Marcelo Rebelo de Sousa fez um aviso claro a António Costa: uma prova escrita de que Mário Centeno abriu a António Domingues a possibilidade de não apresentar declarações de rendimentos na CGD fará quebrar o apoio presidencial de que o ministro tem gozado até aqui nesta polémica.
«Até encontrar alguma coisa assinada pelo ministro das Finanças que diga uma coisa diferente, para mim, o ministro das Finanças tinha a mesma opinião do primeiro-ministro», disse esta semana o Presidente da República depois de lembrar que António Costa nunca lhe deu motivos para acreditar que o Governo tinha aberto a possibilidade de a administração da CGD ficar isenta da obrigação de apresentar declarações de rendimentos.
Marcelo escolheu ‘cuidadosamente’ as palavras
À primeira vista, o Presidente parece estar a alinhar no apoio que Costa dá ao seu ministro, mas o SOL sabe que a intenção de Marcelo foi deixar um aviso ao primeiro-ministro. Uma fonte de Belém explica que «as palavras foram cuidadosamente escolhidas». A ideia era não crucificar alguém que tem de ser considerado inocente até prova em contrário, mas deixar claro que o apoio institucional será quebrado se for provada a existência do compromisso com Domingues que Costa tem desmentido.
Os últimos desenvolvimentos fazem Marcelo admitir que essas provas podem existir e podem estar prestes a ser reveladas.
«Acho que vai ser muito difícil. Se os documentos que os jornais transmitem e outros que eu sei que existem vierem a ser do conhecimento do público, vai-se perceber que há uma troca abundante de mensagens, de textos, de papéis, sobre a evolução das conversas, das negociações, do que é preciso fazer, de diligências, de como é que se muda a lei, se será suficiente, se não será, e o Tribunal Constitucional e o primeiro-ministro, etc», disse esta semana Lobo Xavier, amigo de António Domingues, na SIC Notícias.
O CDS também está a apertar o cerco a Mário Centeno na Comissão de Inquérito à CGD. Ontem, os centristas entregaram um requerimento no qual questionam diretamente o ministro das Finanças sobre a existência de troca de correspondência eletrónica (e-mails e sms) com Domingues «a partir do dia 18 de março».
CDS faz pesca à linha
A data não foi escolhida ao acaso. No último requerimento, o CDS tinha perguntado apenas por correspondência a partir do dia 20 de março, tendo Centeno respondido à Comissão que esses elementos «inexistiam». Agora, os centristas tiveram conhecimento de que a primeira reunião entre Centeno e Domingues foi no dia 18 de março e resolveram alterar a pergunta. É a pesca à linha, num assunto que um coordenador da Comissão de Inquérito confessa ao SOL estar «preso em jogos de palavras e semântica».
O acordo que não existe, mas que Centeno já assumiu
De resto, neste jogo de sombras em torno de saber se houve ou não um compromisso assumido entre o Governo e a então administração da CGD, o gabinete de Mário Centeno já chegou a admitir que a alteração da lei que permitia aos gestores do banco público escapar à entrega de declarações de rendimentos «não foi um lapso».
A afirmação consta de um comunicado emitido em outubro, logo após Marques Mendes levantar na SIC a questão de a lei isentar os gestores da Caixa das obrigações a que respondem outros gestores públicos. «A ideia é a CGD ser tratada como qualquer outro banco. Essa foi a razão para que fosse retirada do Estatuto do Gestor Público. Está sujeita a um conjunto de regras mais profundo, como estão todos os bancos. Não faz sentido estar sujeita às duas coisas. Não foi lapso. O escrutínio já é feito», afirmava na altura fonte oficial do gabinete de Mário Centeno a 25 de outubro.
O próprio ministro afirmou à TSF a 4 de janeiro que aceitou as condições de Domingues. «O dr. António Domingues pôs várias condições. Essas condições foram todas conversadas entre o acionista e o dr. António Domingues. Foi muito claro, para todos, quais eram as condições com que o dr. António Domingues entrava. A legislação que foi passada, a esse propósito, teve como objetivo principal este que eu acabei de dizer — permitir alinhar os incentivos e as remunerações e, no fundo, o estatuto do gestor da Caixa com os do restante setor bancário», assumiu Centeno.
O ministro não explicita que condições são essas, mas Domingues deixou-as claras numa carta de 25 de novembro. «Foi, desde logo com grande surpresa que vimos serem suscitadas dúvidas sobre as implicações da exclusão dos membros do conselho de administração da CGD do Estatuto do Gestor Público (EGP), concretamente sobre a possível necessidade de envio de tais declarações ao Tribunal Constitucional», escreveu o gestor, revelando que essa «foi uma das condições acordadas para aceitar o desafio de liderar a gestão da CGD».
É este tipo de incongruências que PSD e CDS querem explorar na nova audição a Centeno requerida pelos sociais-democratas. A ida do ministro à Comissão de Inquérito ainda não tem data – depende da disponibilidade de agenda de Mário Centeno –, mas a direita quer manter a pressão alta sobre o assunto.
Comissão de Inquérito em contagem decrescente
Além de política, a urgência é prática: as comissões de inquérito têm prazos e a desta esgota-se dentro de 40 dias, sendo que PS, BE e PCP não mostram abertura para prorrogar esse limite.
Uma coisa é certa: a oposição não vai deixar cair uma polémica que está a desgastar o Governo e que fez Costa ter de vir já por duas vezes esta semana segurar publicamente o seu ministro. «Não vamos largar este tema», avisa uma fonte do PSD.
No CDS, depois do requerimento para perceber se há ou não mais troca de correspondência entre Centeno e Domingues, pondera-se o passo a seguir. O SOL sabe que os centristas têm informações que lhes permitem acreditar que Mário Centeno não está a fornecer todos os dados e, sendo uma comissão de inquérito equiparável a um tribunal, ponderam a melhor fórmula para pedir o acesso a essa documentação.
«O assunto exige uma séria ponderação jurídica, técnica e política», como assume ao SOL uma fonte centrista, mas o CDS está a estudar a hipótese de a Comissão de Inquérito pedir às operadoras de telecomunicações dados sobre trocas de mensagens entre Mário Centeno e António Domingues. «Mas cada coisa a seu tempo», diz a mesma fonte, que espera agora pela resposta do ministro.
Esquerda ajuda Costa a segurar ministro
À esquerda, a ordem é para tentar limitar os danos. BE e PCP desvalorizam a questão, lembrando que o importante é recapitalizar a Caixa e o PS tem insistido na ideia de que nada prova preto no branco que Centeno assumiu um acordo com Domingues.
António Costa não quer abrir mão do ministro que vai conseguir o menor défice da História do Portugal democrático e que encerrou com sucesso as negociações para a recapitalização do banco público. Costa valoriza a boa imagem de que Centeno goza em Bruxelas e tem feito tudo para o segurar.
«Por isso, confiança no ministro das Finanças, admiração de todo o país pelo trabalho que tem vindo a ser feito, não vou perder tempo a dedicar-me àquilo que são tricas, e sobretudo vamos fazer aquilo que temos que fazer que é termos uma CGD forte e bem administrada», afirmou ontem o primeiro-ministro, depois de dizer «estar fora de questão» a demissão de Centeno.
Resta saber durante quanto tempo vai resistir à pressão se a Comissão de Inquérito trouxer a lume provas que façam o Presidente da República considerar comprovado o acordo que o Governo tem dito não ter existido e que António Domingues já assumiu.
Mário Centeno pode ser acusado de crime
Entretanto, Mário Centeno pode mesmo vir a ter de responder criminalmente pelas declarações feitas em resposta ao CDS sobre a inexistência de correspondência que entretanto foi publicamente revelada pelo Eco e pelo Público e já está na posse da Comissão de Inquérito à CGD.
Mentir numa comissão de inquérito é crime de perjúrio e o CDS está a ponderar a hipótese de apresentar uma queixa junto do Ministério Público.