Marçal Aquino. “No Juízo Final, eu quero estar na fila dos escritores”

Aos 58 anos, Marçal Aquino não só é um dos grandes escritores brasileiros como também um dos nomes que estão a empurrar a ficção televisiva para lá da sombra das telenovelas. Está há 10 anos com a Globo, escrevendo o argumento de séries policiais e, através da longa e frutuosa colaboração com o cineasta Beto Brant,…

Começou no jornalismo, que foi o modo de fazer pela vida sem desfazer nem ficar longe da sua paixão pela escrita. Isto depois de, na adolescência, ter decidido que era isso o que queria: pôr a vida no papel. Marçal Aquino soube interessar-se pela realidade, cortejá-la à distância, segui-la sem se fazer notar. Para lá do vício dos livros, é como andarilho, no meio do mundo, que colhe o grito das ruas e depois o passa a limpo nas suas ficções. Aprendeu a tratar os factos, fazer a realidade entrar na sua literatura sem tomar conta dela. Considerado um dos grandes autores da literatura brasileira contemporânea, é hoje conhecido do grande público pelo trabalho como guionista da TV Globo, assinando o argumento de séries policiais que são vistas por milhões. Mas a paixão continua a ser a literatura e, após 10 anos sem publicar, tendo abandonado dois livros, está agora a acabar um romance que deverá chegar aos leitores no próximo ano. Nesta entrevista falamos de todo o seu percurso, da influência da tradição oral na sua obra e de alguns autores que admira, incluindo Elena Ferrante que, segundo sabe, vive actualmente em Portugal.

Como descobriu que o seu modo de expressão ia mais longe através da escrita?

Nasci numa fazendo, uma zona rural, não existiam livros em casa, e pelos 10, 12 anos, estava muito envolvido com banda desenhada, achei que ia ser desenhador… Eu adorava desenhar. Não tinha o costume de ler, e foi então que li os primeiros livros. Livros de aventuras, aquilo que todo o mundo lê. Stevenson, Daniel deFoe, a turma toda. Descobri então que a literatura me satisfazia muito mais do que a banda desenhada. Deu-me vontade de me tornar escritor. Por volta dos 14, 15 anos deixei a banda desenhada pela literatura, e comecei a escrever. Com 16 anos achava que ia fazer poesia. Inclusivamente cheguei a publicar um livro de poemas. Mas depois entendi que não era poeta. Lia muita poesia, como leio até hoje, e isso automaticamente me levou a escrever poesia, mas o que eu chamava de poesia já era uma prosa disfarçada. Porque tinha enredo, tinha personagens… Então eu abandonei completamente a ideia de fazer poesia e investi todo o meu esforço na prosa. Na hora de escolher uma profissão fi-lo muito em função do que já fazia. Virei jornalista por conta da ideia de escrever. Meu pai provavelmente sonhou para mim que eu fosse advogado, mas eu queria ser escritor.

Passou pelo “Jornal da Tarde”, um que não estava tão preocupado com as notícias mas antes com a maneira como estas eram contadas. Pode falar-me desta experiência?

Curiosamente era um jornal que eu cresci lendo. Foi criado em 1967, eu tinha 10 anos, e li-o durante toda a minha juventude. Era um jornal que dava um tratamento gráfico diferenciado, que valorizava muito a fotografia – eventualmente você tinha capas onde saía uma foto inteira. O jornal não tinha preocupação com as vendas. Era mantido pelo “Estado de S. Paulo”, que é um jornal mais tradicional. Era o chamado jornal de publicitários. Chegava às bancas ao meio-dia, então as pessoas já tinham lido as notícias. Estava muito ligado a São Paulo e além do lado gráfico os textos eram literários. Não à toa, a maioria dos jornalistas que trabalhavam lá eram escritores. O Ivan Ângelo, um escritor maravilhoso era o secretário de redacção. O Fernando Portela, que foi meu editor, estava lá no jornal mas era escritor também. Então quando me formo em jornalismo e vou à cidade para arranjar trabalho, e consigo um lugar no “Jornal da Tarde” eu estava a realizar um sonho. Trabalhar naquele ambiente onde não tinha horário, onde eles exigiam que você desse um tratamento literário às matérias. O “Jornal da Tarde” é famoso pelos títulos, pelas manchetes que fazia. Eles não se contentavam em dar a notícia. Só para dar um exemplo: Quando o Picasso morreu lembro-me da manchete do jornal: Picasso morreu, se é que Picasso morre. Quando o Brasil perdeu a Copa de 82, em que a selecção brasileira era considerada a melhor de todos os tempos, e perdeu a Copa para a Itália, a capa do jornal era uma foto inteira de um menino com a camisola do Brasil chorando e em baixo estava escrito assim: Barcelona, 2 de Junho de 1982. Só isso. Quando a emenda das eleições directas perdeu – porque nós vivíamos na ditadura militar, nós não votávamos, e houve uma espécie de plebiscito entre os políticos para saber se o Brasil teria eleições directas, e perdemos, a chamada emenda Dante de Oliveira, que era de um deputado, foi negada – então o “Jornal da Tarde” publicou uma capa inteirinha em negro. Como se estivesse de luto. Era um jornal impossível de ser pensado hoje. E foi a grande escola de jornalismo para mim. Acrescente-se a isso o facto de lá eu ter tido experiência como repórter policial, e nisso eu descobri o submundo de São Paulo. Meti-me no submundo do crime para fazer matérias e entendi que os personagens sobre os quais eu queria falar na minha literatura estavam ali. O jornalismo, nesse sentido, contaminou a minha literatura. De uma forma voluntária.

Além do que escrevia para o jornal, o que é que escrevia para si?

Comecei como contista. Publiquei dois livros de contos. Aconteceu o seguinte comigo: No Brasil, a década de 1970 a 1980 é muito importante para o conto, um momento em que as editoras publicam sobretudo contos. Havia uma colecção muito famosa chamada “Autores Brasileiros”, da Editora Ática, onde 90% do material publicado eram contos. Não sei porquê, mas a verdade é que eu me formei leitor e escritor nessa década. Entrei com 12 anos e saí com 22; é um período muito importante da minha vida. Lia muitos contos e automaticamente virei contista. Escrevi um primeiro livro de contos, que eu só conseguiria publicar 10 anos depois, porque na década seguinte, ao contrário, o conto passou a ser maldito. Eles diziam que o conto não era comercial, e o que queriam eram romances. O que permitiu que eu publicasse esse livro foi um prémio literário muito importante que eu ganhei nesse momento. Era um prémio da Nestlé de um valor imenso e também publicavam o livro. Ganhei o concurso com um livro chamado “As Fomes de Setembro”, e foi a minha primeira publicação de contos. A partir daí escrevi um segundo livro de contos e, então, aconteceu uma coisa acidental: envolvi-me com o cinema. Desse livro houve um conto que nós transformámos numa longa-metragem. Com o Beto Brant, que quis-me conhecer porque ele leu esse conto e queria fazer um filme. Ele nem sabia que eu era cinéfilo, mas nós estabelecemos uma amizade e, por conta disso, virei roteirista, o que mudou a minha vida.

O que há na relação com o Beto que fez da vossa parceria uma das mais bem sucedidas do cinema brasileiro?

Para além da amizade hoje nós somos como irmãos. Eu frequento a casa dele e ele a minha. O pai dele trata-me como se eu fosse um filho, e a minha filha como a uma neta. O universo literário sobre o qual eu trabalho, interessa-lhe para falar dos problemas dele. Nós não somos exactamente da mesma geração. O Beto é seis anos mais novo do que eu, mas interessa-se muito pelo meu mundo literário para poder falar das questões dele. Acho que, na verdade, seria mais adequado perguntar a ele porquê esse interesse. Ele fala sempre: “Por mim eu só filmava os seus livros, o problema é que você escreve pouco. Ou eu filmo muito.” Então às vezes eu indico um outro escritor para ele filmar, como já aconteceu. Indiquei o Daniel Galera, a gente filmou um livro do Sérgio Sant’Ana. Ocorre uma coisa bastante promíscua entre nós: ele vem a minha casa e eu leio-lhe capítulos dos livros em progresso, e ele diz: “Nós vamos fazer um filme”. Só que hoje ele tem a paciência de esperar que eu termine os livros, porque já aconteceu no meio de um livro, o caso de “O Invasor”, que é um filme bastante conhecido no Brasil, nesse caso eu tinha dois terços do livro pronto e eu parei o livro e transformei em roteiro para ele filmar. Depois eu voltei ao livro cinco anos depois e terminei o livro e publiquei.

Mas foi o Beto que insistiu para que o fizesse, não foi?

Foi ele, porque nós tínhamos feito um segundo filme chamado “Acção entre Amigos”, que fala do período da ditadura militar brasileira… E eu tinha um projecto de romance a partir dele. Houve um personagem muito importante há história política brasileira, um traidor, um sujeito que era da marinha, chamado Cabo Anselmo, ele infiltrou-se na esquerda, nos grupos de guerrilha, e nunca se soube que ele era um infiltrado. Ele destroçou esses grupos, entregando muita gente para a polícia. Esse cara, supostamente quando acaba o processo militar, ele teria feito uma plástica que mudou todo o rosto dele e ele continuaria no Brasil, mas ninguém sabia quem ele era. Um jornalista meu amigo conseguiu achá-lo, e entrevistou-o. Mas ele não permitiu que lhe tirassem fotografias. E eu perguntei a esse jornalista se ele estava diferente, e o cara disse: “Não, ele está igual. Ele só está mais velho. Mas uma pessoa que o tenho conhecido vai reconhecê-lo.” E todos queriam matá-lo porque ele era um traidor da esquerda. Então ocorreu-me a ideia de fazer um texto em que esses guerrilheiros, que foram torturados (um deles perdeu a mulher na guerrilha), reencontram um homem que pode ser o traidor, mas há essa dúvida. Então eu comecei a fazer uma pesquisa de época para poder dar consistência ao romance. Nesse momento o Berto queria fazer o segundo filme e eu entreguei para ele o que eu tinha, que era um argumento não era o livro, eu não tinha ainda começado a escrever o romance, e quando nós fizemos o “Acção entre Amigos” eu não vi razão para escrever o livro, eu já parti para outro livro. Porque eu tenho essa coisa, quando eu escrevo literatura trabalho muito no escuro. Vou descobrindo o livro à medida que o vou escrevendo. Não existe essa história de pensar o livro antes, planejar o livro. Sou guiado muito pela intuição. Começo a escrever e começo a entender que história eu me estou contando. Eu adoro inclusive esse risco de chegar no meio do livro e não saber para onde você vai. Isso para mim é algo inerente à maneira como trabalho, diferentemente de quando faço roteiro, em que eu tenho de saber tudo. Talvez até por oposição a isso, como eu acho que sou escritor antes de mais nada, gosto dessa ideia de trabalhar sem saber. Então o que aconteceu foi o seguinte: Quando chegamos ao filme, entendi que não havia já razão para escrever “Acção entre Amigos”, e o Beto considerou que foi um livro perdido. Quando fizemos "O Invasor” ele insistiu que não queria que eu perdesse um segundo livro. E eu nesse momento já estava a fazer outro livro, o “Cabeça a Prémio”, tinha abandonado a ideia de fazer “O Invasor”. Só que o Beto insistiu tanto, me seduziu, porque me deu um conjunto de fotos de cena do filme para eu publicar no livro, e eu publiquei o texto, as fotos e o roteiro numa edição muito bonita. Então eu voltei para o romance cinco anos depois e terminei-o. Mas foi uma experiência única, não pretendo repeti-la. Hoje eu escrevo, o Beto aguarda que eu termine o livro e então nós fazemos os filmes.

E qual é a recepção do lado dos leitores e daqueles que vão ver os filmes perante as duas obras à volta de uma mesma trama, sendo que se há um ponto em que se confundem, a verdade é que a literatura não é redutível ao cinema?

Instintivamente nunca fui ver um filme baseado na expectativa de ver o livro na tela. As pessoas vão e saem sempre dizendo: “O livro era melhor.” Tem até aquela piada famosa dos dois ratinhos que estavam na Cinemateca francesa roendo o celuloide e chegou um terceiro ratinho e pergunta: Que tal? E um deles responde: “O livro era melhor.” É uma espécie de tradição dizer que o livro era melhor. Eu não. Acho que um filme, e com o tempo me apercebi disso de forma clara, um filme baseado num livro é uma leitura deste que é feito numa linguagem audiovisual. Posso filmar um livro e você também e certamente serão filmes diferentes, porque cada um lê de uma maneira. Então eu não tenho esse problema de buscar fidelidade. Mas eu sofro muito com isso porque, como eu ajudo a fazer os roteiros, um jornalista uma vez me perguntou: “Quanto você ganha para ajudar a destruir os seus livros?” Agora eu não tenho esse problema. Acho maravilhosa essa possibilidade de você ter um livro, porque eu já o fiz, o livro existe, e eu poder ampliar o alcance dele numa outra linguagem, que é a audiovisual. Como eu trabalho como roteirista isso me enche de felicidade. Não espero que o Beto seja fiel ao livro, espero que seja fiel àquilo que ele acredita, e na leitura que fez do livro.

Se o Marçal é claramente um escritor que pesa cada palavra, arma a frase, nota-se no seu ritmo que aprendeu muito com a poesia, usando uma linguagem depurada, há uma complementaridade na medida em que também é um escritor das histórias, os seus enredos nunca são banais. Mas quando está a escrever o que é que verdadeiramente o conduz?

É a trama. Eu costume dizer que eu sou um escritor de enredo. Para eu sentar para escrever eu tenho de ter um acontecimento. Existe um facto sobre o qual eu quero falar, e então eu vou procurar a linguagem. A linguagem, nesse sentido, para mim é secundária. Aquela trama existe na minha cabeça e tem um momento em que ela começa a me perturbar de tal maneira que tenho de contá-la ou, pelo menos, um fragmento da história que eu sei. Nunca sei a história toda evidentemente. Sei um pedaço, sei entrar nessa história. Costumo dizer que tem um momento que eu descubro a primeira frase do livro e nesse momento começo a contar uma história. Então logo me vou preocupar com a linguagem, e se vai ser narrado na primeira pessoa ou na terceira…. É tudo muito instintivo, não existe nada pensado. Apenas uma curiosidade: eu escrevo literatura em cadernos, à mão. Manuscrevo os meus livros, todos têm manuscritos. Não escrevo directo no computador. Roteiro evidentemente escrevo directo no computador, até para diferenciar a literatura. Mas só quando tenho uma trama vou para os cadernos, e então, na linguagem, eu sou um produto daquilo que eu leio, dos escritores de que eu gosto, das vozes que eu ouvi desses escritores, e sobretudo da poesia. Porque sou um grande leitor de poesia. Continuo amando a poesia profundamente embora não pratique.

Em Portugal, à semelhança do que acontece no resto do mundo, tem tido algum impacto o fenómeno da Tetralogia Napolitana de Elena Ferrante. Mas sei que para si esses livros estão longe de ser o que mais interessa desta autora, e que tem preferência por um romance anterior, “Os Dias de Abandono”. Pode-me explicar porque foi tão desarmante a sua leitura?

Eu não conhecia a Elena Ferrante. A descoberta foi aqui em Portugal, embora ela seja italiana. Um amigo falou-me dela e, curiosamente, entrei numa livraria aqui e encontrei a edição da Relógio D’Água e fui ler aquela mulher. Aquilo me impactou de uma forma tão profunda que não consegui terminar o livro. É aquele livro que é tão bom que te faz mal. Porquê? É a descrição de um processo de loucura – reduzindo bastante o enredo seria. Narrado na primeira pessoa, por uma mulher que tem um filho e o marido a abandona. Vai embora por conta de outra mulher. Ela é surpreendida, nunca o esperara porque o casamento era estável, estava tranquilo, e ele anuncia: “Vou-me embora.” Neste momento ela começa a desenvolver um processo de loucura, e eu nunca tinha lido um processo de loucura descrito na primeira pessoa com tal potência. Uma potência que faz mal. Demorei a voltar a esse livro e terminar de o ler. Para mim é a obra-prima da Elena. Na verdade, não aprecio tanto assim a tetralogia. É uma espécie de romance de formação… Tem a sua beleza porque a Elena é uma grande escritora, mas a potência narrativa de “Os Dias de Abandono” não está naquela tetralogia. Quem quiser conhecer a verdadeira Elena Ferrante recomendo que leia este livro.

O livro impressionou-o a tal ponto que ficou com a sensação de que só poderia ter sido escrito por alguém que viveu aquilo.

Podemos estar redondamente enganados. Temos casos de freiras que escreveram excelente poesia erótica, sem nunca terem vivido o amor físico. Eu escrevo sobre assassinos, mas sou incapaz de matar qualquer animal, não tenho esse lado, quanto mais um ser humano. Mas naquele caso, por se tratar de uma descrição detalhada de um processo de loucura que se instala lentamente, e passo a passo você vai junto com ela…. O poder da Elena narradora é tal que você se sente na pele daquela mulher e começa a duvidar da sua sanidade. Você não fica fora da narrativa, dizendo: “esta mulher está louca.” Não. Você compreende a loucura dela, e dá a sensação que você faria a mesma coisa. Esse é o poder dessa escritora. Então me parece que é baseado numa experiência real. Mas não é possível ter a certeza até porque ela é uma escritora reclusa, que não aparece. Há até duvidas se ela de facto existe. Na Itália havia boatos de que se tratava de um grupo de homens escrevendo. É uma coisa, na verdade, absolutamente machista.

Mas o Marçal ouviu dizer que ela até vivia em Portugal.

Exactamente. Dizem-me que ela vive aqui em Portugal, naturalmente com outro nome, porque Elena Ferrante é um pseudónimo. Eu acredito porque ela não se recusa a dar entrevistas, por email. Ela deu uma entrevista em que diz que só foi possível escrever sobre a vida dela adoptando um pseudónimo. A sensação que eu tenho é que Elena criou um personagem para si para poder escrever o que ela tinha de escrever. Se ela escrevesse com o nome dela, para além dos problemas com outras pessoas – porque ela conta, me parece, a partir de personagens reais -, ela teria um problema com ela mesma, teria uma certa inibição em relação a escrever o que precisa de escrever. O que importa é que ela tem livros poderosíssimos, como “Os Dias de Abandono”.

Já deu por si a reviver algum momento da sua vida e a pensar que gostaria de tomá-lo como a base para um livro seu?

Eu vim do jornalismo, que pressupõe que você está a escrever sobre coisas que de facto ocorreram. Nem sempre é assim, mas nós pressupomos que o que está no jornal aconteceu. Mas eu acho que as coisas todas se misturam. Me perguntam às vezes, e para mim isso é um elogio, o maior elogio que eu posso receber é quando um leitor me diz: “Vem cá, isso de facto ocorreu?” É nesse momento que entendo que consegui o meu objectivo. Porque a gente escreve um livro, a gente acredita naquela história. Existe uma verdade dentro do livro e a minha expectativa é que o leitor compartilhe isso comigo, acreditando que aquilo de facto se passou. Mas eu nunca peguei num facto real e trabalhei nele. É impossível separar uma coisa da outra. Acredito em literatura como acreditava o Faulkner. Ele defendia a literatura como um trinómio: Observação, imaginação, experiência. Acho que essas três coisas explicam qualquer literatura. Qual é a dosagem de cada uma dessas coisas? Depende de cada escritor. Evidentemente eu lido muito com o mundo real, sou muito influenciado por ele, mas eu não pego facto e trabalho ele literariamente. Vou para a rua, por exemplo, e vejo uma coisa ou ouço algo e aquilo dispara a centelha da ficção.

O Marçal tem esse processo de pesquisa que lhe é próprio e que fez de si, como diz, um andarilho. O que é que se passou para ter-se apercebido de como o mundo podia ser a grande influência no seu trabalho de ficção?

Nasci como eu disse numa fazenda, onde fui criado até aos seis anos de idade. Naquele lugar onde eu vivia não existia televisão na época. Então as pessoas se reuniam à noite para conversar e contavam histórias umas às outras. Que histórias? Histórias sobre o que tinha ocorrido com elas. O meu pai era um grande contador de história, e eu percebi uma coisa – como eu ouvia ele contar a mesma história várias vezes, percebia que a história ia-se modificando. Conhecia a primeira versão que ele contou, mas aí ele próprio ao contar a segunda versão percebia que era melhor guardar aquele trecho para o final porque teria mais impacto. Ele instintivamente tinha uma técnica de contar histórias que me parecia fabulosa, então tive vontade de narrar histórias a partir daquele ponto de vista, daquela experiência de ouvir histórias e contar histórias. Por isso fui para a rua, entendi que a minha literatura nasceria na rua. No mínimo entendi que eu haveria de me tornar um bom dialoguista. Vou saber escrever diálogos porque sei escutar as pessoas quando falam. Tenho muita curiosidade pelo outro. Captar as histórias na rua nasceu de ouvir pessoas contando histórias e tentar coloca-las no papel. Eu vim da tradição oral para a tradição literária.

Há quantos anos é que o Marçal trabalha quase exclusivamente como roteirista?

Passei a trabalhar como roteirista profissional há 10 anos, quando fui para a televisão. Porque o cinema brasileiro é muito precário. Não dava para viver como roteirista. Continuei a trabalhar como jornalista, como freelancer, fazendo trabalhos de redacção, vivendo da escrita. Há 10 anos mudei completamente de profissão. Deixei o jornalismo totalmente, hoje sou um roteirista contratado pela Globo e vivo disso, de contar as minhas histórias em forma de roteiro.

Estes últimos dez anos coincidiram com um período em que não publicou qualquer romance.

Publiquei “Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios” há 11 anos, em 2005, e naquele momento comecei um outro livro, e depois de trabalhar uns dois ou três anos naquele livro perdi o interesse por ele. Achei que não era aquela história que eu tinha que contar. Pareceu-me que já tinha contado aquele tipo de história. Pareceu-me que estava pisando sobre as minhas próprias pegadas, e isso não me interessou. Interessava-me o desafio de escrever sobre algo que eu não conheço, que nunca experimentei. E fiquei à espera disso, sem nenhuma angústia. Não tenho compromisso de publicar. Quem se preocupa mais com a minha publicação é o meu editor, não eu. Acho que só vale a pena escrever uma história quando tem algo que te desafia. Escrever mais do mesmo não me interessa. Por exemplo, ao gosto de um certo público que me lê, eles gostariam que eu seguisse escrevendo novelas policiais. Sou conhecido como um escritor policial mas acho que a minha literatura vai a lugares onde a literatura policial não vai.

Disse que gostava de contar histórias de amor.

Adoro. Foi o que sempre tentei contar. O “Cabeça a Prémio”, que é uma novela policial, nasceu para mim como uma história de amor. Apenas acontece que era uma história de amor entre um assassino profissional, um sicário, e uma prostituta, uma cafetina. Mas era uma história de amor, e nesse ambiente nasceu um policial. Eu parto do princípio que gostaria de ter escrito uma história de amor, como mais tarde vim a fazer no “Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios”. O ambiente em que essas histórias se desenrolam acaba criando uma situação que eu chamaria de drama criminal, mas não necessariamente aquela clássica história policial – com detectives, com polícia… Isso não tem nos meus livros.

Há um conjunto de escritores brasileiros que têm tentado ir além do público brasileiro, assumir-se a um nível global. Isto acontece hoje com os escritores contemporâneos como não aconteceu com grandes escritores brasileiros no passado. Basta pensar no caso do Nelson Rodrigues que, também por dificuldades ligadas aos direitos da obra, quase não é conhecido fora do Brasil, enquanto que ali é um verdadeiro mito. Autores como o Luiz Ruffato, Sérgio Sant’Anna, Bernardo Carvalho, Tatiana Salem Levy… Há aqui um conjunto de autores que fazem questão de publicar bastante até para cavalgar uma certa onda. O Marçal parece não sentir essa ansiedade.

Nunca tinha pensado nisso. Não tenho nenhuma preocupação. Porque eu escrevo para mim. Percebi muito cedo que eu não poderia viver da literatura, que teria de fazer outra actividade. Teria de ser jornalista, roteirista, ou outra ocupação. Teria de ganhar a vida de outra forma, não com livros. Isso me daria a liberdade de só escrever livros quando tivesse vontade. Porque se você vive de literatura é obrigado a publicar livros em sequência. Ninguém vive de um livro a não ser que seja um best-seller incrível, e ninguém pensa um best-seller incrível. Esses livros acontecem. E eu pensei o seguinte – vou resolver a minha vida da seguinte maneira: vou trabalhar em outra coisa, que me dá prazer também, como me deu tanto o jornalismo e me dá a escrita de roteiros, e deixo a literatura para ser aquele exercício de paixão, realmente fazer por amor. Escrevo para mim, para me agradar. Se eu não gosto acontece o que aconteceu com os dois livros que eu comecei nesses 10 anos. Comecei dois livros e parei, depois de trabalhar três ou quatro anos neles. Agora sim estou fazendo um romance de que gosto muito, porque é muito diferente de tudo o que já fiz. Mas não tenho pressa. Aprendi uma coisa com Raduan Nassar, que é um escritor que tem dois livros apenas. E é um escritor dos mais importantes do Brasil. Raduan uma vez me disse uma coisa curiosíssima… Ele publicou o último livro dele no final da década de 1970, de lá para cá nunca mais publicou nada, mas continuou. E ele participava de colóquios, festivais, congressos de escritores, e uma vez eu falei para ele: “Você não escreve mais mas está sempre nos colóquios, nos encontros…” E ele disse assim: “Eu não escrevo mais, é verdade, mas eu não deixei de ser escritor.” É o que eu penso. Acho que o facto de eu não publicar não muda nada. Eu continuo escritor, continuo com vontade de escrever os meus livros. Agora, eu não tenho pressa. Não tenho preocupação com o mercado, porque eu não vivo disso. Isso ao invés de me dar angústia me dá a liberdade de escrever só quando eu acho que eu tenho alguma coisa importante para dizer.

Falámos da Elena Ferrante, mas gostava de saber quais foram os escritores que ao longo da sua vida mais que ter por eles admiração o deixaram quase humilhado enquanto escritor? Não sei se tem essa sensação…

Sim, claro. Você sabe que está a uma distância de anos-luz daquele escritor. Você pode até tê-lo como modelo mas sabe que está muito distante. Acho que o grande escritor da minha vida foi Graciliano Ramos. É um escritor de quem enganosamente e durante muito tempo se pensou como um escritor regionalista no Brasil. Graciliano tem uma série de livros… “Vidas Secas”, “Angústia”, “Infância”, “São Bernardo”, que são os principais livros dele na minha opinião, e que eu me lembro dos tempos da escola. Eu era estudante e li um conto dele e então pensei: “Quando crescer quero ser escritor.” Foi esse o momento. Lembro até o conto, é um conto chamado “Minsk”. Aquilo me tocou de tal maneira que eu disse que queria saber fazer aquilo. Óbvio: estou olhando para um mito. Hoje ele é considerado um dos melhores escritores brasileiros. Tenho a sensação que, junto com Machado de Assis, são os dois escritores mais importantes do Brasil. Além disso o Graciliano pessoalmente teve uma postura muito rígida. Ele se envolveu com política, foi prefeito da cidade onde nasceu, no Estado de Alagoas, mas ele é um homem rígido, um homem muito duro, muito difícil. E há também outra coisa muito importante para a minha escrita, o Graciliano era um escritor muito conciso, era um escritor que cortava mais do que deixava passar, e eu gosto muito dessa ideia, de que a gente tem de dizer o máximo com o mínimo. Eu não sou um escritor derramado, não sou um escritor barroco. Adoro ler escritores barrocos, mas eu não sou. O jornalismo de certa maneira serviu para policiar a minha linguagem. Se eu tivesse de citar apenas um escritor eu diria o Graciliano Ramos, mas de um modo geral eu sou voraz. Vou lendo e vou descobrindo. A galeria de escritores que me são importantes passaríamos a tarde falando deles se eu tivesse de lhos indicar. Não cessa de descobrir, estou sempre descobrindo. E embora eu seja prosador, eu leio mais frequentemente poesia. É aminha leitura preferida, porque eu acho que um livro de poesia nunca se termina de ler. Na prosa, existe muito prazer em reler um livro de prosa de que você gosta, mas você vai descobrir coisas que já tinha visto, vai estar muito mais ligado a você do que ao livro. O livro é o mesmo, você é que mudou. Se leu um livro quando tinha 15 anos, se hoje tem 30, vai reler esse livro, certamente vai ser uma experiência diferente. A poesia não. A poesia muda. Ela me parece uma coisa tão transtornada que a torna muito diferente da prosa. Me parece que você nunca termina de ler um poema.

E quais são os seus poetas?

Eu vivo tentando ler os contemporâneos todos, mas o altar em casa, os santos que o ocupam são o Carlos Drummond de Andrade, o Manuel Bandeira, o Murilo Mendes e o Jorge de Lima. São quatro poetas a quem sempre volto e sempre procurando algo novo, sempre um sobressalto novo. Há sempre um sobressalto novo na poesia, e a prosa não tem isso. Por ser narrativa, em geral, o sobressalto é menor. Na poesia o sobressalto é constante. Você volta a um poema do Drummond, olha para aquilo e diz: Que coisa fantástica. Como eu não escrevo poesia, isso elimina a angústia de sentir que nunca vou chegar aquele nível. Não escrevo poesia, faço outra coisa. É uma espécie de credo, eu quero ler poesia porque gosto, não é que me sirva. Que bom que contamina a minha prosa, torna ela um pouco poética, dá a ela um certo lirismo, dá a ela uma concisão… São coisas muito importantes mas não são coisas pensadas., acontecem espontaneamente.

Neste momento o Brasil está a viver uma fase nova na sua história. Por muito que tenha vivido grandes convulsões, que tenha passado pela ditadura, neste momento as coisas apesar de tudo são bastante diferentes, e estranhas. A forma como o escritor contempla a vida obriga-o ou dá-lhe alguma capacidade para depois pensar estes processo, ter uma visão crítica sobre eles?

Houve uma transformação muito grande no Brasil e, na verdade, o processo ainda está ocorrendo. Estamos em pleno curso, no momento em que estamos a conversar. As coisas não estão definidas e não sabemos o que vai acontecer. O que eu penso é que mesmo que você não queira, aquilo que é vivido aparece na sua literatura. Mas acho que a literatura não deve estar ao serviço de nada. A literatura não deve se obrigar a comentar de imediato uma realidade ao redor. Acho que não é essa a função da literatura. Ela tem uma função muito mais nobre. O livro em que estou trabalhando se passa em 1760, no Brasil colonial ainda. Tem muito a ver com Portugal, tem um trecho que se passa aqui em Lisboa, mas sem pesquisa histórica. Não me interessa a pesquisa histórica. Me interessa a experiência da literatura tratando de um facto histórico. Não me interessa o rigor, eu não fiz pesquisa. Acho que se você quer saber história tem de ir a um compêndio de história, e não procurar na ficção. Acho que essa é a grande magia da literatura: ela é maior que a realidade. Porque senão ela nunca vai conseguir ultrapassar a realidade. Se você escreve um livro muito engajado num certo momento histórico esse livro certamente vai terminar datado. Daqui a 10 anos esse livro não terá razão nenhuma para existir, porque aquele facto já se completou.

Falou numa função mais nobre para a literatura do que simplesmente acompanhar a realidade, qual é essa função?

A grande literatura está interessada no Homem e não nos factos. Ela tem de se ocupar do humano, e o humano é humano sempre. Uma criança será sempre uma criança. Um homem corrompido será sempre um homem corrompido na sua humanidade. Não interessam as circunstâncias sociais. Essas são mutáveis.  Costumo dizer que mais do que a moral me interessa a ética humana. A ética não muda, a moral muda. A moral está ao sabor dos tempos. A ética é uma só. Estar ao lado de alguém participando dessa grande aventura humana vai ser sempre igual. E eu acho que a grande literatura dá sempre conta disso. Ou então nós vamos pensar que o “Moby Dick” fala mesmo de uma baleia. Nós temos que pensar que não fala de uma baleia. Quando você chega na grande literatura, ela extrapola esse imediatismo da realidade e fala de um outro momento do homem. Um momento que vai servir para quem leu esse livro na década passada e quem o lê hoje. Com isso o livro ganha uma perenidade, como experiência artística, mas sobretudo por estar focalizando um fenómeno humano. Afinal, nós somos todos humanos em algum grau.

O Marçal foi um escritor que a Globo contratou porque se apercebeu que havia um interesse crescente das audiências por séries de ficção policiais. Como tem sido esta experiência de uma década, deixando a solidão da vida de escritor, pela do roteirista, trabalhando agora em equipa e ajudando a orientar produções que se dirigem a um público enormíssimo?

São duas coisas muito distintas. Como escritor eu escrevo para mim, não tenho nenhuma preocupação sequer se o livro vai ser publicado. Eu não estou nas redes sociais, e acho que hoje é imprescindível para um escritor que está começando estar presente. Senão ele não conseguirá sequer publicar os livros. Felizmente, e por uma questão apenas circunstancial, eu já estava na estrada quando isso surgiu. Então eu me dou ao luxo de não precisar desses instrumentos. Porém, quando você chega para trabalhar na televisão – por que eu vim do cinema, os meus primeiros roteiros foram no cinema… Que também tem um público muito restrito. O cinema brasileiro é uma coisa muito pequena, é estrangeiro dentro do próprio Brasil Tem problemas de salas por conta dos blockbusters. Você faz um filme, leva cinco anos fazendo um filme e quando chega a hora de exibir você não tem salas. É angustiante. Só que a televisão é o contrário de tudo isso. A televisão fala com milhões. Nós somos vistos por 30 milhões de pessoas – é um público absurdo. O que é que acontece nesse momento, me interessa me adequar ao meio, me interessa atender às necessidades e dinâmicas da televisão. Mas não me toca do ponto de vista da vaidade de dizer: Olha, eu estou falando com milhões. Me interessa como meio de vida, me interessa fazê-lo bem para continuar podendo fazer e vivendo disso. Na televisão estão hoje os grandes roteiristas. A televisão já me tinha tentado contratar duas vezes, e eu não aceitei porque não me pareceram experiências de que eu iria gostar. Uma delas foi um convite para fazer telenovela. Eu não assisto a telenovela. Não sei fazer. Só aceitei o convite da televisão quando me pareceu que era algo que eu saberia fazer. Que eram dramas policiais e séries. Disso tudo, onde é que o Marçal fica? Eu sou aquele cara que, hoje, aos 58 anos, sempre me pergunto de cada vez que vou fazer uma coisa o que diria aquele menino de 14 anos que eu fui quando me interessei pela literatura pela primeira vez. Sempre que vou fazer algo me pergunto: Será que ele iria se decepcionar? Então tento não decepcionar aquele menino de 14 anos que eu fui e que me levou para a literatura. Tento ser fiel ao sonho que me levou para a literatura. Por isso eu digo, no Juízo Final, eu quero estar na fila dos escritores. Eu sou um escritor.