Adonis. “Todo o mundo está envolvido na actual tragédia árabe”

Depois da discreta passagem por Lisboa, o poeta sírio foi um dos grandes nomes da Feira do Livro de Pula, na Croácia, onde fomos entrevistá-lo

Não sendo a maior cidade da Croácia, país com metade da população de Portugal, Pula é a grande cidade da Ístria, a maior península do Adriático. Os romanos deixaram-lhe algumas ruínas como rasto de uma nobreza clássica, e a cidade não descurou o traço, parecendo esculpida a gesso, firmes contornos que a sua posição costeira atenua. Bem preservada, a Arena de Pula é o maior coliseu a resistir ao tempo a seguir àquele que está em Roma, e tem praias de águas translúcidas, mas não teve ainda o tempo de converter as pedras em areal. Nos meses frios tem a sorumbática pacatez de um destino de veraneio que dorme o resto do ano, deixando um olho aberto.
Tem uma feira do livro numa espécie de palácio, que começou a organizar-se depois das Guerras dos Balcãs. Tornou-se um dos grandes eventos literários do país, e não tem a menor pretensão de ser um evento para atrair as massas. Não se confunde com um festival. Chama autores de todo o país e bastantes de fora. Encontrámos lá o poeta sírio Adonis, que além das sessões em que participou, todas a transbordar, fez questão de estar na primeira fila das outras, mesmo que os idiomas lhe fossem impenetráveis. Lá estava, desperto, como se os olhos muito abertos pudessem inventar nos lábios de quem ia falando uma razão partilhada. Um raríssimo exemplo de generosidade e respeito, especialmente desarmante face ao hábito de ver os consagrados do bairro a ir às suas sessões e escapar logo a seguir, sem interesse nenhum pelo que tenham a dizer os outros autores. Assim, ali ficou o exemplo de um homem que, aos 86 anos, se surge insistentemente nas listas de candidatos ao Nobel, e é reconhecido como o mais influente poeta árabe do século XX e um dos grandes intelectuais do Médio Oriente, continua a ter tempo para ouvir os outros, mesmo se não pode entender muito do que dizem. 
Depois de ter passado discretamente por cá em Novembro, convidado no âmbito do Lisbon and Estoril Film Festival para lançar a sua primeira antologia poética entre nós, “O Arco-Íris do Instante” (Dom Quixote), Adonis mereceu um destaque bem maior na sua passagem pela Croácia. Além do interesse do público na feira do livro, foi maior o interesse dos media, e houve entrevistas nos jornais como nas televisões. Depois da organização do LEFF não ter acedido ao nosso pedido de entrevista, bastou atravessar o átrio do hotel em Pula, e pedir uns minutos. Assim, entrevistámo-lo num exercício às voltas pela Torre de Babel, com as perguntas formuladas em inglês, que a tradutora croata fazia a Adonis em árabe, e depois ele retrucava em francês. 

Para um poeta oriundo do Médio Oriente, quando fala para o Ocidente, qual é a sensação de transmitir as nuances de uma cultura à outra?
Antes de mais eu não sou um mensageiro, e não sou um profeta, não tento estabelecer uma ponte entre o Ocidente e o Oriente. Não penso que possa fazer qualquer coisa desse tipo. Tenho uma visão pessoal e falo dessa visão. Pelo que não tenho na prática nenhuma dificuldade, porque limito-me a transmitir a minha visão do mundo.

 
Num momento em que tudo se perde na interpretação literal das coisas, parece-lhe que a poesia pode ser a resposta para evitar a simplificação e o fundamentalismo, para dar cores a um mundo que se espartilha entre o preto e o branco?
Creio que se há poesia – e seguramente acreditamos na poesia –, poesia é mudar todos os dias o mundo, no sentido em que deve, pode criar todos os dias novas relações entre as palavras e as coisas, entre as coisas e as ideias. Dessa forma a poesia pode dar todos os dias um novo sentido ao mundo. Mas se falarmos da poesia genericamente, creio que não interessa, pois não há poesia como absoluto. Há poetas. É preciso distinguir quando um poeta fala aquilo que é a sua poesia. Podemos falar sobre o amor, mas o amor dos livros não passa de uma abstracção. Por isso penso que devemos mudar as perguntas para conseguirmos respostas novas. Não podemos falar da poesia no mundo. A poesia nos EUA é completamente diferente da poesia na China, e esta é completamente diferente da poesia em Portugal. Não há poesia, há poetas. Não há amor, há uma relação directa entre dois seres, e o resto são coisas livrescas. Não podemos nunca aprender o amor num romance. Isso não nos dá nada. Amor é criar uma relação real e próxima entre duas pessoas. E é a partir dessa relação que podes julgar a ligação, porque há relações de todos os tipos. 

Nas diferentes fases e momentos da sua vida, no tempo como na geografia, e nos sítios onde viveu – fosse na Síria, Líbano ou França –, isso alterou a sua forma de encarar a poesia?
Penso que se nós mudamos o lugar de uma rosa o perfume dessa rosa não muda. Fica igual. Terá talvez uma luz diferente, um meio diferente, um ar diferente, mas o perfume em si mesmo não muda. Talvez possa ser influenciado de uma forma ou de outra, mas o poeta não muda a sua poesia se mudar de país, ou se mudar o local onde vive. Os seus horizontes poderão alargar-se, a sua forma de exprimir-se poderá ser enriquecida, mas no fundo a sua verdade será a mesma.

O seu trabalho poético e crítico permitem encará-lo como um elo de ligação entre os poetas modernistas europeus dos finais do século XIX em diante e poetas árabes que escreveram há vários séculos. O que há de intemporal na poesia?
O poeta não pode criar os temas, ele não pode criar a morte, não pode criar o amor, não pode criar a dor… Essas coisas existem desde o princípio da humanidade. O que faz o poeta é mudar a maneira de ver essas coisas, e a maneira de as exprimir. Há poemas de amor de há cinco mil anos. Assim o que o poeta faz é apresentar uma nova forma de expressar o amor, expressá-lo actualmente. A questão que se deve pôr é: Será que há realmente novas formas de exprimir o amor? Esse é o problema a que devemos dar resposta. Há novas formas de exprimir, sim, mas será que essas novas formas mudaram a matéria ela própria, mudaram a substância. Não há uma ruptura entre o passado e o presente, há uma continuidade, e mesmo a modernidade na poesia árabe vem do século II, muito antes de Baudelaire e de Rimbaud. Tínhamos críticos que falavam da modernidade no século II. As questões são sempre as mesmas mas a forma de as exprimir mudou. A contradição, a guerra entre os modernos e os clássicos, está ligada à estrutura, à forma de se exprimir. Há muitos poetas ditos modernos que são bastante tradicionais face ao seu tempo. Escrever um poema em prosa não é necessariamente ser moderno. É preciso insistir na singularidade dos poetas, e estudar os textos antes de se pôr a teorizar. Quando fazemos isso encontramos muitos poetas ditos modernos a falar como se falava antes. Ovídio, por exemplo, é um grande poeta moderno. Al-Ma’arri, na nossa tradição e entre os árabes, é um grande poeta moderno. Abu Nuwas é um grande poeta moderno. Os modelos ultrapassam as épocas. A modernidade é o ponto de vista, é como ver as coisas num tempo novo. Quando vejo, por exemplo, a arquitectura antiga e vejo a arquitectura moderna, se as compararmos, os edifícios antigos, por exemplo o que nos chegou de Roma, são edifícios mais modernos do que a arquitectura dita moderna. A modernidade não é uma forma pré-estabelecida, é uma sensibilidade aberta ao futuro. Os povos que se julgam modernos são muitas vezes os mais tradicionais. Os EUA são tradicionais. Talvez os povos no período do Império Romano fossem mais modernos.

No amor e na poesia que escreveu sobre o tema foi mais inspirado pelas suas experiências ou pelo diálogo que estabeleceu com outros poetas?
Nunca. Um poeta se escreve sobre o amor deve partir da sua experiência. O coração humano é ainda desconhecido. O coração de uma mulher é um continente, é preciso uma vida inteira para descobri-lo. Por isso não podemos partir de uma experiência qualquer para construir sobre ela. Um poeta do amor deve escrever sobre a sua experiência, sobre ele mesmo e a forma como viu o coração da sua amada. E o que é esse coração, o que é que ele esconde, o que é que revela. É por isso que digo e repito que o amor dos livros é conversa fiada, não tem sentido. Em todos os romances de amor lemos a força do escritor, mas sentir o seu amor é algo muito diferente. O amor é sempre uma revelação, todos os dias tem de ser descoberto, é sempre um começo. 

Como é pensar na sua infância e tê-la ligada a um país do qual hoje vem sabendo todos os dias notícias da sua completa destruição?
É trágico. Se eu pudesse participar em qualquer coisa, se pudesse aliviar a situação de algum modo não hesitaria, mas não posso fazer nada. E penso que isto resulta de crises que não são apenas árabes. Não é apenas uma crise de poder, é uma crise humana. O Ocidente faz parte dessa crise, e não podemos em absoluto compreender tudo o que se passa na Síria, no Iraque, no Iémen ou na Líbia sem pensar no papel que o Ocidente tem tido neles. São quatro países destruídos. Não podemos compreendê-lo a fazer abstracções a partir do Ocidente. O Ocidente, a política ocidental – nela compreendida a política norte-americana –, são totalmente responsáveis por isto. A tragédia árabe actual é uma tragédia em que todo o mundo está envolvido. É preciso ver o que é que a política norte-americana quer. 

Depois da Primavera Árabe, que ficou tão aquém do sonho de emancipação daquelas populações, tem alguma esperança numa outra transformação, evolução ou revolução que possa dar um futuro de paz e prosperidade a estes países?
Acredito no Homem. O Homem é o centro do mundo. E creio que o que se passa no mundo actual é um mal, uma doença. Mas o tempo para o Homem está a chegar, temos de esperar. A esperança está no próprio Homem. Mas que forma de revolução ou de evolução, isso não sei dizer. Tenho, no entanto, a certeza de que o Homem vai mudar tudo. Para um futuro mais humano e mais livre.

 

Tendo descoberto com o seu pai a poesia a par com o estudo do Corão, há alguma mensagem neste livro sagrado que preservou e que para si se libertou da ênfase religiosa para se ligar a uma visão mais poética do mundo?
Um texto, mesmo literário, é a leitura que dele se faz. Se os dois lermos um poema, dele nascem pelo menos duas interpretações. Assim não existe um texto absoluto. Ler um texto é como praticar o conteúdo desse texto. No que se refere à religião, trata-se também de ler textos, e as religiões monoteístas têm o mesmo problema. Se há uma diferença entre uma religião e outra é uma diferença de grau, e não de natureza. Como se lê? É esse o problema. Faz-se uma leitura do texto ligada organicamente ao poder e ao dinheiro, e é isso que degrada tudo. As religiões monoteístas tornaram-se uma agressão contra a possibilidade de se ser livre. Assim, o problema está na forma de ler a Bíblia, o Corão, tudo. É preciso reler, reinterpretar os livros sagrados. Os que acreditam em Deus devem reler e reinterpretar esses textos com uma perspectiva mais humana, mais ampla e mais livre.  

Para lá da esperança que tem no Homem, gostaria de saber que papel atribui ao Mal nas sociedades actuais?
Vivemos hoje, no mundo inteiro, um período histórico em que é o humano o conflito que importa. Há uma doença universal e infelizmente é essa doença que governa todo o mundo. Que o dirige para a guerra e para a humilhação do ser humano. Mas, mais uma vez, o ser humano vai ultrapassar este período. Não podemos deixar que se extermine o ser humano enquanto força do lado da esperança.

Tem alguns versos que se tornaram ao longo dos anos como talismãs pessoais e que lhe serviram de guias fosse como poeta fosse como homem?
Leio muitos poetas em cuja poesia encontramos a luz que nos abre novas perspectivas. Posso dar dois exemplos que guardo na memória. O primeiro de Heráclito, aquele verso em que nos diz que não podemos atravessar o mesmo rio duas vezes. Creio que o mundo é assim. Não podemos viver sempre no mesmo mundo. Ele está a mudar. O segundo exemplo é um escritor árabe que diz que o próximo é diferente, é outro que não tu. À luz dessas palavras, repito, há esperança.