Pedrógão. Aldeias não vão esperar pelo Estado

Marcelo reage este sábado ao relatório da comissão técnica num encontro da Associação de Vítimas do Incêndio de Pedrógão Grande. Estão confirmados representantes de 22 aldeias, que pretendem avançar com medidas de autodefesa contra o fogo. 

É um encontro inédito no país, promovido pela associação que junta familiares das vítimas da tragédia de Pedrógão Grande. Este sábado, representantes de 22 aldeias dos concelhos afetados pelos fogos de junho reúnem-se no primeiro encontro organizado pela Associação de Vítimas do Incêndio de Pedrógão Grande (AVIPG). Vão debater modelos de autoproteção em caso de catástrofe, para criar mecanismos de proteção assentes na participação civil. Nádia Piazza, presidente da associação, revelou ao SOL que o objetivo é lançar projetos de autodefesa e resiliência e está confirmada a presença de 50 aldeões. «Tanto podem ser unidades locais de proteção civil como equipas locais de resposta à emergência. Dependerá da especificidade de cada aldeia», diz a jurista de 39 anos. Nádia perdeu o filho de cinco anos no incêndio de 17 de junho, que estava com o pai e outros familiares, que também não sobreviveram ao fogo. Em entrevista ao jornal i, Nádia explicou esta semana o que motiva o encontro. «Desamparados estivemos sempre. Estivemos antes, durante, depois. Acho que agora estamos mais lúcidos desse desamparo», confessa. «O Estado assumiu tudo: fala de protocolos com os bombeiros, que a Proteção Civil será dotada de meios. Foi retirada às pessoas não só a perceção do direito como do dever de se defenderem. Aquilo que era um saber e costume que passava de pai para filho perdeu-se, já ninguém sabe fazer nada. E ficamos reféns (…) Quando o Estado falha, ninguém sabe fazer nada».  

O direito à resistência

O pontapé de saída para o encontro, que contará com a participação de Marcelo Rebelo de Sousa na abertura, é dar voz ao artigo 21.º da Constituição Portuguesa, que estabelece o direito à resistência: «Todos têm o direito de resistir a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias e de repelir pela força qualquer agressão, quando não seja possível recorrer à autoridade pública». Tornar as aldeias menos dependentes da ação do Estado é o objetivo. 

Para tal, o programa inclui a apresentação de alternativas de radiocomunicações e de casos de sucesso na organização da população. «Há aldeias já com caminho feito tal como Ferraria de S. João e Casal de S. Simão e aldeias com tudo por fazer», salienta Nádia Piazza. Em Ferraria de S. João, entre Penela e Figueiró dos Vinhos, uma circular de sobreiros, que a comunidade decidiu logo depois do fogo ampliar, terá sido crucial para que as chamas não chegassem às casas.  Pedro Pedrosa, da associação de moradores, explicou na altura ao SOL que o fogo praticamente se auto extinguiu. Logo depois do incêndio, os moradores avançaram com o cadastro florestal e começaram a derrubar eucaliptos para garantir uma faixa de proteção de 100 metros em torno das casas.

Falhas táticas e estratégicas

Marcelo fez saber que reagirá ao relatório da comissão técnica neste encontro. Também a associação das vítimas, que já admitiu que poderá avançar para tribunal contra o Estado, guardou para hoje o comentário ao primeiro relatório entregue na quinta-feira. O relatório da comissão independente nomeada pelo Parlamento aponta falhas táticas e estratégicas, em particular à Proteção Civil mas que também podem ser imputadas ao Governo, que não antecipou a fase crítica de combate aos fogos. Ou à Ascendi, que não cumpriu a legislação na limpeza das bermas das estradas. Ou ao SIRESP, cujo sistema os peritos declaram ser obsoleto e ter sido «notório» que falhou – ao contrário do que disse a operadora ou mesmo o grupo Altice PT. 

As falhas humanas foram, na visão dos peritos, cruciais nas primeiras horas, uma vez que a partir das 20h o fogo se tornou incontrolável em virtude de condições atmosféricas fora do comum. E há decisões que causaram perplexidade à comissão, como não ter sido chamado um grupo de reforço que estava disponível em Castelo Branco, tendo sido chamados grupos de Évora e Setúbal, que só chegaram ao fim da tarde e à noite. Os peritos constataram também que durante duas horas cruciais quando devia ter havido reforço de meios não só os meios terrestres não chegaram – ao contrário do que disse a Proteção Civil ao Governo em julho – como não houve qualquer apoio aéreo.

Ministra diz que não se demite

A ministra de Administração Interna, ouvida ontem num debate de atualidade pedido de véspera pelo PSD, começou por dizer que não se demite, considerando que 24 horas não são suficientes para ler o relatório de 300 páginas e ter um debate «sério». Tal como António Costa na sua reação na tarde de quinta-feira, Constança Urbano de Sousa disse só ter lido a nota divulgada à imprensa, de três páginas, que não inclui as apreciações mais críticas do relatório. O SOL confirmou ainda assim junto da comissão que o resumo foi feito pelos peritos. 

A ministra reconheceu que o relatório aponta falhas, nomeadamente na prevenção estrutural, mas indicou que a maioria das mortes ficou a dever-se a um fenómeno meteorológico extremo. No relatório, é referido que 62 das vítimas morreram entre as 19h50 e as 20h40, período em que o fogo estava descontrolado e a uma velocidade de propagação «quase sem paralelo na literatura referente a fogos em floresta». Mas é referido que a ausência de uma ataque mais célere às chamas contribuiu para o desfecho.

Os peritos fazem diferentes recomendações, quer de maior envolvimento das Forças Armadas mas também de formação específica no comando operacional da Proteção Civil e na análise do fogo. A comissão pede também mais estabilidade política. «O Sistema precisa de maturidade e ética na forma como a política é exercida», declaram. Sobre o acolhimento das propostas, falou o ministro da Agricultura Capoulas Santos. O Governo seguirá as que considerar «pertinentes».

Decisões dentro de uma semana

Esta segunda-feira será apresentado o relatório encomendado pelo MAI à equipa de Domingos Xavier Viegas, perito em fogos. Com os dois documentos em mãos, o Governo reúne-se num Conselho de Ministros extraordinário no próximo sábado, depois de o PSD ter condenado o recuo da esquerda num consenso político que havia entre todas as bancadas – à exceção do PS – para avançarem compensações extrajudiciais às famílias das vítimas. Costa admitiu que o Governo assumirá responsabilidades políticas, «se for caso disso». E o Estado compensará as vítimas, se se provarem as falhas. A ministra e o Secretário de Estado Jorge Gomes têm sido falados para uma possível remodelação. Mais certa, nos bastidores, é a exoneração do presidente da Autoridade Nacional de Proteção Civil, Joaquim Leitão. Mas poderá não ser a única saída. Uma das críticas dos peritos é dirigida a Albino Tavares, comandante que na noite da tragédia mandou parar os registos na fita do tempo da Proteção Civil, o que compromete os dados hoje disponíveis. Quando a ordem foi dada, Jorge Gomes mas também Marcelo já estavam em Pedrógão Grande. Albino Tavares substituiu interinamente o comandante nacional Rui Esteves depois da polémica das licenciaturas obtidas por via de equivalências. 

*Com Ana Petronilho