“Crónica de uma amizade fixe” vai ser hoje lançado, pelas 18h30, na sede da UCCLA – União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa. O seu autor, Vítor Ramalho, foi um amigo íntimo, um companheiro de estrada de Mário Soares até aos últimos dias de vida do ex-Presidente. O i entrevistou Vítor Ramalho que, entre outras ideias polémicas, admite que Soares não concordaria com tudo o que está a ser feito pelo governo. “Ele era um homem detonador de sobressaltos. Já teria feito um sobressalto cívico de certeza absoluta”.
Por que sentiu necessidade de escrever este livro?
Comecei a fazer o livro praticamente logo após a morte de Mário Soares. Senti que o devia fazer, não apenas pela proximidade muito grande que tinha com ele…
Estavam juntos todos os dias…
Sim, diariamente. Mas escrevi também porque acho que é fundamental que exista memória no país. Por estranho que lhe pareça, acho que essa memória se está a perder e muito. Sobre Mário Soares acho muito difícil que haja com o tempo um esbatimento do que ele representou. Mas não há futuro sem memória e é fundamental a juventude perceber a dimensão deste homem. Procurei fazê-lo de uma forma facilitadora da compreensão da personagem. Custou-me bastante porque não é fácil escrever uma coisa em termos simples.
Acha que o PS de hoje tem ainda a memória viva do dr. Mário Soares?
As pessoas mais velhas têm memórias muito vivas. Se me pergunta se o PS no seu conjunto também tem, eu diria que sim, porque ele foi o esteio do partido. Nunca existiria Partido Socialista sem o dr. Mário Soares. Se me pergunta se em termos do desenvolvimento da ação política, se ele cá estivesse concordava com tudo o que está a ser feito, diria que ele era um homem detonador de sobressaltos. Portanto, já teria feito um sobressalto cívico de certeza absoluta. Ele era assim.
Mas está a falar de quê, concretamente?
Estou a falar ao nível interno [do PS], para ser claro. Seria dificilmente concebível que ele aceitasse com resignação, ou pelo menos sem reagir, que o partido não tivesse apresentado na altura, no Porto, uma candidatura à câmara. É uma questão de princípio. Era irrelevante se perdesse, mas o partido tinha que lá estar, por exemplo, nesse ato concreto. Não sei se ele teria apreciado que um governo do Partido Socialista tivesse concordado com a inclusão da Guiné Equatorial na CPLP. Não creio que ele não tivesse uma palavra sobre esse assunto. Outro exemplo: mesmo relativamente à função do Estado e àquilo que é percetível hoje sobre uma certa carência de intervenção do Estado, sobre onde o Estado deve estar presente – quer seja na preservação, quer seja na gestão da Proteção Civil, quer seja noutros domínios ligados à saúde – penso que isto não era aceitável para ele. Ele era um humanista e reagia a qualquer situação que a ferisse.
Estamos a falar da falta de médicos? Do Serviço Nacional de Saúde?
Eu ando na rua e sei. Isso é uma realidade visível e que afeta sobretudo os mais carenciados.
Um homem socialista como eu e que não abdica de o ser deve ser também vigilante relativamente ao seu próprio partido, como ele era. Isto não significa que eu não condene, e de uma forma muito profunda, aquilo que foi a gestão do governo anterior do PSD e do CDS.
Está desiludido com este governo?
Não estou desiludido, sou mais exigente relativamente àquilo que têm sido as respostas por parte deste governo. Sim, sou mais exigente, quer na política interna, quer na política externa. E ficaria mal com a minha consciência se não o dissesse. Eu sou contra os unanimismos. Você acha que é aceitável que um Partido Socialista tenha no início votado por unanimidade o apoio ao candidato independente Rui Moreira e quando Rui Moreira tirou o tapete ao PS, o PS por unanimidade tivesse deliberado avançar sozinho? Isto não é coerente! Como não é coerente um partido como o Partido Socialista não ter neste momento um gabinete de estudos. Isso não é positivo para a análise e debate destas questões. O dr. Mário Soares tem um herdeiro que é o Partido Socialista. Ele nunca teve herdeiros políticos pessoais e sempre foi contra isso, porque não era monárquico. Mas, ao olharmos para o herdeiro de Mário Soares que é o Partido Socialista, devemos cuidar dele como da menina dos nossos olhos. E cuidar dele não é ser subserviente! É dizer as coisas para que possam ser emendadas!
Estes debilidades do PS são menos visíveis porque esta direita que nos governou e levou o país praticamente ao abismo tem carências que não permitem a denúncia consequente e a criação de uma alternativa. Portanto, devemos ser nós, militantes socialistas, a assumir essa responsabilidade.
Mas acha que António Costa já não ouve ninguém? É, aliás, um problema que acontece a quase todos os primeiros-ministros…
O dr. António Costa tem muito mérito e eu não quero retirar-lhe qualquer mérito. É um homem inteligente, combativo, determinado e é um homem que tem gerido o governo de uma forma tal que o povo português lhe dá a maioria, em termos de sondagens. Agora, se me faz essa pergunta, respondo por mim: realmente pedi-lhe duas ou três vezes para falar com ele e ele não podia falar comigo. Perguntei aos mais velhos se isso também lhes sucedia e vejo que a resposta é a mesma. Portanto, não é bom!
Os mais novos que estão no poder não se iludam. No dia em que o governo cair, porque não há governos eternos – oxalá estejam lá muitos anos, eu sou socialistas – as pessoas mudam de passeio para não se encontrarem com os que lá estiveram! E isto é bom terem presente. O poder não é eterno. As pessoas estão habituadas a que eu falo desassombradamente. Eu falo com à vontade de um homem que não procura o poder pelo poder e que nunca foi empresário. Por que é que falo com à-vontade relativamente aos países de língua oficial portuguesa, nomeadamente em relação àquele onde nasci [Angola]? Porque nunca fiz negócios com esses países nem cá.
Mas acha que os jovens socialistas que estão no poder são arrogantes, autossuficientes? Enfim, a António Costa não se pode chamar jovem…
Eu sou amigo deles e respeito-os. Aqui a questão é política, não é pessoal. Não faço considerações sobre a forma como eles agem. O que tenho pena é saber que a direita que levou este país para o descalabro não tem alternativa e o Partido Socialista devia cuidar mais dos seus aspetos mais vulneráveis. Ninguém é perfeito, ninguém é ungido pelo Senhor, nem os partidos! Se não há aqui uma vigilância maior a situação é delicada. Respeito o dr. António Costa, reconheço-lhe inteligência, capacidade de intervenção… Vou-lhe dar exemplos de coisas que acho que se devia começar a pensar. Esta direita decapitou o país relativamente às empresas estratégicas do país. Todo o setor das telecomunicações foi às urtigas. Tínhamos 85% de capital português dominante na banca. Agora, temos 8%. No setor da energia, tem hoje tudo alienado. Nos seguros, a mesma coisa. Pergunto com toda a clareza: como é que se pode fazer o aprofundamento da afirmação de Portugal no mundo se não tem empresas estratégicas que são elas que internacionalizam a economia? Como? Só há uma maneira. Fazer concentrar todas as energias numa prioridade. E qual é a prioridade relativamente aos países de língua oficial portuguesa que não foi desmantelada? É o setor das águas, que é transversal, tem a ver com a saúde humana, o desenvolvimento demográfico dos países. Devíamos também reforçar a capacitação de quadros dos nossos países irmãos em vários domínios. Acha que o Partido Socialista está a pensar nisto? Ou outro qualquer partido português pensa nisto? Acho que não, sinceramente. O único instrumento que temos no mundo para nos afirmarmos é a lusofonia. Estou a dizer exatamente o que Mário Soares dizia. No discurso que ele fez nos 80 anos disse três coisas que lhe vou relembrar: primeiro, que infelizmente as elites portuguesas eram como o vinho do Porto. Ele esperava que houvesse uma boa safra no futuro – textualmente. Segundo aspeto que ele disse: era fundamental os partidos fazerem uma autocrítica relativamente ao seu comportamento nos últimos anos. Esta crítica também é uma obrigação de autocrítica relativamente a mim próprio. Terceiro: a presença na Europa implicava que houvesse uma complementaridade com os países de língua oficial portuguesa, nomeadamente com a CPLP, de que nós devíamos cuidar.
E isso tem sido cuidado?
Acho que não. E foi o próprio fundador do PS que o disse nesse discurso dos 80 anos. Estou a fazer uma homenagem ao Partido Socialista ao evocar o nome do dr. Mário Soares. É um grande partido que tem que estar à dimensão do que este homem foi. Tem que ter coragem. Pode dizer-me que estou a fazer declarações corajosas. Mas não! Eu estou a fazer declarações normais, não são nada corajosas, corajoso foi ele que fez as aulas magnas, unido a esquerda, já doente. E eu pergunto se hoje haveria um governo tal como foi constituído se Mário Soares não tivesse organizado as aulas magnas.
As sessões na Aula Magna com os partidos de esquerda foram precursoras da geringonça…
Completamente! Mas isso é esquecido, está a ver? Isso não é dito! Criaram o ambiente psicológico, individual e coletivo, para que isso fosse feito. Eu tive uma intervenção direta nisso, negociei com o Bloco de Esquerda e o Partido Comunista, com alguns setores das Forças Armadas e com a Igreja! Neste livro que agora publico vê-se a coerência absoluta de Mário Soares, desde o Bloco Central. Mário Soares só fez a coligação com o PSD depois de um referendo interno no partido. Sabe porquê? Porque na campanha não tinha dito que ia fazer essa coligação! A situação era dramática, exigiu a intervenção do FMI. E ao fim de 18 meses, Portugal estava a subscrever a adesão à então Comunidade Económica Europeia!