A eleição de Mário Centeno para o Eurogrupo, a aprovação do terceiro Orçamento do Estado da ‘geringonça’, a queda da taxa de desemprego para 8,5%, o valor mais baixo desde abril de 2008, são vitórias para Costa. Mas a quantidade de desacertos estratégicos do primeiro-ministro está a preocupar muitos socialistas, que já se interrogam sobre o que estará a acontecer ao seu líder. «No mínimo, está mesmo muito cansado», afirma um deputado socialista ao SOL.
O secretário-geral do PS acusou o toque sobre as preocupações que emergem entre os seus camaradas. «Posso estar momentaneamente cansado, mas isso em nada diminui as minhas ganas», disse Costa no jantar da segunda-feira passada, poucas horas depois da aprovação do Orçamento do Estado marcada pelo violentíssimo ataque do Bloco de Esquerda ao PS, por ter voltado atrás no acordo feito para reduzir os subsídios às energias renováveis.
Na realidade, ao introduzir o assunto no discurso comemorativo dos dois anos de Governo, Costa trouxe a público a preocupação que os socialistas já comentavam em privado: o primeiro-ministro não parece o mesmo. Ou, pelo menos, muitos dos seus fiéis reconhecem que a sua capacidade estratégica anda muito longe da que lhe permitiu produzir o acordo com o PCP e o BE e tornar-se primeiro-ministro, mesmo não tendo conseguido ter mais votos do que a coligação PSD-CDS.
Costa confirmou, no discurso de segunda-feira passada, que os seus camaradas lhe sugerem que descanse mais. «Mesmo aqueles que simpaticamente me dizem: ‘Descanse um bocadinho que está com um ar cansado’, quero dizer a todos o seguinte: eu posso estar momentaneamente cansado, mas isso em nada diminui as minhas ganas, vontade e força de continuar a levar para a frente o PS, o Governo e o país, porque é isso que os portugueses e as portuguesas esperam de nós», disse o secretário-geral do PS.
Momentaneamente cansado. A confissão pode ajudar a explicar uma enorme quantidade de erros estratégicos que António Costa vem acumulando desde junho, quando aconteceram os incêndios de Pedrógão Grande. A sucessão de tiros nos pés culminou esta semana na trapalhada da mudança do Infarmed para o Porto e da reviravolta no Orçamento do Estado – que provocou a acusação de «deslealdade» feita por Mariana Mortágua, do Bloco de Esquerda, ao Governo que apoia. Isto enquanto o líder parlamentar do PS, Carlos César, afirmava que o Governo não estava «refém» de nenhum partido, uma expressão curiosa sobre um Executivo que só existe porque tem o apoio dos bloquistas e comunistas na Assembleia da República.
Na entrevista que publicamos nas páginas seguintes, o deputado socialista Ascenso Simões, ex-diretor de campanha de António Costa nas legislativas, critica a frase do líder parlamentar: «O presidente do grupo parlamentar do PS diz que não estamos reféns dos partidos que apoiam o Governo, mas é claro que estamos. Temos com os partidos que apoiam a maioria uma posição tripla: política, de honradez pessoal e de dignidade institucional».
Ascenso votou ao lado do BE em defesa da diminuição dos subsídios às energias renováveis, como explica na entrevista.
A reviravolta no voto das renováveis criou um enorme mal-estar interno. Afinal, a medida tinha sido concertada até ao último pormenor com o secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, Pedro Nuno Santos, e os Ministérios da Economia e das Finanças – e praticamente ‘selada’ com um aperto de mão. O processo seguiu os trâmites habituais nas negociações entre o Governo e os seus parceiros. Só que Costa, ausente do país, acabou por saber a notícia quando leu os jornais online. E mandou implodir o processo. Menos de três horas depois da proposta ser aprovada, o PS pedia para que fosse novamente discutida e votada no plenário do Parlamento.
Ao que o SOL apurou, durante todo o fim de semana, o secretário de Estado da Energia, Jorge Seguro Sanches, tentou convencer até ao limite o primeiro-ministro de que a aprovação da medida era importante para o país. Sem sucesso: os argumentos de «não hostilizar o investimento estrangeiro», nomeadamente o de chineses e americanos, a par de toda uma complexa teoria sobre o risco de litigância, inviabilizaram a aprovação de uma medida que, segundo várias fontes contactadas pelo SOL, tem grande apoio dentro do PS.
Não será desta que a ‘geringonça’ se desfaz – o que não interessa, por enquanto, a nenhuma das partes – mas o BE promete responder àquilo que chamou de «deslealdade» e «cedência a lóbis». Por exemplo, se o Bloco de Esquerda decidir apresentar um projeto-lei com o mesmo conteúdo da proposta chumbada agora no Orçamento do Estado será um incómodo acrescido para o PS, tendo em conta a popularidade da redução do subsídio das energias renováveis dentro da bancada parlamentar socialista.
Outra questão que pode chegar à agenda rapidamente é a discussão sobre a Lei de Bases da Saúde. O antigo coordenador do BE, João Semedo, escreveu em conjunto com António Arnaut, o socialista reconhecido como «pai do Serviço Nacional de Saúde», um livro com uma nova proposta de lei de bases da Saúde, em que defendem o fim da Parcerias Público-Privadas na Saúde, coisa que este Governo apoiado pelo BE e PCP entendeu deverem continuar. Enquanto Semedo e Arnaut defendem «a gestão exclusivamente pública do Serviço Nacional de Saúde», o Governo não parece convencido da bondade da ideia.
Por seu turno, o Governo encarregou recentemente a ex-ministra da Saúde e antiga candidata a Presidente da República Maria de Belém Roseira para liderar uma comissão para fazer um debate «alargado» sobre uma nova lei de bases da Saúde. Quando foi feito o anúncio, a 13 de novembro, o ministro da Saúde, Adalberto Campos Fernandes, disse: «O país ganharia muito com um acordo que fosse alargado e que projetasse, a mais do que uma legislatura, estabilidade política, estabilidade de meios e beneficiaria muito se isso fosse feito num quadro de consenso alargado no Parlamento». Ora, quando o Governo fala de «consensos alargados» costuma estar a piscar o olho à direita do hemiciclo. As crises na ‘geringonça’ podem não ficar por aqui.