Esquerda. Costa envia recados para baixar a temperatura social

Em vésperas de apresentar um Programa de Estabilidade com um défice de 1% para 2018 e com os sindicatos a voltarem às ruas e às greves, António Costa foi ao parlamento dizer coisas de esquerda

António Costa foi ao parlamento falar para a esquerda. Depois da tensão gerada pela venda do Novo Banco, o primeiro-ministro entendeu a importância de dizer qualquer coisa de esquerda, a uma semana de a maioria parlamentar ser confrontada com um Programa de Estabilidade que aponta para um défice de 1% no próximo ano.

Costa sabe que BE e PCP não convivem bem com esta obsessão pelo défice e preferiam que o governo aproveitasse o bom saldo primário para aumentar o investimento público, em vez de superar as metas orçamentais estabelecidas por Bruxelas.

Foi por isso que o primeiro- -ministro resolveu abrir o debate quinzenal com uma citação de “Esteiros”, de Soeiro Pereira Gomes, sobre “homens que nunca foram meninos”. A alusão literária servia para trazer um tema caro a BE e PCP: o do fim da penalização para os trabalhadores que se querem aposentar aos 60 anos depois de terem começado a fazer descontos para a Segurança Social aos 14 anos – e, muitas vezes, trabalhando desde os 12.

“É preciso que fique clara a gravidade da penalização que existe desde 2012. Uma pessoa que tenha começado a trabalhar aos 14 anos, com carreira contributiva de 46 anos e que se aposente aos 60 sofre agora uma penalização de 29% na sua pensão”, assumiu Costa, anunciando a intenção de aliviar as penalizações que estes trabalhadores sofrem quando se reformam antes dos 65 anos.

“Esta é a visão que temos de solidariedade entre gerações, em que ninguém com mais de 65 anos vive abaixo do limiar da pobreza, que os que começaram a trabalhar aos 12 ou aos 14 anos se podem reformar aos 60 sem penalização, que todos os que agora estão no mercado de trabalho se podem qualificar e obter formação ao longo da vida, e que as crianças que hoje estão em idade escolar podem ser meninos e adquirem o conhecimento que lhes permita a plena realização como homens e mulheres”, começou por afirmar António Costa, para mais à frente deixar claro que existe um “mas”.

Pressão para OE2018 Catarina Martins queria perceber se este anúncio de Costa correspondia ao fim das penalizações já este ano para as carreiras contributivas mais longas, mas obteve do primeiro-ministro uma resposta prudente, com alertas para a necessidade de garantir a sustentabilidade do sistema de Segurança Social.

“Cumpriremos sempre, porventura tendo de fasear”, reconheceu Costa, numa resposta que serve também o anseio da esquerda de aumentar os escalões e reduzir as taxas de IRS para quem menos ganha já em 2018.

Com as negociações para o Orçamento do Estado para 2018 a começarem a dar os primeiros passos, o primeiro-ministro foi frisando que as suas propostas – nomeadamente no alívio da penalização das carreiras mais longas – estão ainda em aberto.

“Ao longo destes 500 dias, sempre pude encontrar em todos os partidos que protagonizaram esta solução de governo um espírito construtivo”, frisou Costa, para dar a BE e PCP a certeza de que quer continuar a negociar, mesmo que não o tenha feito no dossiê do Novo Banco.

O recado para os parceiros da esquerda é claro. Mas a mensagem do primeiro-ministro – que disse à Renascença na semana passada que gostaria de repetir os acordos à esquerda mesmo com maioria absoluta – vai também para um eleitorado que parece satisfeito com aquilo a que a direita chama geringonça e que o líder do PS não quer alienar.

Costa lembrou mesmo os dados recentemente revelados pelo Eurobarómetro, segundo os quais, “de 2015 para 2016, a confiança dos portugueses no governo e nesta Assembleia da República duplicou”, apontando esses resultados como um sinal político que tem de ser lido com inteligência.

Com um discurso muito centrado na defesa do Estado social e reconhecendo os problemas apontados por Jerónimo de Sousa na saúde e na educação, o primeiro-ministro quis lembrar aos parceiros da esquerda que, apesar de apostado em cumprir as regras da Europa, vai continuar o caminho da reposição de direitos e rendimentos.

“Estes dois objetivos não podem ser antagónicos”, vincou o primeiro-ministro, que acredita que “só com contas públicas estáveis podemos ter um Estado social mais forte”.

Mais: António Costa insiste na ideia de que a solução de governo à esquerda é para levar até ao fim da legislatura. “2017 é só o primeiro ano do resto das nossas vidas”, disse num piscar de olho a BE, PCP e PEV, a quem quis lembrar que “é isso que os portugueses esperam de nós”.

Desilusão à esquerda BE e PCP não parecem, contudo, muito convencidos. Estão descontentes com a forma como o governo não tentou sequer bater-se pela nacionalização do Novo Banco em Bruxelas e estão insatisfeitos com a degradação dos serviços públicos e com a proposta de despenalização das carreiras contributivas mais longas apresentada pelo governo.

Jerónimo de Sousa falou mesmo num “sentimento de desilusão profunda” perante a proposta sobre as pensões para quem tem mais de 40 anos de descontos e 60 ou mais anos.

E dos sindicatos também chegam sinais de descontentamento social.

Os médicos anunciaram esta semana uma greve, os professores vão sair à rua para a semana e a função pública também tem um pré-aviso de greve para maio. É esta temperatura que Costa quer baixar, mostrando que, dentro das margens que a Europa permitir, vai esforçar- -se por avançar nos temas mais caros à esquerda.