Um problema para o professor Marcelo

Há anos que se temia – em Angola, em Portugal e não só – que o momento da sucessão de José Eduardo dos Santos pudesse criar uma situação de grave instabilidade no país e, consequentemente, na região e na Comunidade dos Países de Língua Oficial Portuguesa (CPLP).

Ora, ao contrário do que profetizaram os arautos da desgraça e do que mesmo os mais otimistas não deixaram de recear, o processo de transição de poder em Angola decorreu até agora de forma pacífica e tranquila. Mesmo com os naturais e inevitáveis protestos da Oposição, que continua na oposição, mas que manifestamente cresceu – em votos e em formação e preparação para a intervenção política democrática.

Desconsiderando os preconceitos ideológicos ou emotivos, e mesmo relevando justas críticas internas e externas ao regime de José Eduardo dos Santos e do MPLA, a verdade é que o processo de transição para a democracia de um país africano que viveu décadas de guerra, primeiro pela independência e depois civil, está a revelar-se quase exemplar. Sendo que os partidos tradicionais e emergentes, que na sua génese eram praticamente todos braços políticos de frentes beligerantes, têm hoje sedimentada a importância da paz e do combate sem recurso às armas.

José Eduardo Santos, com todos os defeitos que se lhe possam apontar, teve um papel absolutamente referencial na construção da paz, não só em Angola, mas em toda a região da África Austral, e vital no processo de transição para a democracia, apesar da longevidade da sua presidência – eventualmente até justificada nos últimos anos pela impossibilidade de garantir tal estabilidade em momento anterior.

Além disso, José Eduardo dos Santos, por mais oposição que tenha tido em Portugal, sempre foi um defensor de uma relação construtiva e de cooperação com o antigo Estado colonizador.

Angola tem um longo caminho a percorrer. Na moralização do regime e do mercado, na sustentabilidade económica para além da indústria do petróleo e dos diamantes, no investimento em infraestruturas básicas, no desenvolvimento do aparelho produtivo, na diminuição das assimetrias sociais, na criação de novas centralidades e repovoamento do interior do país que aliviem a pressão e concentração na capital, na implementação de políticas demográficas e de educação e formação de um povo que se prevê mais do que duplique em menos de meio século.

Angola tem tudo para crescer.

Ora, é neste preciso momento, em que Portugal, enquanto país historicamente indissociável de Angola, devia mais apoiar e ajudar no processo da sedimentação da paz e da democracia e no desenvolvimento e crescimento de Angola, através de uma cooperação ativa e mutuamente vantajosa, que as relações entre os dois países atingem um ponto crítico e ameaçador.

E na próxima terça-feira, quando João Lourenço tomar posse e Marcelo Rebelo de Sousa estiver a seu lado, haverá um momento crucial para se decidir o rumo das relações futuras entre os dois países… sem José Eduardo dos Santos.

O Ministério Público português meteu o pé na argola. Ou em Angola. Uma ingerência que, à luz dos convénios da CPLP e bilaterais, Luanda não aceitará.

O procedimento criminal em Portugal contra o vice-Presidente cessante, Manuel Vicente, num processo de alegada corrupção de um magistrado português, violará os tratados internacionais a que o Estado português está vinculado e, sobretudo, despreza a Justiça de um outro Estado: Angola.

Até aqui, as autoridades portuguesas têm-se escudado nos princípios basilares de qualquer Estado de Direito democrático, regido pela separação de poderes, traduzida na máxima ‘À Justiça o que é da Justiça e à Política o que é da Política’.

Marcelo Rebelo de Sousa, Presidente da República, é professor catedrático de Direito Constitucional.

E sabe bem que, na chamada ‘Operação Fizz’, não é bem assim. Tanto assim que ainda esta semana (em que o processo foi finalmente distribuído para marcação do julgamento) recebeu em Belém o ministro da Justiça de Angola.

O Presidente da República, enquanto mais alto magistrado da Nação, não pode interferir na administração da Justiça. Mas pode e tem de garantir, porque é seu dever constitucional, que o Estado português não viole os tratados internacionais a que está vinculado, nem pretenda substituir-se à Constituição, às leis e à administração da Justiça de outro Estado, inevitavelmente suscitando conflito diplomático que, em última análise, pode culminar num (dramático) corte de relações.

Por isso, se estão causa tratados e acordos da CPLP e de cooperação judiciária bilateral entre Portugal e Angola, Marcelo tem um problema enorme para resolver.

Porque, neste caso, não se trata de uma questão que o Ministério Público português tenha poder bastante para decidir. Nem tão pouco a procuradora-geral da República de Portugal pode ignorar, e deixar sem resposta, as questões suscitadas pelo seu homólogo de Angola.

É grave. E tanto mais grave e mais paradoxal quanto, neste caso, em que a Justiça portuguesa se arroga menosprezar a Justiça angolana, o que está em causa é um crime de corrupção que alegadamente envolve um procurador da República… portuguesa.