Das seis propostas que Italo Calvino tinha planeado dirigir a este milénio, numa série de conferências que teria lido em Harvard – não fosse 1985, sem que ele o soubesse, o ano da sua morte –, só cinco são conhecidas. Chegada a hora de vasculhar os papéis do escritor italiano, a última das indicações que buscavam realinhar a literatura com as qualidades que, por lhe serem específicas, fazem dela uma irrenunciável experiência humana, estava em falta. As cinco que tinham ficado escritas versavam sobre a leveza, a rapidez, a exactidão, a visibilidade e a multiplicidade.
Foi já desta margem que o escritor argentino Ricardo Piglia – que morreu no início deste ano – saltou sobre essa lacuna, e defendeu como sexto sentido a capacidade de a literatura se deslocar do centro, distanciar-se para olhar de fora, buscando a alteridade. Ao definir essa qualidade que permite à literatura “dar a palavra a outro”, Piglia serve-se do exemplo de um compatriota, o jornalista e escritor Rodolfo Walsh que, antes de ser emboscado e sequestrado em 1977, passou os últimos dias a descoser os limites da literatura, numa série de relatos em que o horror da repressão clandestina é capturado por uma voz que consegue deslocar-se de forma sensível e incisiva entre perspectivas coincidentes de um mesmo pesadelo. Piglia fala de um efeito de condensação da experiência, com este deslocamento a funcionar como um cerco da situação, um arrolar de testemunhas, num efeito que se produz numa mistura entre a elipse e a metáfora: “alguém fala por ele e expressa a dor de um modo sóbrio e directo e muito comovente”.
Este “minúsculo deslocamento” permite que o leitor, ao invés de ficar imerso nas sensações e na perspectiva de um protagonista, siga uma representação mais abrangente, um realismo mais plural, numa “lição de estilo” que vai cerzindo doses bastante contidas de dor e compaixão. Piglia reforça a importância de se conseguir ultrapassar uma vertigem do eu, numa desfocagem que tenta “contar esse ponto cego da experiência, que quase não se pode transmitir”.
Selva Almada nasceu em 1973, numa pequena povoação rural, católica e conservadora da província de Entre Ríos, na Argentina, e é uma das vozes que mais se tem destacado nesse “subúrbio do mundo” – como Piglia se referiu à literatura argentina, que, a partir das bordas da tradição cultural, assume a vantagem de um olhar enviesado e, por isso, diferente, levemente marginal.
Comparada a outros vultos que se mostram peritos na sabotagem dos modelos narrativos, seja na literatura latino-americana, como Juan Rulfo ou Juan Carlos Onetti, seja na norte-americana, como Carson McCullers ou Erskine Caldwell, Almada entra em Portugal com o selo da Dom Quixote e um livro que não tem digestão possível.
“Raparigas Mortas” é apresentado como um romance de não-ficção, na linha do que fez Truman Capote com “A Sangue Frio”, mas como este, trata-se de um livro que vai rejeitando os seus antecedentes, através de um tipo de irresolução narrativa que, ao reportar os assassínios brutais de três adolescentes na década de 1980, se defende com unhas e dentes da ficção, de extrapolações ou juízos enfáticos, e prefere uma verdade mesmo que lacunar, esquiva ou mesmo fugitiva.
Em entrevista a este jornal, Almada reconheceu que o projecto inicial, nos anos em que investigou as mortes de Andre Danne, María Luisa Quevedo e Sarita Mundín, era guiar-se pelo modelo da crónica policial, gerindo a tensão de modo a que a narrativa fosse aturando os detalhes sobre as vidas das três adolescentes assassinadas em diferentes províncias argentinas, enquanto pistas que permitissem deslindar três casos que, mais de três décadas depois, não produziram qualquer condenação.
Remonta ao período da sua própria adolescência esse abalo que lhe disse algo de insidioso sobre o mundo e que Almada, depois disso, não a abandonou mais. Tinha 13 anos quando soube pela rádio que, a escassos quilómetros de si, Andrea fora encontrada morta na sua própria cama, apunhalada. “A minha casa, a casa de qualquer adolescente, não era o lugar mais seguro do mundo. Dentro da nossa casa podiam matar-nos. O horror podia viver sobre o mesmo teto que nós.” Há um despertar para a diferença de ser mulher como um perigo, uma particular vulnerabilidade num ambiente em que a violência surge como um risco inerente das relações sexuais.
Norteando-se por uma extrema fidelidade aos factos, a autora acaba por não ter escolha e ver-se obrigada a ceder a sua biografia como modo de arrastar a algum ponto o destino trágico das três raparigas, e assim tentar dar-lhes voz: “Eu acho que o que temos de conseguir é reconstruir a forma como o mundo as via a elas. Se conseguirmos saber como eram vistas, vamos saber qual era o olhar que elas tinham em relação ao mundo, entendes?”
Não são o mistério nem o suspense que sustentam a trama, e se todos os elementos estão reunidos para alimentar uma sinistra trama, Almada nega-se às tentações que, com um pequeno desvio, fariam deste livro um seco e pungente ensaio com lugar na categoria do terror.
Nem interessa tão-pouco apontar o dedo, descobrir quem foram os culpados – mesmo se a autora não mostre grande receio em mexer no passado, e levantar as pedras suficientes para desenterrar algo –, o que este livro alcança, no entanto, é uma acutilante crónica do contexto que tem nestes três casos exemplos paradigmáticos do alto grau de tolerância de certa cultura face ao femicídio.
O romance de não ficção tem hoje servido de gaiola para que umas aves exóticas que não gostam de se constranger a um género literário, vão aduzindo argumentos numa selvajaria ensaística que, se muitas vezes permite que o leitor admire as capacidades com que o autor o puxa para o seu mundo, excitam menos por essas condições específicas da literatura e mais por essa afectação voyeurista que fez do público um aglomerado sintomaticamente passivo, espectadores dependentes de doses fixas de entretenimento, revelações sórdidas ou minimamente chocantes.
Além de entregar a sua biografia para incrustar nela os ecos daqueles e outros casos de violência sobre mulheres, para depois produzir aquele deslocamento, e dar voz a quem muito provavelmente não chegou sequer a ter uma, Selva Almada estima essas qualidades intrínsecas da literatura, e para lá da condensação da experiência, do modo como produz estranheza atendendo-se a factos, alcança tanto a leveza, rapidez, exactidão, visibilidade e multiplicidade. O literal, carregado de subtis efeitos de sugestão, torna-se metafórico. Há uma respiração poética que tem menos a ver com o forçar de algum tipo de lirismo e mais com o tal efeito de elipse, uma narrativa que usa silêncios como poucas, que se torna exemplar na sua tão digna circunspecção. Como Almada explicou ao i, não lhe interessam muito os livros que não confiam no discernimento do leitor, na sua capacidade para compor por si o que fica de uma meia palavra quando isso é suficiente. Há aqui um pacto que tem muito a dizer sobre o que faz da literatura um rio entre margens.
Veja-se como uma passagem descritiva consegue combinar percepções de diversa natureza sensorial num trânsito realista, sem abandonar a convicção dos seus sentidos, e sem se autorizar a molhar os pezinhos no território do fantástico – ainda que o aceno esteja lá –, consegue induzir essa perplexidade mágica, que nos faz ver como se fosse posto diante de nós o que é descrito: “O curandeiro Rodríguez morreu há muitíssimos anos, deitado numa cama do hospital San Roque, aonde vão morrer os velhos solitários, sem família e sem dinheiro. Deverá ter tido um enterro de pobre, com o corpo metido num caixão mal pregado, sem anilhas de bronze, para quê se não havia parentes para o carregar, por lixar, sem envernizar. Um caixão pouco mais forte que uma caixa de maçãs. Terá pesado muito pouco, o pobre velho. Sem responso nem a bênção do padre, pois não há misericórdia para aqueles que conhecem o segredo, aqueles que têm poderes que ofendem a Deus. Deverá ter sido enterrado numa parcela afastada, daquelas que estão quase encostadas à cerca de arame que divide os terrenos do cemitério dos campos confinantes, um arame farpado para que as vacas não atravessem e vão mordiscar os caules das flores, já murchas nas jarras, nos dias de verão. Uma parcela afastada, onde sepultam os que não têm ninguém.”
O trabalho de Almada, depois de assumir a sua presença na narrativa, passa por confundir a voz que narra com as circunstâncias e os personagens através desse minúsculo deslocamento que não altera dramaticamente a perspectiva que temos sobre a realidade, como acontece em Faulkner – outro dos autores norte-americanos cuja influência os críticos não se esquecem de referir ao caracterizarem a escrita da argentina.
Um ano depois da sua publicação, em 2014, e tendo a maior parte da pesquisa para o livro sido feita até 2010, a repercussão de “Raparigas Mortas” faria sentir-se bem depois da crítica e dos primeiros leitores o terem considerado mais um marco no percurso da escritora que surge hoje entre os nomes cimeiros da sua geração. Houve, entretanto, um outro caso de femicídio que capturou a atenção do país e não só impulsionou um amplo debate como esteve na origem de uma série de manifestações. Almada conta que hoje, ao contrário do que acontecia nos anos 1980, já não é tão fácil abafar os episódios de violência que levam a que raparigas sejam encontradas mortas, como María Luisa, cujo cadáver foi descoberto num descampado, com o rosto desfigurado pelas bicadas de pássaros, ou que desapareçam simplesmente da face da terra como aconteceu a Sarita. O caso, tão badalado em 2015, envolveu uma adolescente morta pelo namorado que contou com a ajuda da família para dar um sumiço no corpo. Este impulso permitiu que “Raparigas Mortas” se impusesse como um relato que não se detém no horror mas desvela a paisagem social e as dinâmicas que levam a que certas povoações do interior se tornem permissivas quando aos abusos cometidos contra raparigas pobres, com um horizonte a poucos passos do chão onde nasceram, cuja “aspiração máxima” era formarem-se como professoras e casarem com um homem bom e trabalhador. Algumas, naturalmente, tinham menos sorte que outras.
Uma vez que o grosso da investigação foi feito até 2010, Almada viu-se obrigada a viajar às suas expensas, antes de ter uma crónica nalgum jornal, quando não passava de uma aspirante, um par de anos antes de Beatriz Sarlo, a autora e eminente crítica literária argentina, ter reclamado a descoberta de uma nova e surpreendente voz, elogiando o seu primeiro romance, “El viento que arrasa” (que viria a ser eleito o romance do ano pelo jornal “Clarín”). Não tinha então em seu nome mais do que um volume de contos, um de poemas e um relato confessional em que a sua família e os anos de infância e adolescência, antes de trocar Entre Ríos por Buenos Aires são relatados – livros publicados por selos de circulação muito restrita. Antes de “Raparigas Mortas”, veio ainda “Ladrilleros”, romance que foi mais longe do que o primeiro, com a sua trama tão reminiscente do encanto desolador de Carson McCullers retratando as vidas invisíveis, as existências solitárias e silenciosas. O segundo romance era mais negro, mais íntimo da tragédia, com menos espaço para escavar uma saída pelo sonho.
Em 2014, depois de aparecer uma editora interessada não só em publicar como em orientar Selva neste espinhosa exumação, o livro tomou forma. Não se trata de uma denúncia, e embora tenha um evidente conteúdo político não alinha com o geralmente panfletário tom dos discursos mais inflamados, como se houvesse uma fronteira clara entre vítimas e agressores. Estas raparigas que desaparecem ou aparecem mortas são evidências de um mal mais profundo, de uma indiferença que produz monstros que não deixam de ser dignos de uma certa medida de piedade.