…

Achava engraçado. Se ele escrevesse que o meu pai tinha dito muito mal de mim, ficaria triste pelo meu pai, mas não chateado com o Vicente.

E não se sentiria manietado, pois não teria oportunidade de argumentar com o seu pai?

Não. Quem está no espaço público está sempre sujeito a que digam coisas sobre ele.

Acha que aquilo que levou a que se falasse mais deste livro foi essencialmente a questão em torno de Miguel Portas?

Toda esta loucura, todo este incêndio, começa com uma manchete do Diário de Notícias onde dizem que um livro com revelações sobre a vida sexual dos políticos será apresentado por Passos Coelho. Há aqui duas intenções óbvias: uma é atacar-me a mim e ao livro, outra é atacar Passos Coelho. É evidente que existe aqui uma motivação política. Faz algum sentido dizer que uma pessoa que foi 23 anos diretor do Expresso e nove do SOL, dois semanários políticos, vai fazer um livro de mexericos sexuais? Isto entra na cabeça de alguém? Há aqui um objetivo deliberado de deturpar o sentido do livro e de atacar politicamente Passos Coelho.

Não respondeu…

Inicialmente, a frase do Miguel Portas [em que aborda a sexualidade do irmão, Paulo] estava no capítulo do Paulo Portas. Era o fim do capítulo. Mas achei que ali teria muita visibilidade e portanto abri um capítulo sobre o Miguel Portas, pessoa que estimava bastante, para pôr lá essa frase. Achava que ali passaria mais despercebida.

A melhor forma de um assunto desses não ter visibilidade seria não o incluir no livro. Por que, ainda assim, decidiu incluir essa frase? Foi para atacar Paulo Portas?

O que posso dizer sobre isso e sobre mais duas ou três referências sexuais que constam do livro é que publiquei com cuidado as coisas que achei terem relevância para fazer os retratos daqueles protagonistas. E só essas. Não há política sem protagonistas. E, nos políticos, as questões políticas e as questões pessoais cruzam-se muito. Fará algum sentido fazer um retrato de Clinton sem falar de Monica Lewinski? Ou de Mitterrand sem falar das relações extraconjugais?

Ambos cometeram adultério – que, por exemplo, nos EUA continua a ser crime em 21 estados. A homossexualidade não é crime.

Achei que devia incluir esse assunto no livro porque considerei muito relevante que um político que viria a ser tão importante no nosso país – foi vice-primeiro-ministro – tenha pensado, num determinado momento da sua vida, desistir de uma carreira política por razões da sua vida privada. Durante imenso tempo ouvimos dizer que o político X era pedófilo, outro era impotente, outro era tarado sexual, outro era homossexual, outro era bígamo. Isso nunca me interessou. Mas se há um irmão que diz que fulano pensou não ter uma carreira política por causa da sua vida privada, é politicamente muito relevante.

Mas entenderá que, se tivermos em conta os textos que já escreveu acerca da homossexualidade, uma revelação destas é facilmente entendida como uma crítica negativa.

Penso que não encontram muitos, ou nenhum artigo meu, de natureza homofóbica. Encontram, sim, uma posição muito firme contra o casamento gay. E acho que tenho todo o direito de o afirmar. Escrevi um artigo sobre o casamento gay que teve um impacto brutal, até do estrangeiro recebi ameaças de processos no tribunal internacional. Mas eu não posso dizer o que penso sobre o casamento gay?

Uma coisa é manifestar-se contra o casamento gay, outra é a descrição que faz, num outro texto sobre o assunto, no qual descreve os trejeitos de um jovem num elevador no Chiado, concluindo por esses trejeitos que só pode ser homossexual.

Isso era uma descrição. Pelos trejeitos percebi que era gay. Que mal há nisso?

Confere uma outra dimensão a este capítulo…

Só eu posso saber a intenção com que escrevi cada coisa – e garanto que não teve nada a ver com isso. Teve a ver com o facto de achar que aquela observação é politicamente relevante. O Miguel disse-me isto com o ar mais natural do mundo e não me pediu nenhum segredo. E disse-o como ilustração da parolice da nossa sociedade.

Teria lançado este livro, com este capítulo, com Miguel Portas vivo?

Se calhar tinha-lhe perguntado o que ele achava.

O que acha que ele teria respondido?

Não faço a menor ideia. Só posso repetir que ele me disse isto sem me pedir qualquer reserva. E ele já nem era jornalista do Expresso, portanto não tinha nenhuma espécie de dependência em relação a mim. Disse-me isto com toda a liberdade.

O que responde às pessoas que dizem ser impossível que Miguel Portas alguma vez tivesse feito uma confissão destas a José António Saraiva?

Digo que não me conhecem nem conhecem o Miguel. E posso dizer que se enganam, porque é verdade. Algumas das pessoas que têm reagido mal ao livro sabem que sei muito mais do que aquilo que escrevi. Atacam-me na expectativa de que eu tenha a elevação suficiente para não descer o nível da polémica. Isto é extraordinário…

Isso é um pré-aviso?

Não. Quando digo que, sobre alguns episódios, tenho mais informação, não queria que isso fosse tomado como uma ameaça. Digo-o no sentido que me espanta que determinadas pessoas que me têm atacado com uma ferocidade e uma terminologia invulgares o façam no pressuposto de que não vou revelar segredos que sabem que eu sei. O que me espanta é isso. Por um lado dizem que eu não tenho limites; mas por outro lado confiam nos meus limites. Aí é que está o paradoxo. Mas eu respeitarei os limites.

Há várias pessoas referidas no livro que já tinham morrido quando começou a escrever. Mas aconteceu a mulher do Durão Barroso ter morrido entretanto. O que sentiu quando soube da sua morte, sabendo que no livro referia que ela teve um ‘fraquinho’ por Santana Lopes?

Isso é uma pergunta muito sensível. O livro estava em fase de impressão quando ela morreu. É uma referência que eu tiraria se ela tivesse morrido antes. O que é bonito naquela história são as relações entre três amigos, que começaram na universidade. A Margarida teve em certo momento um fascínio pelo Santana Lopes mas casou com o Durão Barroso. É uma história bonita, sem qualquer maldade. E o essencial é como termino o capítulo: eles mantiveram sempre as distâncias. Nos assuntos mais sensíveis tentei sempre concluir de uma maneira elegante: na história do Paulo Portas, digo que ele acabou por ser líder do CDS e vice-primeiro-ministro, e ninguém explorou a sua vida particular.

Não acha que, no livro, transparece uma certa mágoa ou até ressabiamento em relação a Balsemão?

Se transparece isso, lamento, pois não foi a intenção. Quis apresentar Balsemão como um democrata, um homem com quem tive sempre uma relação impecável, uma relação muito leal – contei-lhe tudo o que se ia passando com o SOL, por exemplo. Agora, toda a gente sabe que ele é uma pessoa forreta e eu dou dois ou três exemplos dessa forretice. Também há um capítulo, que admito que seja mais duro, onde falo de uma cena passada no seu gabinete, que me impressionou bastante. Mas achei-a muito reveladora da personalidade do Balsemão, um homem que detesta o confronto e que entre um administrador que defendia uma posição de falcão (e dizia que era preciso bater nos jornalistas) e eu que defendia uma posição conciliatória, ele optou pela minha e foi acusado de fraqueza.

Mas não acha que as pessoas vêem ressabiamento nas suas palavras quando relata que a Impresa dificultou ao máximo o nascer do SOL? Como se não fosse capaz de falar do SOL sem falar do Expresso…

Há um Balsemão antes de eu sair do Expresso e há um Balsemão depois de eu sair do Expresso. Toda a gente sabe que Balsemão não gosta que as pessoas o deixem, e ele viu a minha saída como um abandono, como um tipo que passou para o terreno do inimigo. Ele é indiscutivelmente um democrata mas é também uma pessoa capaz de ser muito violenta quando acha que uma pessoa se passa para o campo do inimigo. Acho que é a primeira vez que falo de um episódio que considero lamentável na imprensa portuguesa, e que foram as pressões feitas sobre Paulo Teixeira Pinto para que o BCP deixasse de ser acionista do SOL. É um capítulo negro. E acho que um democrata, que defende o pluralismo, atuou – ou alguém por ele – de uma forma errada. Para nós, SOL, foi terrível, foi um tiro de canhão. Balsemão não o deveria ter feito, ou deixado alguém fazer isto. E eu não poderia deixar de o escrever.

Durante trinta anos fez notícias, nunca revelando as fontes, quando estas lhe pediam confidencialidade, nem o off, a coisa mais sagrada do jornalismo. Por que acha que, ao revelar as conversas que revela no livro, não está a contrariar tudo isto?

Fiz jornalismo profissionalmente durante 32 anos e penso que nenhum político tem razão de queixa de mim. Nunca nenhum se queixou, tenho a certeza que mantive com todos uma relação exemplar. Mas há uma diferença essencial entre jornalismo e um livro de memórias. Este rege-se por outras regras. Todas as memórias contêm conversas privadas e revelações de bastidores. E até pormenores sexuais. Assim, no momento em que deixei o jornalismo executivo pensei que tinha uma quantidade de material acumulado – que constava de conversas pessoais, documentos, trocas de correspondência, um diário que tinha escrito de forma intermitente. Perante isto, tinha duas hipóteses: uma era não publicar nada, o que era uma hipótese legítima; a outra era revelar um material único sobre a nossa época e os seus protagonistas. Decidi-me pela segunda. E posso pôr a questão ao contrário: guardei segredos durante 40 anos. Houve coisas que ninguém me pediu para não dizer e que guardei durante 40 anos. Escrevo este livro quando deixo o jornalismo executivamente. E quando as pessoas de quem falo já não estão nos lugares onde estavam e a conjuntura é diferente. No âmbito das minhas memórias, achei legítimo divulgar conversas particulares. Mas admito perfeitamente que outras pessoas pensem diferente. E quero reforçar uma coisa: lamento profundamente as pessoas que se sentiram magoadas com isso. Ninguém pense que magoei alguém deliberadamente. Tudo o que fiz foi em nome da verdade.

Admite ser processado por este livro?

Seria um atentado à liberdade…

Essa questão do off não é assim tão simples. Diz que já não é jornalista e que por isso se sente desobrigado de manter esse respeito pelo código deontológico. Mas não acha que prejudicou os jornalistas e a sua relação com os políticos?

Como disse, uma coisa é jornalismo, outra são memórias. Um reporta à actualidade, noutra há um hiato entre os acontecimentos e a sua revelação. E, nas memórias, os segredos têm ou não têm prazo de validade? É mais ou menos consensual, pelo menos lá fora, que os segredos têm um prazo de validade. Há memórias de políticos que revelaram segredos de Estado. Quanto à relação dos políticos com os jornalistas… a melhor prova de que pode existir confiança entre ambos foi a minha prática jornalística ao longo de 30 anos. De resto, acho extraordinário que algumas pessoas que se indignam com o que escrevi o tenham reproduzido em páginas de jornal. As mesmas pessoas que se indignam por eu ter dito coisas num livro que, em princípio, teria uns 2 ou 3 mil exemplares de tiragem, vão reproduzir essas coisas que criticam em jornais que vendem muitos milhares de exemplares! É uma extraordinária hipocrisia! Cujo efeito foi estimular venda do livro, que se tornou um bestseller, quando provavelmente passaria entre os pingos da chuva como outros que escrevi.

Não pode genuinamente acreditar que um livro destes passaria pelos pingos da chuva…

Acreditava. Já no livro anterior revelava uma série de conversas e ninguém se queixou. Porquê agora? Eu admitia que, em relação a este novo livro, fosse acontecer qualquer coisa do género: «Este gajo escreve coisas horríveis, não lhe vamos dar palco». Houve jornalistas que perceberam essa incongruência. O Vítor Gonçalves, da RTP, tinha uma grande entrevista marcada comigo e desmarcou-a porque achou que o livro tinha coisas incómodas e não se sentia à vontade.

Então concorda com Isabel Moreira, do PS, que se recusa a falar do livro, que considera criminoso?

Com certeza. Foi coerente. Mas evidentemente que não leu o livro. E é criminoso insultar-se um livro que não se leu.

É verdade que já tenta desincentivar que se fale do livro? Porquê?

Acho que já se falou demais. O livro não precisa de publicidade, precisa é que as pessoas percebam a sua importância e expurguem o voyeurismo, o insulto… É preciso baixar o nível do ruído. Dou esta entrevista para que as pessoas percebam que o livro não é o que pensam. Sim, porque o Diário de Noticias enganou os leitores. Houve pessoas que foram à livraria a pensar que iam comprar um livro de sexo e afinal onde é que está o sexo? O livro é importante porque revela os bastidores da política, as relações entre jornalistas e políticos e faz retratos rigorosos das grandes figuras da política portuguesa dos últimos 40 anos. Reduzir grandes retratos políticos a meia dúzia de linhas que andaram a debicar como a galinha debica o milho é desonesto, ridículo e enganoso. O meu pai dizia uma coisa engraçada: «A areia da praia é branca. Mas se se olhar com atenção, tem muitos grãos pretos no meio. Ora, se apanharmos um grãozinho preto, e outro, e outro, e os colocarmos na palma da mão, dizemos que a areia é preta. E não é: é branca». Foi isto que fizeram com o livro. Este não é um livro de sexo, é um livro de política, essencial para se perceber o nosso tempo. Foi isso que me levou a escrevê-lo.

Falou do prazo de validade dos segredos. Há revelações no livro cujo prazo de validade foi muito curto, nomeadamente quando conta quem lhe disse que Pinto Monteiro almoçava todas as semanas com Proença de Carvalho. Passaram-se menos de dez anos…

Podia ter escrito isso na altura. Esses almoços tinham lugar num determinado restaurante e portanto bastava-me mandar um jornalista lá para o saber. Se tivesse outra maneira de fazer jornalismo, era o que teria feito. Mas sou uma pessoa com princípios e limites. Entendi respeitar a semi-confidencialidade em que Freitas do Amaral mo disse. Nem aos meus colegas de direção revelei isto.

Como é possível guardar segredos para os seus colegas de direção e depois revelá-los num livro?

Defino muito bem os planos: há o plano da relação profissional e a amizade que tenho com a direção do SOL. E há coisas que entendi que devia guardar. Este livro é um bocadinho o meu outro lado. Todos os Saraivas têm um lado mais institucional e outro mais provocatório.

Disse que só revelava alguns destes segredos agora porque saiu do jornalismo executivo, mas ao mesmo tempo diz que alguns destes segredos já tinham sido revelados no seu anterior livro, lançado quando ainda estava no jornalismo executivo…

Neste livro vou mais longe. Mas sim, é verdade que esse princípio da revelação do segredo já estava quebrado, embora fossem também livros de memórias. Mas neste livro fui mais longe, porque houve essa mudança na minha vida e isso libertou-me de uns limites aos quais me sentia mais obrigado nos outros livros.

Se soubesse que a apresentação do livro ia causar este embaraço a Passos Coelho, tinha-o convidado?

(silêncio) Não. A apresentação de um livro é sempre um favor que pedimos a alguém. Ora, não vamos pedir um favor se tivermos a noção de que esse alguém vai sofrer dissabores pelo favor que nos está a fazer. É um princípio fundamental de educação. Não ia pedir a ninguém um favor que prejudicasse essa pessoa. Aliás, olhando para trás, admito que, quando fiz o convite, posso tê-lo induzido em erro. Porque não lhe expliquei, com o pormenor necessário, a delicadeza de alguns assuntos do livro. Isso sucedeu porque não calculei que isto fosse adquirir esta dimensão. Não antevi que alguns temas pudessem ter a visibilidade que tiveram. E isso tornou a presença dele muito difícil. Por exemplo, a questão de Paulo Portas… Paulo Portas foi vice-primeiro-ministro dele. Ora, estar na apresentação de um livro que podia ser incómodo para Portas acabava por ser também muito incómodo para ele. Porque a presença na apresentação do livro era, de alguma maneira, um aval ao seu conteúdo.

Mas ele não conhecia o conteúdo?

Quando aceitou não conhecia, de todo, o conteúdo do livro.

 

[Por esta altura, José António Saraiva recebeu uma chamada de Passos Coelho].

 

Não vai apresentar o livro, então?

Pediu-me que o desobrigasse do compromisso que assumiu de apresentar o livro, alegando que há nele aspectos privados e não políticos, além de que algumas pessoas com quem tem relações políticas podem sentir-se melindradas com aspetos do seu conteúdo. Percebo que é embaraçoso para um líder partidário apresentar um livro onde se diz que um militante destacado do seu partido é mentiroso. A primeira coisa que lhe disse foi: «Da mesma maneira que o senhor aceitou apresentar o livro sem me perguntar nada, desobrigo-o de o apresentar com a mesma rapidez». Era o mínimo que podia fazer…

Já esperava esta decisão?

Não, não esperava, até aqui ele tinha dito sempre que iria. Esta decisão foi absolutamente inesperada, mas acho completamente compreensível. Metendo-me na pele dele, é a atitude mais sensata.

Há pouco falou num diário onde tomava notas. A intenção foi sempre fazer um livro?

Não fiz um, fiz três. O primeiro, Confissões de um Diretor de Jornal, esteve escrito na gaveta durante anos. Por acaso, mostrei-o a Guilherme Valente [da Gradiva], que agora se meteu na alhada de publicar este livro mas que na altura me desaconselhou de publicar o outro, por também ter matéria sensível. Passados uns tempos, mostrei-o a Balsemão, que fez uma série de observações muito pormenorizadas, e publiquei-o. O segundo, Confissões, tem a motivação de contar o nascimento do SOL. Claro que vou atrás, ao Expresso, e ainda completei o livro com um capítulo sobre conversas à mesa com políticos. Este terceiro livro ocorre-me quando saio da direção do SOL. Achei que tinha de pensar para a frente, nunca me concentrei no passado, sempre no futuro. Assim, quando saí, pensei em fazer um livro na linha dos outros — mas no qual aquilo que nos outros eram apêndices neste ocuparia o centro do palco. Este livro só nasce quando saio da direção do SOL, no fim do ano. Comecei a escrever em janeiro e acabei em junho.

Mas por que tirava notas?

Porque senti que estava em cargos importantes, que tinha acesso a informações importantes e um dia aquilo podia ser-me útil para alguma coisa.

Alguma vez disse a essas pessoas que chegava a casa e apontava as conversas que tinha tido em off?

A algumas disse. Chegava a casa e pensava que tinha tido uma conversa tão gira, por exemplo, com o Marques Mendes, e registava-a. A Margarida Marante telefona-me e tivemos um telefonema de duas horas que me impressionou muito, de seguida tomei notas. Mas nunca planeei nem programei, nunca guardei documentos com o objetivo de fazer qualquer coisa.

Alguma dessas figuras a quem admitiu escrever esse diário alguma vez lhe disse «Veja lá o que vai fazer com isso»?

Não. Quer dizer, depois de publicar o meu primeiro livro – e devo dizer que todos os políticos continuaram a falar comigo com grande liberdade – um ou outro passou a dizer-me: «Agora não me diga que vai escarrapachar isto no seu próximo livro!». Mas em tom brincalhão. Houve só uma pessoa que explicitamente me disse: «Se você publicar isto, eu desminto-o». Foi um dos segredos que guardei vinte e tal anos, mas agora todos os envolvidos estão noutros sítios. Mas repito: foi um livro escrito no fio da navalha.

Quando uma pessoa lhe diz frontalmente que não quer que revele algo, e decide publicar, como fica? Não com essas tais pessoas que já não ocupam os mesmos cargos, mas consigo, com a sua consciência?

Todas as memórias contêm confidências. Se não revelassem nada, não tinham interesse nenhum. E, repito, nunca nenhum político me falou como amigo. Mantive sempre uma certa distância. Mas há nessas revelações mixed feelings. Por um lado, é verdade que estou a revelar uma conversa privada, mas, por outro lado, também é verdade que a mantive em reserva durante décadas. E nunca entrei em situações de cumplicidade com políticos, em que eles fossem levados a dizer aquilo que não queriam dizer. Disseram-me sempre espontaneamente aquilo que queriam dizer. Nunca fui daqueles jornalistas saca-rolhas. Agora, se me perguntam se tive dúvidas, tive. Ainda hoje tenho.

Tem dormido menos bem neste últimos dias?

Sim. Embora adormeça sempre tranquilamente, tenho acordado mais cedo. E incomoda-me muito ligar a televisão e ver que falam de mim em três canais diferentes. Incomoda-me a exposição na praça pública. Mas estou muito feliz por ter tido a coragem de escrever estas memórias, porque elas inauguram um tempo novo, quer na literatura política quer na maneira de escrever memórias. O facto de se basearem em conversas dá a estas memórias uma grande autenticidade. É uma maneira nova de escrever a história de um tempo, com declarações dos seus protagonistas e com pequenas observações sobre os seus hábitos. Este livro é verdadeiramente um sopro de liberdade. E estranho que os jornalistas, que são tão ávidos de escândalos e exultaram com o Wikileaks, os Panama Papers, o Watergate, quando em todos eles há documentos obtidos de forma menos digna ou ilegítima, me lancem uma fatwa por contar duas ou três historietas que achei relevantes para fazer o retrato de certas pessoas. Há aqui um cinismo atroz. Se os políticos visados se queixassem, respeitava. Agora os jornalistas, ávidos de escândalos, que todos os dias quebram o segredo de justiça, chamam-me a mim malandro?

Quando diz que se sente incomodado por ligar o televisor e estarem a falar de si, isso não é um bocado o papel da virgem ofendida? Quando se escreve um livro destes…

Sinto-me ofendido por ser insultado, claro. Mas o que me choca não são os insultos, choca-me ser muito exposto, não me sinto à vontade. A exposição incomoda-me.

Como é que um homem que diz que se sente incomodado com a exposição se põe permanentemente sob as luzes da ribalta, seja com livros como este, seja quando dá entrevistas nas quais diz que gostava de ganhar um Nobel?

Pode ficar essa ideia… Eu tenho um lado provocatório e é esse lado que dá azo a esses episódios. Esse lado faz parte do meu ADN. Agora quando ele se torna tema de notícia, isso sim é que me incomoda. E já agora… gostava de esclarecer essa história do Nobel. Falei do Nobel neste sentido: entre um escritor e uma folha de papel não há nenhum muro, é só escrever. E, portanto, cada pessoa que escreve tem de ter a ilusão de que consegue chegar ao topo, porque os limites são só os nossos. E se me perguntam se não tenho consciência dos meus limites… tenho, mas também tenho a vontade de os ultrapassar. Foi neste sentido que disse que cada pessoa que escreve tem de ter a ambição de querer chegar ao Nobel.

E portanto continua a ser um objetivo?

O meu objetivo é, em cada momento, conseguir ultrapassar-me. Tal como sempre que fazia a primeira página do Expresso ou do SOL tinha sempre a convicção que estava a fazer a melhor primeira página do mundo. Obviamente que dificilmente alguma vez o conseguimos. Mas havia a força da convicção.

Não acha que declarações como essas, tal como o ter dito que em pouquíssimo tempo o SOL ultrapassaria o Expresso, o podem expor ao ridículo e contribuir para os tais anticorpos que sente em relação a si?

É evidente que, quando uma pessoa tem a coragem de dizer certas coisas que pensa, corre o risco de, quando a realidade o desmente, ser ridicularizado. Normalmente pelos medíocres, porque só esses se ocupam a ridicularizar os outros. O Jorge Jesus, por exemplo, que tem um ego do tamanho do mundo, é todos os dias ridicularizado.

O ego do Jesus é tão grande como o do José António?

O carisma faz-se pela diferença e não pelo politicamente correto e por fingirmos ser todos muito modestos. O carisma de uma pessoa faz-se pela autenticidade e por ser capaz de dizer aquilo que pensa. Quando disse que o SOL ia ultrapassar o Expresso, estava profundamente convicto disso.

A não concretização dessa crença deixa-o frustrado?

Passámos ao longo destes dez anos momentos angustiantes – mas falo mais de angústia do que de frustração. Porquê? Porque não sou muito de olhar para trás. Não me sento a chorar sobre um problema. Nunca me senti frustrado, porque estou sempre a olhar para a frente, acho que é isto que me mantém na primeira linha do jornalismo português há 30 anos.

Os jovens de hoje sabem pouco, ou nada, desse percurso. O que sabem é que o José António é o homem que escreve textos sobre trejeitos gays num elevador no Chiado e lança livros polémicos. Sente-se injustiçado?

Também há pessoas que me dizem que me leem desde os 11 anos de idade. Há pessoas que gostam de mim e outras que me detestam. Ontem, um vice-presidente do Benfica falava dos momentos marcantes do Jesus, e eram todos derrotas. As derrotas são mais dramáticas e, portanto, há pessoas que só ligam a elas. Mas também tenho leitores muito fiéis, que compram o jornal para me ler.

Diz que é arquiteto mas, tirando casos esporádicos, não exerce arquitetura há 30 e tal anos. Pelo contrário, há quase 40 anos que trabalha em jornalismo. Por que nunca se assumiu como jornalista?

Porque não me sinto jornalista. Não tenho muitas qualidades que os jornalistas têm, mas também não tenho muitos defeitos que os jornalistas têm. Neste sentido, nunca me senti exatamente jornalista.

Mas teve carteira profissional de jornalista?

Sim, tive, até há poucos meses.

E foi sempre visto como um dos jornalistas mais influentes do país. Teme que amanhã ninguém lhe atenda o telefone por causa deste livro?

Essa importância que revela é uma importância delegada, não é intrínseca. É uma importância pelo facto de desempenhar certos cargos, porque era diretor do Expresso. Quando passei do Expresso para o SOL, houve muita gente que me deixou de falar com tanta regularidade. É normal. Estava perfeitamente preparado para isso e não tinha dúvidas de que aconteceria. E agora que deixo de ser diretor do SOL, obviamente que isso ainda se vai acentuar mais. E depois de escrever um livro destes, obviamente que haverá muita gente que deixará até de me falar. Sou bastante racional e preparei-me para tudo isso, porque não tinha qualquer dúvida de que iria acontecer. Não me sentia particularmente importante quando falava diariamente, ou quase, com o primeiro-ministro; nem me sinto frustrado quando isso não acontece. Continuo a ser a mesma pessoa.

O que responde a quem diz que está louco?

Todos temos um pouco de loucos. E as pessoas que não têm um grão de loucura também não têm graça nenhuma. Agora, louco, louco, ainda não estou. Faço uma vida normal, tenho uma família normal, exerço ainda a minha atividade de uma forma normal. Portanto, louco de manicómio ainda não estou. Agora, acho que tenho um grão de loucura que me dá uma certa graça. E sobretudo me dá, digamos, uma liberdade que é bastante rara no nosso país, que é um país bastante pequenino, muito parolo, muito convencional, muito politicamente correto. Um país onde um gesto de liberdade como este livro representou provoca logo um escândalo enorme. Se um livro destes fosse publicado nos EUA, Inglaterra ou França, não provocava um centésimo do escândalo que está a provocar aqui.

Acusam-no de falar muito de sexo. Tem algum problema com o sexo?

Não. Acho que sou uma pessoa sexualmente bastante normal. Não tenho, digamos, nenhuma tara especial. Tenho uma mulher, a mesma mulher, sou casado desde 1973. Acho que sou uma pessoa totalmente normal do ponto de vista sexual.

Mas tem um fascínio pelo sexo, nem que seja um fascínio literário?

Não sei… É evidente que o sexo faz parte da nossa vida. E eu, antes de mais, sou um observador do quotidiano e procuro agarrar os temas que acho que mexem connosco. Por vezes com um lado provocatório – e o sexo tem esse lado. Mas, do ponto de vista pessoal, que eu saiba não tenho nenhum problema. Não me vão perguntar se uso Viagra?

Sim.

Nunca usei. E há dias ouvi uma história de um tipo que usou pela primeira vez e ficou com taquicardia. Acho que o melhor é não usar mesmo.

Quer acrescentar alguma coisa?

Não, acho que já me espremeram o suficiente.