“Para os que partem, lágrimas dos que ficam. Imagem de um dos funerais colectivos. Rostos marcados pela tragédia. As crianças foram as vítimas mais dolorosas.” Estas são quatro legendas de fotografias d’“O Século Ilustrado” que surgem riscadas com o lápis azul da censura logo nos primeiros dias da tragédia, junto de fotografias cuja publicação não foi autorizada. Passam 50 anos das fatídicas cheias de 1967 e não é fácil perceber a linha entre o que foi escrito e o que não ficou para a História por ter sido rasurado pelo governo. Na Torre do Tombo, os cortes da censura do jornal “O Século” são os mais sistematizados, uma vez que o espólio da publicação está ali depositado. Tudo o mais são documentos dispersos.
A certa altura terão chegado às redações orientações para não reproduzir fotografias com urnas – como as que surgem censuradas d’“O Século Ilustrado” –, mas também para reduzir os títulos, não destacar o trabalho benemérito dos estudantes que tinham ido para o terreno, não falar do mau cheio dos cadáveres e deixar de contar os mortos, lembra um artigo sobre o impacto político e social das inundações na região de Lisboa da autoria de investigadores do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e da Universidade do Minho, apresentado em 2014 num congresso no Chile. Nos maços de cortes da censura na Torre do Tombo encontra-se outra informação que o lápis azul não perdoou: a associação entre uma explosão no paiol do forte do Carrascal, já na tarde de domingo, e terem desabado mais umas dezenas de casas que tinham sobrevivido à intempérie, mas não resistiram à reação química da água com os explosivos à guarda do Estado.
A censura não era um facto novo no Estado Novo – a informação não era apenas controlada numa crise, mas nas expressões mais quotidianas. Dias depois, no mesmo jornal, o mesmo serviço não deixaria sair, entre as frases do ano de 1967, esta de um bispo de Sherborne. “Nós, bispos, com a nossa indumentária, originámos a mini-saia. Mas deixámos que Mary Quant nos roubasse a ideia e fizesse uma fortuna de muitos milhões.”
De 25 a 26 de novembro
Apesar das investidas da censura, são muitos os registos na imprensa sobre as consequências daquele sábado, 25 de novembro, em que parecia não parar de chover. O “Diário de Lisboa” arranca no domingo com três edições diárias que vão dando conta do desenrolar dos acontecimentos. “Chuva e Morte: mais de 200 vítimas”, é a manchete da edição do dia 26, com o jornal a prometer um “relato tanto quanto possível aproximado dos acontecimentos ensopados de angústia” vividos na noite anterior, com a indicação na primeira página de que os textos tinham sido visados pela censura. Em destaque, a imagem de um prédio em Queluz, junto ao aqueduto, que o jornal declara um dos mais pungentes dramas do temporal, mas também já uma referencia à explosão no forte do Carrascal.
De acordo com o diário, entre a tarde de sábado e as 11h30 de domingo, os sapadores de Lisboa receberam mais de mil chamadas, a que acorreram cerca de 500 bombeiros. “Em muitas zonas, a água atingiu dois metros de altura”, lê-se.
Na zona de Queluz houve quintais alagados. Um homem ficou em cima de uma árvore três horas até ser socorrido. Já na zona saloia, a imagem da desolação. “O trajecto de Olival Basto a Loures, que percorremos esta manhã, é verdadeiramente uma zona mártir”, escreve o “Diário de Lisboa”.
Na Póvoa de Santo Adrião, uma família perdeu oito membros – “salvaram-se três adolescentes que puderam saltar pelas janelas quando a água rebentou com a porta e subiu furiosa até ao tecto, antes de arrasar o edifício”. Mas a maior tragédia seria descoberta na aldeia de Quintas, a três quilómetros de Vila Franca, onde a imprensa apontou várias estimativas para o número de mortes, até 130. “Quantas pessoas morreram em Quintas? Essa é uma pergunta para a qual é difícil encontrar resposta. Nem os que ficaram a fazem. Quando vêem um dos vizinhos pela primeira vez depois da catástrofe não perguntam quantos lhe morreram. Dizem antes: quais te morreram?”
Américo Thomaz “emocionadíssimo”
No dia 27 começam os alertas à população, o aviso de que só deve ser bebida água fervida por causa do risco de contaminação causada pelas lamas, enxurradas, cadáveres. Não se devem também comer vegetais crus. Não há uma palavra de pesar do governo pela tragédia nas páginas do “Diário de Lisboa”. Ao Instituto de Medicina Legal, que viria a declarar nunca em 110 anos ter recebido tantos cadáveres, tinham chegado então 108 corpos. Foram divulgados os nomes, idades e localidade onde tinham sido encontradas as vítimas. Algés, Alverca, Barcarena, Carnaxide, Caxias, Loures, Odivelas, Brandoa. Há também a notícia de que os estudantes dos liceus de Lisboa querem colaborar na assistência aos sinistrados, recolhem bens e estão a organizar brigadas de trabalho, a que se juntariam também os universitários, dinamizados pela Juventude Universitária Católica (JUC) e demais associações.
A 28 é noticiada a deslocação de Américo Thomaz ao epicentro da tragédia em Loures, dia em que a contagem de mortos oficial sobre para 320 (Alenquer, 53; Arruda dos Vinhos, 12; Loures, 100; Oeiras, 12; Sintra, 12; Vila Franca de Xira, 131). “Percorreu durante mais de duas horas os locais mais duramente atingidos, podendo apreciar todo um quadro de dor e de miséria, espelhado nas casas cheias de lama, nos escombros de habitações humildes, no amontoado de haveres dispersos por todo o lado, nas ruas e estradas danificadas e, até, em dezenas de animais mortos estendidos à beira da estrada e pelos campos”, lê-se no jornal, que retrata um Presidente da República “emocionadíssimo”.
A sociedade mobiliza-se, com uma reunião magna de estudantes no Técnico. A ajuda chega da Cruz Vermelha, da Associação de Futebol de Lisboa, da Fundação Calouste Gulbenkian, que perdera 200 mil livros com uma enxurrada no seu depósito em construção na Avenida de Berna, mas também do Atlético de Madrid, que se oferece para um jogo cujas receitas revertam a favor das vítimas. O apoio chegaria também da Bélgica ou da Alemanha, de onde vieram 700 contos para o socorro às vítimas – 400 mil escudos do governo e 300 mil escudos da Cáritas Alemã. No parque de campismo da Orbitur da Caparica são disponibilizados 50 bungalows para os desalojados.
O certo é que, a partir de dia 29, o rescaldo da catástrofe deixa de ter a mesma visibilidade na primeira página no “Diário de Lisboa”, ainda que o número de mortos compilado pelo jornal junto dos municípios continue a subir: até então tinham sido recolhidos 441 corpos. E apesar de haver registo dessas ordens para diminuir a informação, ela lá vai surgindo. “Cem estudantes de medicina colaboram na vacinação das populações das zonas atingidas pelas cheias”, lê-se na edição de 2 de dezembro. O receio é uma epidemia de tifo. A solidariedade continua a aumentar. O príncipe Rainier do Mónaco envia 116 contos ao governo português, o Fundo de Socorro Social liberta 2500 contos. Fazem-se campanhas no Ultramar, o Saint-Étienne oferece parte da receita de um jogo com o Benfica. E a União de Grémios e Espetáculos determina que todas as receitas das sessões de 7 de dezembro reverterão para as vítimas. A 3 de dezembro contam-se 458 mortos, mas as imagens do luto seriam sobretudo veiculadas pelas revistas.
Enquanto a Lisboa mais abastada seguia para o cinema ou via o “Santo”
A 1 de dezembro, a edição da “Flama” mantém a capa com Madalena Iglésias e Mestre Baptista mas fala de dilúvio, lama e morte. “Chovia. Insistentemente. As ruas começam a transformar-se aos poucos em rios de lama. Nas casas mais modestas, os tectos improvisados já não eram abrigo suficiente. Mas a população ao início não se deixou impressionar, dir-se-ia indiferente. ‘É mais uma cheia’ – pensou–se. Mas não tardou que o ‘passa-palavra’ reproduzisse a novidade – havia mortes em Odivelas, na Póvoa de Santo Adrião, Alenquer, Arruda dos Vinhos; uma aldeia perto do Carregado (Quintas) fora riscada do mapa por uma tromba de água. E as sirenes dos abnegados bombeiros começaram a entoar o ‘requiem’ da desgraça”, começa a reportagem extra da revista, que relata que a certa altura era impossível dizer onde acabava o Tejo e começava Lisboa.
“Lisboa mais abastada seguia para o cinema ou refastelava-se na poltrona caseira, assistindo ao famigerado folhetim ‘Gente Nova’, na RTP, ou à espera de mais uma aventura do ‘Santo’. A Lisboa menos favorecida entrava no café para a bica, ou ficara no bairro suburbano, julgando que o seu fim de semana ia ser igual aos outros”, retratava então a “Flama”. “Quando Roger Moore (o protagonista da icónica série policial) chegou aos receptores, já os tectos humildes começavam a meter água, as ruas pareciam rios.”
Mas se, em Lisboa, os danos causados pela falta de escoamento que entupiu “os locais do costume”, escreveria “O Século” – a 24 de Julho, Poço do Bispo, Santa Apolónia, o percurso da Junqueira a Algés e depois Campo Grande, Av. da República e Benfica – eram avultados, o pior estava fora da cidade. A 8 de dezembro, a mesma revista escreve em letras gordas na capa “Portugal Chora”, com a imagem de um funeral. E fala dessas “despedidas pungentes” que encheram dezenas de cemitérios. “Recordamos a imagem desgraçada de um homem sem idade que vimos em Vila Franca. Francisco Vicente deve ter perdido na tragédia uns 50 parentes. Uma figura imóvel, encostada a uma parede. Um rosto indiferente, por onde as lágrimas deslizam sem parar. Não sabe quem há–de recordar: os pais, os sogros, três avós, tios, primos”, escreve a “Flama”.
Romarias bárbaras
Na edição seguinte, a revista não deixaria de assinalar um outro lado da tragédia: as romarias de quem quis ir ver de perto a desgraça. “As povoações mais atingidas sofreram, nos feriados imediatos posteriores à tragédia, uma invasão de turistas bárbaros, que lá foram com o exclusivo fim de verem com os seus próprios olhos o espectáculo da morte”, repara a revista, registando até “engarrafamentos terríveis” nas estradas que prejudicaram os trabalhos de remoção de escombros.
Nesta edição de 15 de dezembro, a “Flama” aponta para meio milhar de mortos, números que nunca foram fechados oficialmente. E com mais ou menos cortes, também “O Século Ilustrado” escreveu no início de dezembro em letras garrafais sobre a noite em que a chuva matou. Não se veem as imagens cortadas, mas há outras parecidas, também de enterros, miséria e corpos. “Uma mortalha de lágrimas”, resumiria a publicação, falando de solidariedade e esperança, mas sem discutir responsabilidades. “Na realidade, a água foi muita. Foi sem sombra de dúvida a grande culpada da catástrofe, mas se as ‘casas’ (barracas) fossem verdadeiras casas teriam sido arrastadas pelas águas?”, questionaria a 10 de dezembro o “Diário do Funchal”, num trecho citado na análise de 2014, que conclui que o regime procurou enquadrar o que se passou na categoria de desastre natural, “vincando a inevitabilidade e a cadeia de solidariedade estabelecida”. Mas as estruturas oposicionistas colocaram a tónica nas condições sociais, “que fizeram com que as fortes chuvadas se transformassem num desastre humano”.