Enfermeiros e médicos anunciam novas greves. Estava à espera desta agitação pela rentrée?
Em todos os ciclos políticos existem momentos em que a tensão socioprofissional se agudiza, seja quando há um período pré-orçamental ou até um ciclo eleitoral.
É mais uma questão de timing do que rutura com o Ministério?
A questão do tempo orçamental será a mais determinante. Até temos tido uma situação relativamente tranquila, com menos greves do que na legislatura anterior ou do que em períodos em que o país não estava sob intervenção. A situação atual é um sinal daquilo que é a tensão entre grupos profissionais – que legitimamente entendem que as condições de trabalho devem ser melhoradas – e o Governo, que tem a obrigação de olhar para o conjunto. A obrigação de um Governo é governar em nome do interesse geral.
Começando pelos enfermeiros. O Governo propõe um subsídio mensal transitório de 150 euros para os especialistas. É o valor que considera justo ou foi o valor que as Finanças permitiram?
Vamos por partes, para sermos justos. O Governo entende que os profissionais são o motor principal da dinâmica do Serviço Nacional de Saúde e da sua qualidade. Não há nenhuma contenda, nenhum conflito, na justa medida em que, se há Governo que tem dado sinais de respeitar esses profissionais de saúde, tem sido este. Iniciámos um processo de devolver a dignidade profissional ao setor, nomeadamente através da reposição dos rendimentos. O descongelamento das carreiras é outro passo importante.
Está a dizer que enfermeiros e médicos estão a ser injustos?
Não, o que digo é que a devolução da dignidade começou com o reconhecimento de que o esforço pedido aos trabalhadores podia e devia ser corrigido. Resolvemos a questão do Período Normal de Trabalho (PNT) e com um esforço muito grande, nomeadamente na saúde, repondo o horário de trabalho nas 35 horas.
Algo que não abrange ainda todos os enfermeiros.
Abrange dois terços, mas já vamos ao futuro. Não se prepara o futuro passando uma esponja sobre o que está feito. Foi este Governo que contratou, até ao dia de hoje, cerca de 2800 novos enfermeiros. E que converteu em contratos definitivos cerca de 2000 contratos a termo certo. Nesse sentido, dir-se-ia: ‘então as reivindicações dos enfermeiros são desproporcionadas, injustas ou inadequadas?’ Não são.
Qual é o impasse?
Parte daquilo que hoje os enfermeiros reivindicam resulta de uma acumulação em alguns casos, como eles reconhecem, de processos com cerca de 20 anos. O que temos dito é o seguinte: será possível a um Governo, a este ou a qualquer outro, resolvê-lo de uma forma instantânea, sem pôr em causa o conjunto das necessidades do país? A resposta é não. Mas veja-se o caso dos Técnicos de Diagnóstico e Terapêutica (TDT), que chegaram a fazer uma greve de quase um mês. Há 18 anos que ambicionavam uma carreira estruturada. Foi um processo difícil, negociado no tempo e no modo possível, e hoje sentem-se reconfortados porque viram a carreira enquadrada. O mesmo com os farmacêuticos hospitalares, que aguardavam há 16 anos.
Eram prioridade?
Não, são grupos profissionais mais pequenos e é preciso dizer que, quer num caso quer no outro não houve nenhuma implicação orçamental.
Só é possível acordos sem grande implicação orçamental?
A decisão do Governo foi trabalhar com estes profissionais, corresponder a uma perspetiva de desenvolvimento pessoal e profissional e eles entenderem e aceitarem que havia um tempo para podermos, depois, ponderar as questões orçamentais.
Voltando à pergunta inicial sobre os novos subsídios dos enfermeiros especialistas.
Não há uma questão entre Finanças e Saúde. Os governos não são feitos de polícias bons e de polícias maus. Um Governo é uma instituição coletiva em que as decisões setoriais são tomadas em conjunto. E, sempre que existem alterações de política que tenham implicações orçamentais, obviamente que nenhuma pasta setorial tem autonomia, e quanto a mim bem, para fazê-lo sem o acordo e sem a validação prévia das Finanças.
Mas essa tutela das Finanças tem vindo a ser reforçada. Sente que tem a autonomia necessária?
Sinto muito orgulho em pertencer a um Governo que devolveu rendimentos, que retirou o país da indignidade internacional e que fez com que Portugal esteja projetado num ciclo de crescimento. Tenho dito muitas vezes: quando, daqui a dez anos, eu estiver fora disto e o Governo for olhado na sua ação, prefiro ter comigo o ónus de que às vezes não consegui fazer tudo o que gostava, porque respeitei algo mais importante – o país que deixamos para os nossos filhos – do que ser instantaneamente popular.
E, além do país, está convencido de que está a deixar o SNS melhor?
Só não quer ver isso quem não estiver de boa fé.
Ainda sobre Mário Centeno, acha que o ministro das Finanças tem a sensibilidade social suficiente para as ramificações que atualmente tem o Ministério sobre as outras áreas?
Acha que o ministro Mário Centeno teria, como tem hoje, o respeito da generalidade dos portugueses e também das entidades externas por estar a fazer, com a colaboração de todos nós, o que é necessário se respondesse a todas as necessidades ou reivindicações, embora legítimas? Não está em causa a legitimidade, está em causa o tempo e o modo. Se temos de fazer escolhas, garantir que a consolidação orçamental é feita e o país se liberta para pagar menos juros, temos de o fazer.
Como vê a ida de Centeno para presidente do Eurogrupo?
Como um movimento que prestigia o país de uma forma substantiva e não apenas aparente. Estamos a falar, se isso vier a acontecer, de uma decisão que reconhece uma solução política diferente e que há um ano e meio era considerada predecessora de uma catástrofe. Seria o fim do país e o fim da economia. Passados estes dois anos, com muito sofrimento de todos, sobretudo dos portugueses, Mário Centeno personifica o bom trabalho que o Governo tem feito, naturalmente sendo, aqui e ali, incompreendido.
Nas suas palavras não depreendo então nenhum sinal de alívio se pudesse ir alguém para a pasta das Finanças, passe a expressão coloquial, menos agarrado ao dinheiro.
Ele não é agarrado ao dinheiro. Defende os recursos, que são poucos, e com um enorme sentido de responsabilidade. No Governo estamos-lhe todos muito reconhecidos pela sua capacidade e eu acho que, se for para o Eurogrupo, não deixará certamente de ser ministro das Finanças e será um reforço para o país. E provavelmente com uma dívida mais pequena, como vai ficar dentro de poucos meses. E posso cometer essa inconfidência: o objetivo de reduzir a carga com juros e com dívida é também um objetivo do Ministério da Saúde, porque libertamos verbas para investimento tecnológico, físico e estrutural e para ir ao encontro das expectativas das diferentes profissões, relativamente às quais estamos muito em sintonia. Como já disse, apenas divergimos no tempo e no modo. Resolver problemas de 20 anos em um ou dois não é de todo possível.
Voltando aos enfermeiros, chegou a elogiar a postura do Sindicato dos Enfermeiros Portugueses (SEP), serena e construtiva, e ao fim de alguns dias este sindicato convoca uma greve. Foi uma rasteira política?
Temos de nos libertar daquela questão de que vivemos de pequenos jogos e pequenas vitórias. Não deixo de respeitar ou valorizar a posição de um sindicato por ele agendar uma greve.
Não vê contradição?
A apreciação que fiz da posição do SEP já a tinha feito relativamente à Ordem dos Médicos. É preciso que fique muito claro: o Governo não tem preferência por nenhuma instituição ou entidade. A única preferência é pelas entidades que agem dentro do enquadramento legal e que, sendo instituições da saúde, têm a ética como princípio maior.
Ficou surpreendido com a adesão que teve a greve declarada irregular pelo Governo e pela qual foram marcadas faltas injustificadas?
Não. Bastava que estivessem 1000 ou 500 pessoas na rua para que um Governo democrático e humilde percebesse que há ali a expressão de uma vontade. Quem me conhece menos bem poderá ter tentado fazer aqui um exercício de instrumentalização para dar a entender que eu tinha uma zanga com os enfermeiros. Quem me conhece sabe o que penso sobre o papel dos enfermeiros no sistema de saúde.
É casado com uma enfermeira, o que chegou a ser usado no protesto.
Sei que isso é do conhecimento público mas acho que a privacidade da minha família e da minha mulher, com quem tenho felizmente uma relação muito boa, não tem que ver com este processo. Não faria nada a favor ou contra os enfermeiros por ser casado com uma enfermeira.
Debate estas questões em casa?
Quando vim para o Governo fiz um pacto voluntário, que é não falar de política em casa. Mas sobre os enfermeiros, deixe-me dizer isto: o ministro da Saúde não tem de ter preferência por nenhum grupo profissional. É fácil dizer: como ele é médico, provavelmente tem um instintivo corporativo.
Disse-o José Azevedo, dirigente do Sindicato dos Enfermeiros, acusando-o de pertencer ao lóbi médico.
É preciso conhecer mal as pessoas. Qualquer ministro no mundo ver-se-ia impossibilitado de fazer um sistema de saúde de qualidade prescindindo de um grupo profissional. Trabalhamos cada vez mais num ambiente de equipa multidisciplinar. Diria que é um mito urbano que foi montado no sentido de cavalgar que havia aqui uma preferência.
Mas o lóbi médico existe ou não?
Não conheço nenhum lóbi médico. Existirá tanto um lóbi médico como financeiro, dos advogados. Não tenho uma visão maniqueísta da sociedade, de que existem ambientes conspirativos e grupos com muito poder.
Não faria mais sentido haver um sistema de especialização dos enfermeiros como o internato dos médicos, com a especialização feita no âmbito do SNS e não por via de cursos fora do sistema?
Percebo que me faça a pergunta a mim, porque sou eu que estou de turno, mas é de fazer a pergunta aos que assinaram há anos que seria de outra maneira.
Mas é algo que equaciona?
Esta situação do enquadramento dos especialistas apareceu relativamente de repente e tudo poderá fazer sentido, mas é diferente da opção que existiu há uns anos atrás em que não se foi por esse caminho. O Governo disse aos sindicatos que haveria disponibilidade para que, de imediato, a seguir à entrega do Orçamento do Estado na AR, se iniciasse o processo de negociação de um novo acordo coletivo de trabalho, que abordasse a questão da avaliação do desempenho, PNT, desenvolvimento da carreira, o que era um ponto importante para ambas as estruturas sindicais.
E em relação ao resto?
Transmitimos aos sindicatos a disponibilidade para a reposição do pagamento das horas de qualidade suspensas há vários anos de forma faseada ao longo de 2018, para que não haja uma situação de rutura. Dissemos também que estaríamos em condições de iniciar a transição do PNT dos contratos individuais de trabalho, os chamados CIT, das 40 para as 35 horas, nos casos em que estejam em causa o princípio do trabalho igual para o salário igual.
Logo no início do ano?
Teremos de ver. É matéria que tem de ser enquadrada com o acordo das Finanças.
Mas a promessa de passar os CIT para as 35 horas já existia há um ano quando houve a reversão das 40 horas na Função Pública.
É a questão do tempo e do modo. Na altura não foi possível fazer tudo ao mesmo tempo. Os portugueses percebem bem que a metodologia que o Governo está a utilizar, prudencial, quer na gestão de expectativas, quer na assunção de encargos de despesa, está a resultar. Os próprios profissionais compreenderão.
Um patrão que trata de forma desigual funcionários na mesma situação pode ser compreendido?
Esse comentário é injusto e pouco adequado ao que tem sido a ação deste Governo. Teria sido melhor fazer tudo ao mesmo tempo? Não foi possível. A única coisa que posso dizer é que vale mais fazer agora do que não fazer.
E em relação aos especialistas?
Assumimos o compromisso de aceitar a diferenciação remuneratória nessas funções, admitindo para o efeito o alongamento do regime dos suplementos e deixando para depois, uma vez que se trata de um edifício complexo, a questão de avançar com uma revisão da carreira. Nós não queremos voltar ao passado, a sofrer o que o país sofreu. Era muito simpático e muito popular se o Governo dissesse que ia distribuir por toda a gente tudo aquilo que é pedido, e depois sairíamos e alguém viria retirar aquilo que tinha sido dado inapropriadamente. Não se pode compactar em dois ou três meses uma discussão que tem de durar seis meses ou um ano.
É verdade que o secretário de Estado Manuel Delgado chegou a dizer aos sindicatos que fizeram greve que o que eles queriam era um salto de canguru quando só podem dar um salto de minhoca?
Tenho uma grande fixação no bom senso e sempre que vejo afirmações que podem ter um caráter informal numa reunião não é de valorizar. O que é de valorizar é que a primeira proposta de ACT pela FENSE tinha aspetos remuneratórios que, do ponto de vista orçamental, eram insuportáveis. Quanto ao desenho e modelo estratégico, estamos sintonizados, temos é de discutir o tempo e o modo. A negociação é um exercício em que as partes tendem a partir de pontos diferentes, não digo diametralmente opostos, mas muitas vezes afastados. Tem sucesso quando se encontram num ponto intermédio. Não é dar tudo o que a outra parte pede.
Falou de entidades que agem à margem da legalidade. Considera que a bastonária dos Enfermeiros tem estado a exceder as suas funções?
Sobre a senhora bastonária dos Enfermeiros não faço rigorosamente nenhum comentário.
Passando para os médicos. Pretendem que se baixe o numero de horas semanais nas urgências de 18 para 12 horas, alegando que teriam mais tempo para consultas e operar. Até onde está disposto a ceder?
Temos tido muito trabalho com os sindicatos médicos ao longo dos últimos meses, aliás já houve avanços em muitas matérias. Sobram no essencial três pontos.
Os médicos têm então menos razão para greves?
Não qualifico as razões em termos relativos ou absolutos. As razões são as percebidas pelos próprios e nesse sentido são legítimas. Além da reposição dos rendimentos houve um esforço importante de repor o valor integral das horas extra.
Qual é o impacto no orçamento?
Não está fechado mas são largas dezenas de milhões que esperamos compensar com a diminuição do recurso às empresas de prestação de serviços, que está a baixar significativamente. Isso era um ponto central da reivindicação dos médicos. Preferiam que tivesse sido resolvido a 1 de janeiro, mas acabaram por aceitar o faseamento. Sobre o que resta agora, há a revisão do limite máximo anual de horas extras obrigatórias. Era intenção que baixasse de 200 para 150 horas, alinhando pela restante função pública, o que estamos em condição de aceitar. Dos três, é o ponto que diria…
Mais fácil?
É o que avançou mais. Depois há outros dois pontos que têm sido mais difíceis de negociar. Os sindicatos querem passar dos 1900 utentes por médico de família para 1500. O que temos dito é que é muito difícil fazê-lo já porque temos um compromisso político que visa, em 2019, todos os portugueses terem um médico de família. Seria um retrocesso. Por outro lado, os números dizem-nos que temos apenas 10% dos médicos com mais de 1900 utentes.
O que propõem?
Manter esse limite mas com atenção particular aos médicos mais velhos: permitir aos médicos com 60 ou mais anos que tenham um congelamento de novas admissões de utentes e uma redução marginal no caso de estarem entre os que têm 1900 utentes, garantindo que nenhum utente é mudado contra a sua vontade. A outra questão são as urgências: acolhemos os argumentos de que tirar médicos da urgência melhora o tempo para a atividade planeada, para as consultas, para as cirurgias e queremos isso. Mas também aqui sabemos que, a fazer 18 horas por semana, existem pouco mais de 13% dos médicos.
Porquê?
Porque alguns que aderiram a este regime em 2012 estavam perto da idade de pedir escusa do serviço de urgência e porque há muitas especialidades que não são tão exigentes do ponto de vista de urgência. Pedimos ajuda aos sindicatos para encontrar um modelo de transição, faseado, que poderia começar em 2018 com uma redução marginal: saltar de 18 para 12 horas criaria uma rutura no sistema. Repare, nós não fechámos nenhum ponto de atendimento no país. Quando ouvimos dizer que o SNS aqui e ali tem problemas, o que ouvimos são reivindicações socioprofissionais. Não se ouve dizer que fechou uma unidade, uma urgência, um hospital.
Isso não pode ser sinónimo de que não está a haver uma reforma estrutural, a reclamada reforma hospitalar?
O que é uma reforma estrutural?
Uma reorganização dos serviços.
Por que é que uma reforma estrutural significa fechar serviços?
Porque era algo que o setor vinha a defender nos últimos anos.
É um erro, que infelizmente durante alguns anos fomos repetindo à exaustão.
Mas também chegou a considerar que o período do resgate tinha sido uma oportunidade perdida para essa reforma hospitalar.
Temos de aprender com as coisas que fazemos e hoje discute-se se o encerramento maciço de hospitais de proximidade, que há uns anos muitos de nós achávamos que era o alfa e o ómega de um processo de centralização e eficiência, foi útil.
Não foi?
Transferiu para os hospitais e urgências hospitalares um volume de procura que ainda não estava a ser devidamente satisfeito nos cuidados primários.
Anunciou já a construção de um hospital de proximidade em Sintra e outro no Seixal. É esse o caminho?
A reforma estrutural é a proximidade. Significa cada vez mais que os hospitais de fim de linha e diferenciados sejam isso mesmo, não sejam outra coisa qualquer. É ajustar oferta e procura. Vai acontecer com o Amadora-Sintra, também pela revisão do contrato do Hospital de Cascais para incluir freguesias a meio gás, ou com o Garcia de Orta em relação ao Seixal. É haver cada vez mais equipas de saúde familiar, onde estão médicos, enfermeiros e outros técnicos. É ter saúde oral, saúde visual e outros tipos de prestações nos centros de saúde. É ter exames de imagem e análises. É também criar um tropismo, uma nova atractibilidade com o projeto SNS + Proximidade que está a ser liderado pelo professor Constantino Sakellarides, em que os portugueses têm a possibilidade de utilizar serviços perto de casa, o enfermeiro de família, o médico de família, a linha SNS 24 e podem olhar para o hospital como algo mais distante onde vão ao longo da sua vida poucas vezes.
E o que tenciona introduzir de novo nos hospitais?
Este ano foi alargada a produção adicional a consultas e exames, o que dá a possibilidade de os hospitais e equipas fazerem mais consultas para dar resposta aos pedidos até de outras instituições, o que até aqui só estava previsto na cirurgia. Por outro lado, temos vindo a discutir com os médicos modelos de trabalho dedicado à urgência. Os sindicatos manifestaram essa vontade.
Como assim?
Trabalharem três meses ou até seis meses seguidos na urgência, retomando depois a atividade programada. Isto é um grande avanço: permite ter estabilidade, profissionalização e melhores competências nas urgências e menor dependência da aquisição de prestações externas de serviços.
Com algum ganho salarial para os médicos?
Está a ser discutido. Pode ser ganho salarial, pode ser direito de férias. É mais um dos contrapontos de diminuir as horas nas urgências de 18 para 12.
Quer garantir médico a todos os portugueses. Como se explica que os médicos que terminaram a especialidade em abril, como todos os anos, tenham estado até agora à espera dos concursos para serem colocados nos centros de saúde?
Até nós chegarmos ao Governo os concursos eram feitos em novembro ou dezembro.
Em 2016 estavam colocados a 1 de agosto.
Organizámos um concurso prévio para mobilidade interna dos médicos que já estavam no sistema, o que nunca tinha sido feito. Por razões administrativas, isso fez com que o processo atrasasse mês e meio. O concurso para os especialistas hospitalares será aberto em breve.
Falou de medidas para levar os hospitais a aumentar a resposta, mas continua a haver tempos de espera elevados. A Entidade Reguladora da Saúde veio avisar esta semana que há tolerância reduzida para o incumprimento dos prazos.
Creio que a ERS já terá tido a ocasião de ler o relatório do acesso ao SNS de 2016. O aumento marginal do tempo de espera que se verificou aconteceu porque se operaram muito mais doentes do que no ano anterior. Isso significou uma coisa: houve mais acesso. Quando abrimos consultas, geramos aumento do stock de doentes em espera. É muito fácil, diria até politicamente muito conveniente, disfarçarmos inscritos em espera se barrarmos o acesso às consultas e ao sistema.
Que era o que estava a acontecer?
Os números falam por si. Ao contrário, nós aumentámos o acesso, baixámos as taxas moderadoras. Nunca tinham vindo tantas pessoas ao SNS como em 2016.
Isso não apaga o facto de haver tempos de espera de mais de dois anos para consultas no SNS. Há 900 dias de espera para uma consulta de oftalmologia em Seia, mais de mil dias em Chaves.
É inaceitável, tem toda a razão.
E a partir de 1 de janeiro de 2018 o Governo baixou para 120 dias o tempo de espera para uma primeira consulta no SNS. Não é uma utopia?
Não. Melhorámos em relação ao ano passado e em relação há dois anos. Enquanto houver um português à espera em tempo inapropriado não estaremos satisfeitos e a pressão que vamos pôr sobre as instituições é grande, recorrendo se necessário a entidades convencionadas para dar respostas necessárias e emergentes.
No caso das consultas também? Nunca foram criados vales para os doentes irem ao privado para serem atendidos dentro dos prazos definidos na lei.
Não é verdade, hoje em dia o setor convencionado, nomeadamente o setor social, naquilo que são unidades afiliadas do SNS, faz consultas.
Certo, mas não existe o regime que foi criado para as cirurgias.
A nossa preocupação é só uma: os direitos de acesso das pessoas. E temos de fazer duas coisas muito simples. Pôr o SNS a funcionar cada vez melhor, a ser mais eficiente. Mas não podemos em nenhuma circunstância, por preconceitos face ao que não seja o serviço público, impedir que uma pessoa que precise de determinado ato ou procedimento vá à unidade A ou B porque achamos que isso é uma questão contra os nossos princípios.
Portanto vai haver cheques-consulta?
Não gosto da palavra cheque. Admitimos que as pessoas possam ser referenciadas para unidades com acordo com o SNS se isso significar estar a responder às suas necessidades de saúde. Os portugueses não têm culpa que o sistema demore muito tempo a resolver as suas dificuldades. Agora nunca como hoje tivemos tantos profissionais no SNS, mesmo médicos, mesmo em hospitais considerados tradicionalmente com pouca atractibilidade. E estamos a discutir com a Ordem, para o próximo ano, iniciativas que vão no sentido de, durante a formação médica pós graduada, os médicos passarem a ter um período em hospitais periféricos. No Hospital de Santarém ou no Hospital de Leiria, por exemplo.
Depois quando os médicos acabam a especialidade muitas vezes as vagas nos locais onde fazem mais falta ficam por preencher. Ser obrigatório permanecer por um período no SNS está em cima da mesa?
Tenho dito sempre que sou muito pouco adepto de medidas baseadas no autoritarismo legislativo. Mas não lhe escondo que estamos a equacionar, em sede da discussão preparatória do OE, que a partir de 2018 não seja possível a um jovem especialista em quem o Estado investiu, através do dinheiro dos contribuintes, sair imediatamente para o setor privado mal termine a especialidade, dando benefício desse investimento ao privado.
O que tem em mente?
O modelo que existiu para os pilotos da Força Aérea é virtuoso. Tem de haver um período mínimo de fidelização ao serviço público para compensar o facto de, nós todos, termos feito esse investimento. Ou então tem de haver o uma compensação do Estado, porque investiu numa formação pós-graduada cara, exigente, qualificada e é justo que peça uma contrapartida.
Quanto custa a formação e qual seria a compensação?
Os dados são variados. O custo de uma formação em medicina geral e familiar é diferente de uma especialidade em cirurgia cardíaca. Temos de encontrar um valor.
E que período de fidelização considera aceitável?
Um período de três a cinco anos parecer-me-ia razoável.
Os médicos teriam de ocupar então as vagas nas zonas carenciadas?
Teriam de ficar no SNS, onde naturalmente existirem vagas e isso é uma compensação que o profissional dará pelo investimento que a sociedade fez nele. E, se forçar a saída, terá de haver uma compensação.
Tem o apoio dos partidos à esquerda nesta intenção?
Temos tido conversas informais e o entendimento político é partilhado, creio que não só nos partidos à esquerda.
Mas seria aplicado já em 2018?
Tem de haver um período de preparação. Não é uma questão de esquerda ou direita, é uma questão de bom senso. Os portugueses acham que fazem com muito gosto um investimento na formação de profissionais altamente qualificados e não é justo, não é correto, que no dia seguinte à formação estar concluída, esses mesmos profissionais abandonem o serviço público e vão para o privado.
Os gestores hospitalares têm criticado a grande centralização das decisões e pouca autonomia perante os pedidos que têm de ser submetidos à tutela e Finanças, nomeadamente para investir e contratar.
Naturalmente o investimento sempre foi assim. Investimento de maior dimensão tem de ter um despacho conjunto da Saúde e das Finanças. Não vale a pena diabolizar as Finanças. Se me perguntar assim: ‘se eu tinha gostado de ser, até aqui, ministro num Governo que tivesse uma disponibilidade financeira absoluta, num país que não tivesse uma dívida de 130% do PIB, que não tivesse saído do programa de assistência e que pudesse dispor de todos os meios?’ Com certeza.
Mas estaria confortável hoje na pele de administrador hospitalar?
Estaria, como estive noutras circunstâncias nas funções que tive.
Mas hoje há regras diferentes, a começar pela lei dos compromissos.
A questão que se coloca é esta: 80 novos centros de saúde, nunca aconteceu na história do país. Há investimento. Vamos acabar com os centros de saúde em prédios de habitação. E isso vai ser bom não só para os utentes porque vão ter mais conforto e segurança mas também vai ser mais atraente para que os jovens médicos, enfermeiros e técnicos queiram ir trabalhar para sítios que até aqui muitas vezes ficam desertos. Ficam desertos não é tanto pelas condições sociais ou profissionais, é porque as condições de trabalho são miseráveis. Visitei centros de saúde em Lisboa e no grande Porto em que as condições são deploráveis.
As Ordens chegaram a propor um reforço de 1,2 mil milhões para o SNS. O que garante para 2018?
A Saúde é a área setorial com maior crescimento na dotação do programa. Naturalmente não é suficiente para responder a tudo, porque estamos em expansão de atividade, de recrutamento e de investimento. O setor vive uma situação de subfinanciamento há muitos anos e isso tem sido muito bem percecionado, por um lado na capacidade de investir, que tem sido limitada, mas também na acumulação de pagamentos em atraso, o que nos desagrada. Temos um agravamento dos pagamentos em atraso superior ao que tínhamos no ano passado.
Totalizaram em julho 852 milhões de euros, um aumento de 300 milhões desde o início do ano.
Mas há mais atividade, aprovámos 51 medicamentos inovadores.
Mas o orçamento para este ano já previa um défice final de 248 milhões de euros para o SNS…
Significa que os recursos não chegam, tem toda a razão.
Significa que o cobertor é curto e as dívidas a fornecedores são inevitáveis, o que dificulta a gestão. Para quando um orçamento que preveja, admitindo imponderáveis, um saldo positivo ou pelo menos resultado nulo?
Essa é uma conversa que nos levaria muito longe porque não conhecemos praticamente nenhum ano em que esse confronto entre as necessidades estimadas e as verificadas se tenham alinhado.
Mas em 2018 o orçamento vai prever na mesma que o SNS terá défice?
Vamos esperar pela apresentação do OE. Estamos a trabalhar com as Finanças. Trabalhos muito com o Ministério das Finanças, também para que este ano seja feito um esforço, como no final de 2016, para redução significativa dos pagamentos em atraso.
É a solução que tem havido todos os anos, um penso rápido.
Estamos a encontrar uma fórmula que antecipamos como estrutural e definitiva para que, na segunda metade da legislatura, o problema seja atenuado. Tem havido iniciativas para ser criada uma lei de meios ou de programação financeira.
O Governo vai avançar por aí, por exemplo pela consignação de mais impostos para que o financiamento do SNS seja mais estável?
Fizemo-lo este ano com a sugar tax que foi um sucesso e estamos a trabalhar para ver se há margem para que na área do sal também possamos avançar nesse sentido. São impostos virtuosos. O que aconteceu com o açúcar, mais do que a receita, foi a mudança de comportamento dos industriais, que começaram a alterar a carga de açúcar nos refrigerantes. A nossa grande batalha é fazer com que aquilo que já ganhámos, que é viver até mais do que os países do norte da Europa, seja acompanhado por uma esperança de vida mais saudável. Os últimos dez anos não são bons, temos uma forte carga de doença crónica.
Nos últimos meses surgiu um movimento de críticos de esquerda que considera curtos os esforços do Governo nessa área da prevenção.
São reflexões que não nos devem incomodar mas estimular. O meio da legislatura é sempre um momento difícil. Agora, em 2019, quando terminarmos a legislatura e quando fizer 40 anos, o SNS vai ser motivo de orgulho para todos nós.
Era apontado como ‘ministeriável’ há muitos anos. O que o surpreendeu mais até agora?
Termos ainda uma máquina do Estado muito pesada. Entre o desenho de uma ideia e aplicá-la há muitas fases.
Qual foi o momento mais duro?
Os meus amigos e também inimigos, que terei alguns, sabem que tenho aquilo a que se chama nervos de aço. Não sou muito influenciável pela tensão do momento se estiver consciente de que estou a fazer o que sei que tenho de fazer. A dureza tem mais a ver com a carga de trabalho, a intensidade.
Tem fama de ter um feitio workaholic, controlador, de querer estar sempre em cima de tudo. E também algum mau feitio.
É verdade. Reconheço que essas características, não vale a pena iludi-las, porque existem. A do mau feitio cabe aos outros ajuizar. Acho que pode ter a ver com a vontade de que as coisas aconteçam depressa, bem, de lutar contra a máquina burocrático-administrativa. O querer fazer numa legislatura aquilo que está por fazer há muito tempo.
E em termos humanos, qual foi o momento mais difícil?
Foi pouco tempo depois de ter chegado ao Governo o caso daquele jovem que faleceu no hospital de S. José [David Duarte, enquanto aguardava cirurgia por falta de equipa médica]. Foi ter acompanhado nos bastidores o caso do bebé milagre – e agora quando estive em S. José com o Presidente da República, mesmo com o mau feitio que me é imputado, todos nos emocionámos com a criança ao colo. E também fiquei muito incomodado com a fatalidade da jovem de 17 anos que morreu de sarampo. O mundo e Portugal não podem nunca deixar que aqueles que lutam contra a ciência e o progresso possam provocar este tipo de situações, por ignorância ou por outro tipo de motivações.
«As expectativas é que são o diabo», escreveu António Galamba há uns dias no i. Sente que está a pagar esse preço, tendo uma larga experiência no setor da Saúde?
Os primeiros seis meses do Governo foram, para todos nós, terríveis. Criou-se um cerco na opinião pública e político que traçou um destino de fatalidade. Felizmente passámos esse tempo e os portugueses passaram a confiar no Governo. As expectativas são sempre difíceis de gerir, sobretudo porque todos nós temos a ideia de que existem salvadores, soluções milagrosas. Mas a vida política, e uma legislatura em concreto, é uma corrida de fundo, não de instantes. As incompreensões no no intermezzo são naturais. A frustração é natural. Temos de lidar com isso com humildade.
Mas sente que tem dececionado?
Não sinto. Na rua tenho uma interação com as pessoas muito positiva. Depois repare, não ligamos muito aos rankings políticos e sondagens, mas são surpreendentes porque, ao que julgo saber,…
É um ministro popular?
Frequento o chamado ranking. Agora ser um ministro popular e ser incompetente ou ser popular porque faz aquilo que não deve e distribui recursos que não tem, não quero. Prefiro ser impopular. Quero chegar ao fim com a sensação de que fizemos bem. Uma coisa que garanto: nunca diabolizarei a contestação, nunca considerarei que o mundo está contra mim e que as reivindicações dos profissionais são injustas.
Antes de ser ministro e gestor, é médico. Qual é a sua linha vermelha na política?
Não farei nada que viole a minha consciência. Sou muito fixado nos valores e nas questões éticas.
Diz-se que tem ligações ao Opus Dei. É verdade?
Não sou nem nunca fui da Opus Dei nem da maçonaria. Acho que o apego aos valores e à ética é algo que temos dentro de nós, transmitido pela cultura e educação. Como médico e cidadão, há linhas que não podemos ultrapassar.
Hoje o desempenho do SNS não pisa essas linhas?
Está completamente longe disso. Com a nota de que temos de ser sérios na afirmação do que fazemos, temos de ser leais do ponto de vista político e público, não devemos disfarçar os problema, não devemos ser arrogantes. Firmeza é uma coisa, arrogância é outra.
Os enfermeiros acharam que tinha sido arrogante na entrevista que deu antes da greve na SIC.
Aí houve um equívoco, apercebi-me depois. O seu colega foi assertivo e não me deixou tempo para eu explicar o que pretendia, não me estando a queixar. Há uma grande confusão. Eu estava a insurgir-me contra comportamentos de algumas pessoas que na altura considerava, como considero hoje, que estão à margem da ética e dos princípios da legalidade, não estava a falar dos 70 mil enfermeiros que trabalharam diariamente no país.
Estava a falar de quem, da bastonária?
Estava a falar de pessoas que publicamente defenderam posições definidas até por entidades independentes como inadequadas.