Que ano o de 1986 para Mário Soares. Partiu com a imagem desgastada e a popularidade afundada (intenções de voto a torcer o nariz aos dois dígitos) para as presidenciais mais disputadas da história da democracia portuguesa e, contra todos os oráculos, acabou no Largo do Saldanha a festejar a vitória. Regista o momento a objectiva de Inácio Ludgero, então repórter-fotográfico do extinto “O Jornal”, semanário onde se manteve do primeiro ao último número, em Novembro de 1992.
O slogan “Soares é fixe”, estampado em t-shirts e cartazes, adejando em bandeiras que abanaram ao som do “Rock da Liberdade”, então descrito como “uma batida para curtir”, veio trazer uma água inesperada ao moinho de Soares, então emperrado pelas dolorosas areias do bloco central. Refrescava assim aquela que foi uma das mais intensas campanhas políticas que por cá se fizeram. Retomado duas décadas depois, quando em 2006 – e já esgotada a ampulheta política de Soares – decide entrar na corrida a Belém, esse slogan haveria de acompanhar-lhe o trajecto, não mais se despegando da imagem do antigo presidente da República.
Soares era ou parecia ser fixe (Álvaro Cunhal, Salgado Zenha ou, depois, Manuel Alegre questionariam a formulação, não hesitando certamente em virá-la do avesso) – até nos mais improváveis locais, como é o caso do Museu da Presidência da República. Aí o vamos encontrar, nesse irreverente retrato oficial de Júlio Pomar, bem-disposto e descontraído, bochechas sorridentes, a destoar de sisudas figuras, e a dar razão ao seu amado Camilo quando escrevia que “a seriedade é uma doença e o mais sério dos animais é o burro”. À solenidade austera e à compostura de respaldo do enfileirado presidencial responde Soares com a descontracção, a jovialidade e o riso matreiro de quem nos confia uma facécia. A liberdade tem muitas declinações.
Com textos de José Jorge Letria, Eduardo Lourenço e Guilherme D’Oliveira Martins, esta significativa colecção de fotografias de Inácio Ludgero, que ao longo de quatro décadas acompanhou Mário Soares como dirigente partidário, primeiro-ministro, presidente da República, eurodeputado e ainda dirigente socialista internacional, retoma o genial slogan dos idos de 86, dando-lhe agora uma dimensão de eternidade que repele, no entanto, ideias agarradas ao amarelecido ou às mitificações retrospectivas. Nem podia ser de outro modo: o autor de “Portugal Amordaçado”, que confessou não esperar da posteridade mais que umas notas de rodapé num compêndio de História, sempre dispensou os atavios das citações e referências mitificadas, sempre guardou boa distância da ideia de uma posteridade canónica. Nunca se quis estátua de si mesmo. A entronização reservava-a às figuras gradas de antanho e reverências só à literatura, assim define, aliás, as suas “Incursões Literárias” (2003).
Esta recolha fotográfica, homónima da exposição que em Maio passado inaugurou na Sociedade Portuguesa de Autores, de que Mário Soares era associado, é sensível à ideia de chegada e de partida. E disto nos falaria suficientemente quer as folhas de guarda do álbum, a exibirem Soares nas Ilhas Selvagens, quer capa e contra-capa, respectivamente saudação /convite ao olhar e despedida, com a Torre Eiffel ao fundo: “Maria, vamos dançar um último tango em Paris?” Abre o volume com uma fotografia na agremiação Voz do Operário, em Abril de 1974, com Mário Soares ao lado de Álvaro Cunhal (1913-2005), então líder do PCP, e inclui fotografias várias de cerimónias de Estado e visitas oficiais, mas também fotos com a família, em Bruxelas, em 1994, dançando com a mulher sempre cúmplice, Maria Barroso, em 1993, na Sociedade Filarmónica Alunos de Apolo, em Lisboa, ou a banhos nas ilhas Selvagens, no limiar da década de 90. E não deixa de fora os lugares da sesta de que Soares era fervoroso adepto.
Considera Eduardo Lourenço que não terá sido fácil para Inácio Ludgero “confrontar-se com a imagem de um Homem tão naturalmente sem pose como Mário Soares, a figura da nossa geração que entraria viva na memória do nosso século como a encarnação civil do regresso ao ideal democrático". Quem percorra esta galeria de retratos, que lava olhos habituados a regras apertadas, salamaleques de código rigoroso e antiquíssimos padrões de civilidade, vê desfilar as imagens de um homem para quem o protocolo teve muitas vezes a finalidade das rotundas: existia para ser contornado.
Numa extraordinária foto a cores, datada de Junho de 1990, impecavelmente iluminada pelo olhar sagaz e oportuno do fotojornalista, vemo-lo na cidade invicta, no meio do povo, a comemorar o S. João. Pela nuca, abundantemente martelada, não passariam certamente as mais elementares regras do protocolo, ali quebrado até à raiz. E mesmo em contexto cerimonial – nas comemorações do 4.º aniversário do 25 de Abril, ao lado de um Eanes preocupado com a composição da presidencial figura, ou por ocasião das comemorações do 10 de Junho, em 1984, na Torre de Belém –, Soares raramente carrega a expressão do peso e da magnitude que os seus altos cargos de Estado parecem exigir, exibindo uma postura que rompe com uma lógica cerimoniosa ou hierática, mas nem por isso alienada de uma majestade que não excluía a bonomia e a amenidade do trato ou destituída de um prestígio que depressa galgou fronteiras.
A lente de Inácio Ludgero soube captar os traços mais marcantes da personalidade de Soares: o espirito de combate e de resistência, a coragem serena, o rasgo polémico, o gosto do risco e do desafio, que tanto levava o político a banhar-se nas águas do oceano Atlântico, rodeado por um corpo de seguranças que prontamente dispensaria, como a mergulhar em si mesmo. Inácio Ludgero não limitou o horizonte à figura da Nação, ao patriarca da democracia, antes abriu a sua lente a outras esferas que, atentamente percorridas, vêm compor um retrato de corpo inteiro.